UM SEGREDO SECULAR

A noite caía densa e obscura na velha cidade do Recife. O vento golpeava as janelas fazendo os vidros agitar-se numa melodia triste e agonizante; o piso rangia harmoniosamente dando a impressão de que aquela residência possuía vida própria. Na vizinhança todos insistiam em comentar o assunto do momento...

Um Segredo Secular

(Um conto escrito por Ravell Souza Lopes)

Pouco ou quase nada se sabe a respeito dos que ali moravam. As informações eram superficiais, incompletas, sem base sólida; entretanto todos concordavam plenamente que não se tratavam de pessoas e costumes convencionais. Todas as noites coisas sombrias aconteciam. Eram barulhos esquisitos, vultos estranhos, às vezes podia se ouvir claramente pessoas entoando velhos cânticos com letras bizarras; mas algo grandioso conseguia despertar ainda mais interesse na vizinhança; a existência de um segredo secular que nem mesmo os moradores daquele espaço ousavam mencionar.

O sobrado foi construído durante a chegada dos Holandeses em Pernambuco; possuía uma arquitetura pomposa com grandes salas, varandas, portas e janelas de carvalho que exalavam um cheiro único embriagando todos que moravam ou passavam em sua proximidade. Tinha uma aparência austera que impressionava e dominava as pessoas logo no primeiro olhar. Por muitas vezes foi assunto das rodas de conversa que varavam noites e mais noites sempre em busca de respostas para duvidas aterrorizantes. Seria mesmo o antigo casarão de fato assombrado? Ninguém ousava dizer que sim, mas também todos sabiam que não se tratava de uma mansão qualquer e toda vez que as pessoas abordavam qualquer assunto sobre o seu misterioso jeito de ser terminavam quase sempre ainda mais submersas em suas dúvidas e questionamentos.

Todas as noites quando a lua se estabelecia em seu posto de vigília era comum ouvir cantigas sombrias que eram entoadas por vozes roucas que exaltavam o desconhecido com uma naturalidade inquietante...

“Entra nesse espaço sombrio e desfruta do sabor das trevas

Aqui tudo é negro e misterioso; tudo tem o jeito e a cara da morte

Minha mente não obedece mais os meus instintos

Sinto minha alma melancólica num bailar obscuro

Deixa que o mal te transforme exumando o coração”

Constantemente o padre Cleiton era chamado pelos vizinhos para tentar falar com alguém daquela mansão, mas curiosamente nunca conseguia ser atendido. A maioria das vezes ficava durante horas batendo na porta gritando por alguém enquanto ouvia pasmo os versos bizarros dos cânticos que eram entoados. Olhava amedrontado para as janelas principais localizadas na varanda, mas só conseguia enxergar vultos de muitas pessoas a maioria parecendo ser mulher; porém o que se ouvia na rua eram vozes claramente masculinas.

“Santo Deus! O que se passa aí dentro?”

O mistério insistia em possuir com voracidade aquelas pessoas que olhavam abismadas sem compreender o que se passava diante de si. Nem mesmo os conselhos e conversas com o padre acalmava aquelas almas expostas às entranhas da escuridão.

Certa noite cansados de presenciar as estranhas esquisitices resolveram se unir para tomar uma providência mais enérgica...

- Como vocês sabem, há muito convivemos nesse estado de alerta sempre privados de respostas claras e objetivas para os nossos questionamentos. Nem mesmo o padre Cleiton com sua influência concedida pela igreja e o santo Papa conseguiu adentrar aquela morada para levar a palavra do Senhor. Creio que muitos, assim como eu, esteja cansado de observar noite após noite os hábitos deturpados daqueles que convocam as forças do mal e reclamam energia aos espíritos da madrugada em cânticos bizarros que renegam o nome de Deus. E eu pergunto a vocês, caros amigos: o que fazer?

Um breve momento de silêncio tomou conta de todos. Olhares espantados se encontravam numa plenitude de horror indescritível em busca de conforto; até que um jovem senhor de uns trinta e poucos anos quebrou aquele momento de incerteza com as seguintes palavras...

- Não podemos simplesmente invadir aquela casa. Não temos autoridade para tomar uma atitude dessas; acredito que a melhor opção é envolver a polícia nessa história e deixar que tomem medidas competentes.

- Compartilho do mesmo pensamento, mas me pergunto se realmente é necessário envolver as autoridades nesse caso. Alguém deseja se pronunciar?

O padre Cleiton até então pensativo levantou-se devagar encarando silenciosamente aquelas pessoas ao seu redor...

- Deus nos deu o dom de pensar e interagir para servirmos fielmente aos seus propósitos. E o que aquelas pessoas fazem todas a noites? Zombam descaradamente do seu nome, renegam as bênçãos e exaltam canções mórbidas que festejam a morte. Nós como membros atuantes de uma sociedade religiosa ativa não podemos permitir que coisas desse tipo se tornem naturais. Precisamos agir; vamos chamar a polícia para que resolvam o caso. Essa é a opinião e o posicionamento da Igreja.

- Estão todos de acordo senhores?

As pessoas balançavam a cabeça num gesto positivo concordando com aquela decisão, porém ainda podia se experimentar um certo clima de insegurança no ar. Partiram da praça central o padre Cleiton, o emissário Borges e mais dois moradores que se dispuseram ir à delegacia prestar queixa. Os demais ficaram aguardando o retorno daqueles que talvez pudessem trazer um pouco de paz para a pequena e aturdida vizinhança.

Duas horas mais tarde, um pouco mais próximo da meia-noite, todos puderam ouvir claramente o barulho das sirenes ecoando na praça; dentro da viatura estavam os homens que poderiam instituir um novo começo: o padre Cleiton, o emissário Borges, dois policiais e o delegado Pacheco; porém o que nenhum deles imaginava era que aquela noite estava apenas começando...

- Vamos homens, não temos muito tempo. Padre Cleiton, o que toda essa gente faz na rua há essas horas?

- Todos querem reconfortar seus espíritos também.

- De jeito nenhum. Peça para que voltem à suas casas imediatamente. Não quero platéia conosco.

- Mas delegado eles também tem o direito assim como nós de...

- Escute aqui, não é comum recebermos chamadas pedindo para verificar um bando de beatos acusados de satanismo. Meus homens precisam de espaço para trabalhar e eu ficaria muito mais tranqüilo se você mandasse toda essa gente de volta para suas casas.

- Como quiser delegado.

Após um discurso tumultuado, demorado e convincente todos retornaram frustrados às suas residências. Aquele acontecimento sem dúvida mexeria com a rotina de todos; a maioria desejava ardentemente entrar junto com a polícia naquela mansão para descobrir as respostas daquele mistério; no entanto ninguém imaginava o quanto estariam muito mais seguros em seus lares. Até o fim daquela noite as pessoas iriam agradecer ao padre Cleiton e ao emissário Borges por ter colocado todos dentro de casa há tempo...

- Está certo, agora escutem: nosso trabalho aqui nesta noite é apenas verificar o que está acontecendo; não importa o que aconteça vamos descobrir o que há de errado com aquela gente e reconfortar as pessoas. Vamos provar que não passam de um bando de malucos desordeiros que só querem assustar os pacatos moradores da nossa cidade.

- Desculpa delegado, mas acredito que possa existir algo mais! (breve silêncio)

- Padre Cleiton sou um homem de fé, porém o que vale mais pra mim é a razão. Não existe maldição nenhuma; o que existe de fato é uma grande brincadeira de mau gosto com todos nós. E acredite, quando eu pegar os responsáveis vou agir com rigor por estarem perturbando a ordem pública.

- Delegado, nós vivemos em um mundo que está dividido ao meio com as forças do mal. Somos tentados diariamente; o que existe é uma seita satânica bem debaixo dos nossos olhos e a nossa única arma esta noite é a palavra do Senhor.

- Não vou mais discutir. Vamos colocar um ponto final em toda essa história. Guardas acompanhe-me!

O delegado Pacheco seguiu na frente abrindo o velho portão que dava acesso às escadarias do sobrado. Os dois policiais, o padre Cleiton e o emissário Borges seguiam-no temerosos do que poderia acontecer dali pra frente. Muitos estavam divididos entre o racional e o religioso, mesmo assim não podiam ficar inertes aos fatos que se desdobravam com velocidade estonteante diante dos seus olhos.

A cada passo as incertezas corroíam vagarosamente seus espíritos como se estivesse apreciando deliciosamente um momento especial. Olhos atentos, bocas retraídas, audição aguçada ao máximo, passos inseguros no chão e um frio de cortar a espinha se manifestava a cada fração de segundos. Mesmo o delegado Pacheco caminhando apressadamente na frente dos demais agora se perguntava silenciosamente se de fato a questão se resumia em um bando de malucos exaltando o desconhecido ou algo muito mais aterrorizante.

Cruzaram em silêncio toda a extensão do jardim e chegaram às portas principais do casarão. O delegado Pacheco bateu com sua mão fechada na pesada porta de madeira e com sua voz imponente gritou à procura de alguém. Uma calmaria inquietante ressoava lá de dentro. Olhou desconfiado para os demais; todos observaram-se temerosos do que poderia acontecer. Pela segunda vez o delegado esmurrava a porta em busca de alguma resposta, porém a única coisa que se escutava era o barulho dos grilos perdidos no jardim...

- Vamos arrombar a porta.

- Espere um pouco; eu não acredito que realmente irá fazer isso.

- Padre quer fazer o favor! (bradou o delegado Pacheco)

- Tudo bem faça o que quiser, mas devo dizer que não concordo com nada disso.

- E o que quer que eu faça; fique gritando como um louco até amanhecer. Nada disso, vamos arrebentar a fechadura.

Em poucos segundos a única coisa que se escutou nas redondezas foi o estampido dos dois tiros que o delegado disparou contra a pesada fechadura. Entraram rapidamente vasculhando todo o local com os olhos, mas não avistaram uma só pessoa.

O sobrado era sombrio, possuía um cheiro forte de mofo, parecia que há décadas ninguém havia passado por ali. Em seu interior existiam móveis antigos que certamente estavam em desuso até mesmo pelo seu formato e tempo...

- Sinceramente não consigo entender... Como pode um lugar completamente abandonado abrigar várias pessoas.

- Abrigar pessoas? Duvido muito emissário Borges que alguém possa morar nessas dependências.

- Mas delegado nós os ouvimos entoar aqueles cânticos e pelas janelas da varanda dava para enxergar suas silhuetas realizando uma espécie de ritual ou dança, como quiser.

- Emissário, não vejo ninguém além de nós mesmos neste local. Na minha opinião as pessoas que vocês dizem ter visto por aqui foram embora quando souberam que chamariam a polícia. Mesmo assim vamos vistoriar as dependências só para acalmar os ânimos, mas eu lhes garanto que não existe nada além de móveis velhos e muita poeira por aqui. Então...

O delegado Pacheco não teve tempo para terminar sua linha de raciocínio lógico; todos pararam estáticos ao ouvir claramente os cânticos macabros que agora ecoavam por toda a residência em versos horripilantes...

“Domina as almas diante do juízo final

Fazendo com que as dores do mundo sejam perpetuadas

Eternizando o sofrimento entre as pessoas

Até que todo o pecado seja finalmente consumado”

O padre Cleiton segurando fortemente seu crucifixo, baixou a cabeça e respondeu com a seguinte oração:

“O sagrado sinal da cruz ordena-te

Como também o faz o poder dos mistérios da fé cristã

A gloriosa Mãe de Deus, a Virgem Maria, ordena-te

Que vós, legiões diabólicas, deixem de enganar as criaturas humanas

E derramar sobre elas o veneno da condenação eterna

Sai do caminho de Cristo

Em quem não pudeste encontrar nenhum dos teus trabalhos

Rebaixa-te por baixo de toda a poderosa mão de Deus;

Treme e foge quando invocarmos o Santo Nome de Jesus,

Este Nome, que faz tremer o inferno

Este Nome ao qual os Querubins e Serafins dizem constantemente repetindo:

Santo, Santo, Santo É o Senhor, O Deus dos exércitos”

Um urro ensurdecedor tomou conta do local. Os dois policiais, o delegado e o emissário Borges ajoelharam-se diante dos pés do padre Cleiton beijando sua batina e implorando sua bênção. Vultos começaram a surgir de todos os lados, de todas as direções, agitando-se contra os “guerreiros da libertação”; no entanto nenhum deles conseguiu tocar os cinco enviados que protegidos pela mão de Deus expulsou os espíritos que assombravam o velho casarão.

Depois de alguns minutos estáticos, completamente travados em suas posições, retornaram a si e desabaram violentamente no chão exaustos pelo cansaço e pelo stress emocional que a experiência havia proporcionado. O padre Cleiton era o único que continuava de pé, firme, altivo e seguro. Só depois de alguns minutos é que ele voltou novamente a si e desabou em um choro profundo lavando as inseguranças e incertezas que corroíam seu coração.

Algum tempo depois...

- Senhores, creio que o que presenciamos nesta noite deva ficar enterrado neste local para todo o sempre. Muitos lá fora não entenderiam os fatos e muito menos o nosso papel dentro de tudo isso.

- Padre. Acho que lhe devo ao menos um pedido de desculpas.

- Delegado não o culpo pelas suas palavras e pelo seu comportamento. O que acontece sempre é que as pessoas não percebem e não estão preparadas para entender a justiça Divina.

- Bom, acho que não tem mais nada para fazermos aqui. Vamos embora!

- Delegado... Lembra daqueles dois homens que foram à delegacia junto comigo e o emissário Borges?

- Lembro, o que tem eles?

- Estão mortos. Seus corpos estão desfigurados logo ali junto da porta de entrada. No momento em que os espectros tentaram nos atacar eles entraram no sobrado à nossa procura e foram consumidos pelas forças do mal.

- Jesus! (um breve silêncio tomou conta do ambiente)

- Mas como o senhor viu esses homens entrando se estava de cabeça baixa e de olhos fechados durante a oração? (questionou o emissário Borges)

- É simples... Pude enxergá-los através dos olhos de Deus.

Ravell
Enviado por Ravell em 26/02/2011
Código do texto: T2816776
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