O jogo
Passei pela porta da cozinha correndo como nunca fiz em toda minha existência, estava desesperada. Precisava ir o mais longe possível. Meu pulmão inflava e desinflava rapidamente, ficava cada vez mais difícil de respirar, era como se não houvesse mais ar o suficiente no mundo. Parecia como correr dentro do mar, não importa o esforço faça você segue sempre em lentidão. Há algumas horas havia visto meu namorado ser dilacerado vivo e somente há alguns segundos tinha perdido minha irmã. Tinha certeza que estava morta, ninguém grita daquele jeito e continua vivo, o som era de pura dor, mais a pior parte foi o silêncio que se seguiu. Não havia como pedir ajuda, o vizinho mais próximo ficava a quatro quilômetros e o telefone estava mudo. Não tinha energia e nem sinal na TV ou no radio, parecia que eu estava morava no fim do mundo, e tudo isso era culpa dessa criatura.
Passei pelo corredor batendo e empurrando tudo a minha frente, cortei meu braço em alguma coisa mais não havia tempo para se preocupar com esse tipo de dor. O que estava por vir era muito pior.
Segui pela escada subindo de dois em dois degraus, meu peito doía e estava começando a sentir uma dor que só crescia no quadril. Ignorei. Pude ouvir a porta abrindo, a criatura estava entrando. Não emitiu som de passos mais eu sabia. Não havia aonde se esconder, nada o pararia e ainda sim a necessidade de sobreviver prevaleceu. Podia sentir ele se aproximando, o frio estava se propagando e a escuridão me alcançando. Escolhi entrar no ultimo cômodo do corredor, o banheiro.
Tranquei a porta mesmo sabendo que era um ato inútil. Apaguei a luz instintivamente tentando me esconder, pela janela de vidro que ficava muito alto é muito pequeno para poder fugir entrou um pouco da luz do sol das três da tarde, ficaria mais fácil ver de onde o perigo estava vindo, só não posso dizer se isso é bom ou ruim.
Pude sentir que ele parou frente à porta, ficou lá em silêncio esperando e me torturando, apreciando me atormentar. Ele sabia que eu estava aqui e eu sabia que ele estava ali, era um jogo, um jogo doentio. Deixou-me por ultimo para que sofresse mais. Desejei que ele me matasse logo quando tudo começou. Teria sofrido menos.
Tive que tapar minha boca mordendo minha própria mão para conter aos gritos ao ouvir o som que parecia ser garras arranhando a porta, será que alguém morre de medo? Vi falarem sobre isso na TV, provavelmente é verdade porque sentia que meu coração pararia a qualquer momento, naquele momento desejei ter algum tipo de má formação no coração ou que uma veia muito importante no meu cérebro estourasse, isso acontece com freqüência com as pessoas porque não comigo. Meu corpo esta exausto pelas descargas de adrenalina mais por sorte a minha mente esta afiada e alerta, o que não serve nada quando contra quem você esta lutando é mais forte e mais rápido que você. Todas as alternativas de fuga foram esgotadas, e como se enquanto eu corria esbarrei na garrafa que continha a minha sorte e derramou tudo, agora a garrafa esta vazia. Vou morrer agora, não há mais como escapar. Essa era a única certeza.
Semana passada eu havia chorando porque meu vestido preferido manchou, naquele momento parecia o fim do mundo e agora aqui estou eu encolhida no banheiro agarrada no vaso sanitário como se eu estivesse em um mar à deriva e ele fosse meu bote salva-vidas. Consegui brevemente rir histericamente dessa cena degradante. Limpei as lagrimas recém formadas.
Era apenas um jogo inocente, tudo começou como um jogo inocente e agora estou sozinha e aqueles que eu amo mortos e um demônio quer me matar. Mamãe.
Estranho como às vezes o tempo se move tão lentamente, decorei cada detalhe do banheiro guardando como uma ultima lembrança. Isso me fez respirar um pouco mais devagar, será que eu terei forças para reagir? será que terei forças para lutar? Acho que não, sinto meu corpo mole, toda a adrenalina se foi, meus membros estavam frios e minhas mãos tremiam. Meu corpo se rendeu primeiro que minha mente.
Durante minha vida sempre fui Ateu, duvidei veementemente da existência de um ser supremo, mais cheguei a um momento em que se pensa ‘não custa nada tentar’, se ele realmente existir talvez se comova e faça meu coração parar. Olhei pela janela e apreciei minha ultima imagem da natureza, o sol. Não consegui velo realmente mais sua luz já era de alguma forma reconfortante. Quantas vezes não o repudiei e agora no meu momento derradeiro esta me fazendo companhia. Gostaria que chovesse agora, não desprezado o sol mais é que meu aroma preferido e o cheiro de terra molhada, seria uma grande despedida dessa vida.
Clique.
A porta destrancou, continua fechada mais sem a proteção de uma fechadura, que diferença fazia mesmo? Nenhuma.
Não se renda, eu pensei, não deixei que ele te atormente mais, logo logo você estará morta. Que fortalecedor.
O banheiro estava ficando mais escuro e frio. Sua energia maligna estava entrando. Cercando-me.
Queria que meu namorado estivesse aqui, que meus pais estivessem aqui, minha irmã, um policial honesto que cumprisse com o dever a qualquer custo ou um bombeiro fiel as regras, só queria que no meu ultimo momento tivesse alguém para me defender mesmo sendo em vão, me abraçar apertado e fechar meus olhos, seria bom ser mais uma ultima vez protegida. Que pensamento egoísta, no fundo eu só não queria morrer sozinha.
Será que encontraram meu corpo? será que conseguiram identificá-lo facilmente? em que estado estarei? Devia estar delirando por pensar nesse tipo de coisa ou talvez eu devesse morrer mesmo.
A maçaneta começou a gira milimetricamente, ele quer que eu sofra o máximo possível, somente dor física não o saciaria.
Levantei, fiquei de pé ereta o melhor possível. No fim escolhi não morrer encolhida como a covarde que fui à vida inteira, esse é o momento de provar meu valor. Esta vendo Deus, eu valho a pena, se existir não me abandona.
Ouço um rígido animalesco que faz meu corpo ficar mole de medo e meus olhos novamente encherem de água. Eu implorei.
- Por favor que seja rápido, por favor Deus que seja rápido, por favor...
O demônio riu e abriu a porta.