ATEMPORAL
Meu sofrimento começou no dia em que desequilibrei e caí da varanda do quinto andar no prédio onde morava. Se fosse pelas leis naturais que a física estabelece deveria ter deixado de existir naquela ocasião; entretanto foi apenas o primeiro passo para uma sucessão de acontecimentos bizarros que ocasionaria nos problemas a seguir...
Atemporal
(Um conto escrito por Ravell Souza Lopes)
Mesmo no crepúsculo da noite quando o silêncio se espalha e reclama todo o universo para si; ver-se claramente momentos de terror se desmascarando em pesadelos horripilantes adentrando nas profundas alterações do sono; atormentando a calmaria do nosso corpo inerte; nos envolvendo em uma atmosfera sombria num mundo sem regras lógicas que mexe intensamente com o desconhecido.
Foi um grito longo, seco e desesperado. Logo após a queda livre nada senti senão uma calmaria inquietante. Era como se o mundo inteiro deixasse de existir em uma fração de segundos; mesmo assim continuava em sã consciência e o mais impressionante ainda vivo. No baú de minha memória recordo que avistei um espectro negro se aproximando de mim. Sentia medo, mas estava decidido em saber o que aquela figura assombrosa queria comigo. Ainda hoje não consigo lembrar as imagens que se sucederam, mas suas palavras essas jamais esquecerei...
- Você é um homem de fé?
Estava com o corpo dormente por causa do impacto; não conseguia mover um músculo sequer. Fiquei surpreso ao ouvir claramente palavras saindo da minha boca...
- Costumava ser.
- Eu posso facilmente te livrar das dores do pecado.
- Pecado?
- Suicídio, é claro! Acha mesmo que Deus vai perdoar uma pessoa fraca que atenta contra a própria existência num ato vazio e sem sentido?
- Do que está falando? (via apenas seu vulto diante de mim)
- Com um simples estalar de dedos posso te dar algo que jamais homem algum na face da terra teve oportunidade de experimentar, a vida eterna!
- Vida eterna... Que papo é esse?
- Você vai morrer quer queira, quer não. Mas tenho o poder de te oferecer não apenas a libertação do seu pecado como também a vida que nenhum ser humano teve até hoje. Está disposto a pagar o preço por isso?
- Preço...?
- Ser testemunha ocular do fim dos tempos. Está disposto? Se disser que sim levantará imediatamente como se nada tivesse acontecido. Não sentirá dor, nem medo, absolutamente nada. Viverá eternamente dessa forma; não morrerá nunca enquanto seu planeta existir; você verá pessoalmente o confronto entre Deus e o diabo, mas em troca dessas “facilidades” ficará do nosso lado para sempre. Se disser que não, sentirá o peso da gravidade esmagando lentamente seus ossos destroçados devido à queda. O que vai ser?
Um breve silêncio ocorreu...
- De que lado você está?
- Estou do lado do diabo e você?
- Não quero morrer agora... Tenho muito que fazer ainda.
- Então... Seja feita a vossa vontade!
Levantei instantaneamente como se nada tivesse acontecido. O mais incrível de tudo é que não sentia dor alguma; a sensação que experimentava era como se tivesse caído em um grande colchão de ar. Sem machucões, sangue, dor, fraturas... Absolutamente nada; então amarrei o cadarço dos sapatos, penteei os cabelos e caminhei em direção ao elevador. Antes das portas fecharem ouvi quando o espectro disse...
- Lembre-se a qual lado você pertence agora! Estarei sempre aqui para cobrar sua dívida para conosco.
Pensei: “De que me vale a existência da alma se agora sou indestrutível?” Simplesmente não imaginava o peso dessas palavras. É incrível como o ser humano é vulnerável as imbecilidades da vida em determinados momentos. Se na época soubesse o que me aconteceria teria realizado certamente a escolha oposta.
O que aconteceu a seguir foi uma maratona de acontecimentos estranhos. Ganhei seguidamente quatro vezes na loteria, fui gradativamente promovido no trabalho até chegar ao topo sem explicação lógica alguma, tive todos os meus problemas sanados do dia para a noite e todas as pessoas que se dirigiam a mim tratavam-me como se fosse um rei. Definitivamente passei a ter a vida que todo homem deseja para si; porém fui consumido por uma insatisfação descomunal. Nada mais fazia sentido; minha vida tornou-se um grande vazio, sem metas nem objetivos a cumprir. Já não sentia mais o sabor da emoção, nem medo, nem fome; quando me dei conta tudo havia se tornado absurdamente banal. Estava definitivamente preso em uma cela sem grades!
Além dessa insatisfação absurda passei a ser atormentado todas as noites em pesadelos indescritíveis; todavia o que mais me assustava era que encarava tudo isso com naturalidade desconcertante. Os pesadelos não passavam de histórias e situações fantásticas. Contudo mesmo gostando dessas narrativas inquietantes não conseguia desfrutar do seu sabor. Geralmente costumava acordar sentindo um grande vazio, uma ausência de algo que não sabia descrever exatamente o que era; em outras palavras: me transformei num ser humano solitário, sem sentido de existência, atormentado por toda a eternidade. Às vezes me perguntava por que havia negociado minha alma com as trevas; e, no entanto, a resposta parecia ser apenas uma: para ver o dia de amanhã.
Demorei vários anos para poder sentir o peso da minha escolha. Só fui entender de fato a grande besteira que fiz quando vi morrer nos meus braços a mulher que amava incondicionalmente. Fiquei abalado por um longo tempo, mas depois tantas outras perdas aterrorizantes também pude testemunhar a partida dos: meus filhos, netos, bisnetos, tataranetos; enfim... Vi todos cumprindo seu tempo de estadia e penitência em nosso mundo numa sucessão de eras angustiante. Estava mais do que claro, agora, que devemos ser fiéis ao nosso tempo de existência e respeitar as leis naturais da vida. Como conseqüência da escolha que fiz tive que pagar um preço muito alto para qualquer ser humano: viver para ver o amor que existe em si desfazendo-se aos poucos.
Minha vida havia perdido completamente o sentido. Tentei me matar de várias formas, mas não conseguia ter sucesso em nenhuma delas: descarreguei um revólver contra cabeça, as balas pinaram; tentei me jogar na frente de um carro, o motorista parou bem na hora de bater em mim; me atirei no fundo do mar, mas curiosamente não conseguia acabar com o ar em meus pulmões; me joguei novamente da varanda do meu apartamento, mas não consegui quebrar nem ao menos um dos dedos do pé. Fora isso tentei várias outras coisas: tomei ácido, veneno, choques violentos e nada me acontecia.
Uma madrugada, enquanto me preparava para cortar os pulsos dentro do banheiro, o tal espectro me apareceu novamente...
- O que está fazendo, posso saber?
- Já tentei muitas coisas, mas esta tenho certeza que funcionará.
- Seu estúpido! (disse-me sorridente) Não percebeu ainda que as leis naturais da vida não se aplicam a você?
Sabia que estava dizendo a verdade, mesmo assim quis arriscar pensar o contrário...
- Está errado. Até agora tentei me matar de forma complexa; mas agora vou cortar meus pulsos bem fundo e minhas veias irão jorrar sangue pra todo lado, você vai ver. Dentro de uns quinze ou vinte minutos não haverá uma só gota de sangue em meu corpo.
- Vai em frente... Quero ver!
Sem espaço para mais questionamentos segurei firmemente o espelho do banheiro e o arremessei com violência contra o chão. Dentre os pedaços espatifados encontrei um que me serviria perfeitamente; elevei meus pulsos ao mesmo nível da cabeça e cortei profundamente duas vezes em cada braço.
Esperei um instante para ver o que aconteceria; no entanto a única coisa que experimentava era uma leve coceira nos pulsos. Alguns segundos já haviam se passado desde que fizera os cortes e nenhuma gota de sangue foi derramada. Sacudi levemente o braço e entrei em pânico...
- Como é possível? Isso não está correto... Eu deveria estar sangrando agora sabia?
- Eu te disse que as leis naturais da física, química e biologia não se aplicam mais a você.
- Por quê?
- Todas essas ciências foram criadas e desenvolvidas por Ele. (apontou com o dedo indicador para cima)
- Você se refere a Deus?
- Exatamente. Tudo que foi criado por Ele não faz mais sentido a você. Sua alma agora pertence ao universo do macabro, do sombrio, da escuridão... Você viu a cara e experimentou o sabor da morte, está contido em uma outra esfera e se bem me lembro desde então deve obediência cega ao senhor supremo da maldade.
Depois desse episódio compreendi de uma vez por todas que nunca conseguiria me matar; finalmente percebi as conseqüências dos meus atos e pude de certa forma conviver mais facilmente com isso até que meu fim fosse estabelecido por aqueles que agora me controlavam.
Fiquei deprimido por longos dias, semanas, meses, anos e décadas. Vi o homem criar: guerras sangrentas, novas doenças incuráveis atacando sociedades, vi a igreja perdendo sua força e razão de existência na Terra; o mundo novamente foi varrido pela escuridão, viver na superfície do planeta já não era possível. Um conflito nuclear estourou e a vida humana passou a ser novamente subterrânea; vivíamos como animais rastejando pelo chão, muitos morreram subitamente; outros devido à radiação sofreram mutações genéticas e se adaptaram ao novo mundo passando a viver em áreas aquáticas nos poucos lençóis freáticos que ainda existiam.
Apenas um homem ainda conseguia viver lá em cima, na superfície. Um homem atormentado pela eternidade; um homem que trocou sua alma com o inferno em busca de uma ilusão; um homem que com o passar dos anos esqueceu-se da existência de Deus e se aproximava gradativamente do seu destino inevitável: amargurar pela eternidade em companhia das forças do mal.
Houve uma sucessão absurda de décadas e séculos que não tinham mais fim. O tempo estava louco; não existia dia nem noite. O céu era composto por uma cor acinzentada que exalava medo e terror. Nas poucas poças de água que insistiam em se formar na superfície da terra ainda podia ver meu rosto tal qual em 2017: alvo, sereno e curioso. No entanto em meu íntimo sinto uma inquietude desconcertante.
Sabe, essa madrugada escutei o som da trombeta anunciando o fim dos tempos. Foi um toque longo, melancólico e desesperado; então começou a contagem oficial que se encerra dentro de poucos minutos. A Terra tremeu, as águas agitaram-se turbulentas em seu interior; vi duas bolas de fogo cortando o céu com uma rapidez descomunal. Em breve a profecia irá se concretizar; serei testemunha ocular do fim do mundo; verei Deus e o diabo se enfrentando face a face num duelo de titãs que irá sacudir o universo. Estamos no ano 5618 depois do nascimento de Cristo; não existe mais fé, não existe mais pecado agora é cada um por si de acordo com suas crenças mundanas baseadas no que é certo e errado. Não existe mentira, não existem verdades. A única coisa que existe são fatos que desnorteiam o homem desde sua estadia em nosso planeta; eventos que certamente continuarão além da imaginação...