O inferno de gelo

I. O Exílio

Mais um dia no inferno gelado. No meio de árvores grossas com seus galhos secos, alguma relva aparece esporadicamente no chão coberto de neve, qual cobre tudo por aqui. É um infinito branco. Serie até bonito se não fosse o inferno.

Depois de passar pelo “julgamento” de Samalra, fui condenado ao exílio aqui em Zalra, a floresta de gelo, por ser um rebelde.

Zalra é considerado pela nossa cultura como um inferno palpável, um local onde é uma passagem para a agonia eterna.

Fui jogado aqui por alguns guardas do tribunal, que foram os encarregados de deixar a viagem o mais agradável possível. Acho que apanhei tanto que devo ter desmaiado... eu um soldado treinado passar por isso, acho que as correntes em que me prendiam pernas e braços deram uma vantagem.

O vento frio, como se a respiração da floresta, acordou-me e me fez recuperar a consciência . então fui me levantando, meio que sem forças, com minhas mãos e pernas enterrando na neve enquanto procurava chão firme para apoio.

Até que fiquei de pé, bati um pouco na roupa para tirar a neve e terra e percebi o que estava usando. Uns trapos velhos envoltos aos meus pés servindo de sapato e uma túnica que me cobria até abaixo dos joelhos.

Olhei em volta para me situar. Via só árvores com os seus galhos secos cobertos de neve e o chão uniforme como um tapete branco.

Até que olhei com atenção o tronco de uma das árvores à alguns passos de mim, com uma faca de cabo de osso com sua lâmina bem enterrada. Não serviria para construir um abrigo ou lutar contra algum animal, mas serie eficiente para destroçar minha própria garganta. “quanta generosidade”, pensei ainda olhando a faca.

Sabiam que eu não iria morrer tão facilmente e a agonia faria qualquer um suicidar-se. “ Desgraçados”, coloquei a minha mão envolta no cabo de osso e puxei, estava difícil de tirar.

Deviam achar engraçado a imagem de um louco desesperado para rasgar o próprio pescoço não conseguindo tirar dali o que lhe daria o alivio... “otários...” com um puxão mais forte retirei a faca e segui entre as árvores buscar comida.

II. Presente de Zalra

Seguindo a trilha por algum tempo, com aquele vento rasgando a minha pele sob a túnica, percebo que aqui não tem nada. Nem uma ave, nem um ninho, nem uma lebre, ou qualquer outro tipo de alimento que acalmasse a fome rasgando o meu estomago. “Eles sabem como dar um castigo”.

Percebo algum som e fico quedo para prestar mais atenção em tudo e decifrar sua origem.

Vou escutando, os galhos das arvores roçando nelas com o vento, minha respiração constante e dificultosa por causa do frio, e o chiado abafado dos meus pés se movimentando na neve...

Até que escuto uma outra respiração além da minha. Uma mais pesada e relaxada, que me faz olhar com atenção toda minha volta e perceber um movimento na neve, subindo... descendo...

Aproximo-me sorrateiramente e percebo um silhueta enorme: Um urso!

Um uso com sua pelagem branca, funcionando como uma camuflagem perfeita naquele local, dormindo!

Não conseguiria lutar contra um animal daqueles, de garras enormes e dentes que arrancariam minha cabeça, com uma arma tão diminuta como a que carregava, se ele estivesse acordado, mas daquela forma... totalmente inconsciente, chegava a ser até fácil demais, talvez a floresta tenha ficado minha amiga e Zalra era uma preciosa e honrada companheira naquele exílio.

III. A Presa

Vou, com cuidado, a cada precioso passo. Com a postura meio inclinada. Com a faca em punho. Um pé a frente, depois o pouco. Com os meus olhos fixos na presa e o corpo todo tremendo de exitação. Chego tão perto que já posso ver o fusinho ensangüentado e sua expressão de saciedade.

Continuo quase agachado e, com a lamina em punho, posiciono-me olhando para o seu pescoço... completamente exposto... “obrigado”.

Com um rápido golpe enterro minha faca no seu pescoço e rasgo até o máximo que posso para ele não ter forças para reagir.

O sangue quente do animal espirra-me em todo corpo, esquentando meu rosto e pintando toda a neve de vermelho vivo. Mesmo perdendo muito sangue rapidamente, o animal consegue reagir e me surpreende com uma patada acertando-me com força e jogando-me contra uma árvore. Quase me machucou.

Ele tenta se movimentar até mim com um rugido esforçado e rouco, mas a enorme poça de sangue mostra que já deveria estar morto.

Enfim perde as forças e despenca na neve, vai perdendo a consciência até não se ouvir mais sua respiração. Eu, ainda ofegante, levanto apoiando-me na árvore e caminho em direção ao urso morto.

Ajoelho-me ao seu lado, percebendo o enorme tamanho daquele monstro. “comerei carne hoje”, não me importa de não poder assá-la e com a faca abro uma parte da pele deixando a sua carne exposta. É o melhor sabor do mundo quando enfio meus dentes naquela carcaça e rasgo os seus músculos saciando a minha fome com o seu sangue, ainda quente, descendo pela minha garganta e saciando a minha sede.

Vou esfolando com cuidado para não estragar a pele, porque me será útil depois.

IV. Um novo Reflexo

Depois de terminar o meu banquete. Esfolo o resto de toda a pele do urso com cuidado. Retiro os trapos velhos que vestia e cubro-me com a pele de urso e sigo para uma caverna que havia próximo ao local de onde eu estava.

A entrada da caverna não é muito grande, mas, pra mim, é fácil de entrar, o que me deixa bem mais protegido caso algum amiginho daquele urso venha conversar comigo.

Dentro da caverna não é tão frio quanto lá fora, a sua aparência é de um fundo buraco em uma rocha e toda ela de reveste por destro de uma rocha azulada e bem escura.

Os sons de gotas d’água ecoam, lentamente naquela alcova, o que me faz ter curiosidade de ir adentrando seguindo o som agudo e constante.

Encontro uma poça de água acumulada em um furo na pedra alta no chão da caverna, as gotas límpidas escorrem pelo teto e caem nesse reservatório provocando o som.

Inclino-me e chego a ver o meu reflexo nos fundos dessa poça. Cabelos negros, olhos castalho-avermelhados, um rosto com uma barba mal feita e ainda sujo de sangue. Não sei ao certo de onde vim, mas não me importa agora, fui adotado por essa floresta, aqui viverei, mas não vou esquecer-me da minha vingança. Ver aquele déspota sofrer, eu mesmo irei matá-lo!.

Lavo meu rosto com a água fria, olho para a entrada da caverna e vejo, o que pode se chamado de sol, pondo-se além, agora o céu é todo de um vermelho... vermelho sangue.

Vou ate a entrada e estico meu braço sob aquele manto escarlate, com a faca em punho grito, a ecoar por toda Zalra:

-Vida longa ao Rei!