O Ilusionista

Este fato ocorreu em agosto de 1983, na cidade de Santo Cristo, próximo à divisa com a Argentina. Não pense o leitor que seja tarefa fácil narrar este episódio. Não é para mim, ou para qualquer outra pessoa que o tenha presenciado. Mas vamos começar. Após uma semana de intenso trabalho, o Grande Circo Brazil estava pronto para abrir sua bilheteria. Era a maior atração da cidade naquela fria noite de sábado. Certamente o espetáculo seria com platéia completa. Todos queriam assistir a maior atração da casa, Mister Grave. Não, ninguém ouvira falar no mágico antes da chegada do circo na cidade. Mas, o alto falante da velha Brasília, que afundou as suas poucas ruas, não deixava dúvidas, era a grande atração do circo.

O espetáculo começou com palhaços, domadores e equilibristas se revezando para o deleite da platéia. Passados quarenta e cinco minutos, faltava apenas o grand-finale. Mas, nem sempre um bom começo é certeza de um final feliz. A platéia entrou em frisson quando o mestre de cerimônias anunciou Mister Grave. A partner era nada mais, nada menos que Helena, a jovem mais bela de toda a região. Se ainda pairava alguma dúvida, agora não mais. Todas as atenções estariam voltadas para o palco.

Mister Grave era só mistério. Todo de preto, inclusive a capa em cetim. Seu rosto, fino e pálido, tinha o olhar gelado. Nada falou no palco. Entrou em cena e cruzou os braços. Desferiu um olhar desafiador à platéia. Num gesto ágil, virou-se para Helena. Sem que dissesse uma só palavra, dois homens, com aparência de carrascos, agarraram a moça e a amarraram numa maca. Em seguida, o mágico colocou um lenço roxo sobre seu ventre. Calmamente, ele dá uma volta ao redor maca. Quando surge de traz da mesma já está com uma serra elétrica nas mãos. Vira-se para a platéia e, pegando a todos de surpresa, liga habilmente o equipamento. As mulheres gritam de pavor. Novamente num gesto ágil, Grave desfere um golpe contra o ventre de Helena. Todos ouvem, aturdidos, o grito de pavor da jovem. Seu sangue jorra para todos os lados. Mister Grave, de joelhos, lavado em sangue, fica imóvel.

Após uma gritaria histérica, pouco a pouco, o silêncio faz-se na platéia. A imagem do mágico, ao lado do corpo da jovem, congela por alguns segundos. Só é quebrada em instantes, quando o Doutor Salinas, correndo para o palco, grita - “Ela morreu”. Quando chegou junto ao corpo descobriu que não precisava ser médico para constatar o óbito. Em seguida estava cercado por diversas pessoas. Entre elas o delegado Vantuir, que ali mesmo deu voz de prisão a Mister Grave.

A cidade, em polvorosa, queria linchar o mágico. A cadeia foi cercada ainda na madrugada. Felizmente, o reforço de duas viaturas vindas de Santa Rosa, a pedido do delegado, evitou uma tragédia ainda maior. A cidade não dormiu naquele fim de semana.

O enterro da jovem ocorreu na segunda-feira. A cidade, em procissão, foi a Igreja da Ascensão do Senhor para prestar as últimas homenagens a Helena. O clima era de total comoção. Tudo isto deixava o delegado Vantuir muito apreensivo. Perguntava-se a todo o momento se fora sábia sua decisão de manter o mágico na cidade. Felizmente, nada de mais trágico ocorreu naquele dia, e nos que se sucederam.

Na madrugada de sexta-feira, treze de agosto, quando a cidade já queria retornar a sua rotina, mais uma bomba caiu sobre Santo Cristo. O túmulo de Helena fora profanado. O ladrão, ou seja lá o quer for, levou tudo, caixão e corpo. Chamado em sua casa, o delegado foi averiguar no cemitério. Após exaustivas buscas, não encontrou nenhuma pista. Antes de qualquer alternativa, Vantuir decidiu falar com o mágico. Talvez ele pudesse dar algum subsidio que levasse ao autor do crime. Mas as surpresas da noite não haviam ainda terminado.

A cela onde Mister Grave encontrava-se preso, sozinho, estava vazia agora. Não havia nenhum sinal de arrombamento. Estava tudo arrumado, na mais perfeita ordem, inclusive com o lençol estendido sobre o catre. A única coisa que mudara, em relação ao dia anterior a sua chagada, era o misterioso aroma de almíscar no ar.

O delegado Vantuir estava bastante cético quanto à liberação do espetáculo de despedida do Circo Brazil da cidade. Ele era contra, porém, voto vencido. O proprietário do circo não queria sair com a imagem manchada da cidade. Pata isto, teve o apoio do prefeito, da câmara de vereadores e da Associação Comercial. Afinal, era uma ótima oportunidade para os moradores do entorno virem a cidade gastar no comércio.

O circo estava lotado para sua última apresentação. Até o delegado Vantuir estava presente. Levou toda a família com os ingressos cortesia que recebera do dono do circo. Dera por gratidão a sua flexibilidade. O clima, que começou um tanto tenso, se dissipou tão logo os macacos, palhaços, trapezistas, domadores e equilibristas começaram a se revezar no palco. Os aplausos cresciam a cada número. Como não haveria a apresentação do ilusionista, o espetáculo iria terminar um pouco mais cedo. O mestre de cerimônias dirigiu-se ao centro do palco para começar as despedidas. Nem começou a falar e as luzes se apagaram.

O perfume de almíscar toma conta do ar. Uma luz direcional roda o palco até fixar-se num de seus cantos. Nele esta Mister Grave e sua indefectil capa negra. A seu lado, uma mesa coberta por um fino tecido na cor roxa. Existe um grande volume abaixo deste tecido. O mágico, após rodar lentamente a mesa, usa de sua habitual agilidade para arranca o pano, deixando a mostra àquilo que ocultava. Para assombro e pavor de todos, lá estava o ataúde de Helena. Do nada, os tambores começam a rufar. Mister Grave, de forma enérgica, começa a abrir as trancas do caixão. O cheiro de almíscar é cada vez mais inebriante, assim como mais alto é o rufar dos tambores. Mister Grave destrava a última tranca e abre o ataúde. Seu olhar se enternece. Por segundos ele fica olhando, emocionado, para dentro do ataúde. Em seguida, com olhos embargados, estende as mãos e, delicadamente, ajuda Helena a levantar-se do Caixão.

http://tripofolia.blogspot.com/