ELA NÃO ESTÁ TÃO AFIM DE VOCÊ
Antes de sair de casa naquele dia, o meu celular tocou pelo menos umas dez vezes, era Sabrina. Deixei tocar. Não queria falar com ela.
Mário veio me buscar na sua pick-up e pegamos a pista.
—Tração nas quatro rodas.
—Como funciona isso?
—É só puxar essa alavanca e ninguém segura.
Paramos num posto para encher o tanque na saída de São Paulo. Descemos do carro. Senti um frio nos braços nus e uma dor fina na parte inferior do meu abdome. Fui ao banheiro e Mário ficou conversando com o frentista.
Enquanto mijava senti um puta arrependimento. Tive vontade de sair dali e pedir para ele me levar de volta para casa. Além do que ele era um pachola. Eu sempre tive um medo particular de indivíduos de elegância duvidosa. Li em algum lugar que certos animais tem a cor da sua urina alterada sob ameaça. Puxei a descarga e passei a me habituar à idéia.
Seguimos. Mário disse que o frentista passou para ele umas rotas de atalho interessantes. Estradinha de terra. Buracos. Poeira. Lama. Tração nas quatro rodas. Chegamos.
—É aqui.
Águas profundas me deixavam nervoso. Na minha frente aquela vasta massa líquida, como algo adormecido, algo aparentemente inofensivo.
—O que foi rapaz?
—Eu não sei nadar.
Mário riu um pouco e depois parou. Desceu o barco de cima do carro, preparou o lugar, mediu o terreno, armou equipamentos, preparou um recipiente com um líquido iluminante onde se mergulhava um discozinho transpassado por um pavio que, acesso, dava luz.
Mario disse que íamos esperar anoitecer, que de noite era melhor. Não sei de onde ele tirou essa idéia. De uma hora para outra tudo ficou negro, tudo escuro, tudo sombrio, menos a massa líquida adormecida que brilhava, o céu também brilhava.
—Faz tanto tempo que não vejo o céu que tinha até me esquecido que lá em cima tem estrelas — disse Mário — Pô, cara, eu adoro isso. Isso, está vendo? Eu adoro estrelas. Sempre gostei. Na cidade não se vê estrelas. Na cidade é uma merda, só se vê concreto, fumaça, viaduto, minhocão. Lá é outro mundo, eu que nasci na cidade grande desconhecia esse mundo. Você acredita que eu tinha medo até de galinha? É serio, bicho estranho a galinha. Nunca tinha visto assim de perto. Quando vi caguei de medo. Isso foi há pouco tempo, há três anos. Quando eu e Sabrina nos casamos fomos passar a nossa lua de mel no interior, ficamos num hotel-fazenda que tinha aquela lama fedorenta de passar no corpo. Juro que nunca pensei que galinha de verdade fosse um bicho tão estranho.
O meu celular começou a tocar novamente, era Sabrina. Desliguei o aparelho.
Mário era um cara legal. Ele me ensinou a colocar corretamente a isca no anzol, a usar a isca certa, a acender a lamparina.
Ele não parecia nada com aquele cara violento insensível que Sabrina vivia me falando. Dizia que ele batia na sua cara e enfiava lápis no seu cu, dizia que Mário tinha um pino frouxo, que era maluco de pedra, que a única maneira de vivermos juntos, eu e ela, felizes para sempre, como ela mesma costumava dizer, era matando Mário. Além do que, eu era pobre e Sabrina também, Mário era de família rica e deixaria uma boa herança para Sabrina.
Mas eu jamais seria capaz de matar um homem. Eu tinha que contar para Sabrina que não ia mais matar o marido dela, tinha que contar o que estava acontecendo, Sabrina temos que terminar, era isso o que eu ia dizer, não te amo mais, entende?
Eu e Mário já éramos quase amigos, outro dia eu estava saindo da academia e pisei na merda que o cachorro dele havia feito na calçada, foi assim que nos conhecemos.
Na verdade, eu já o conhecia, Sabrina já havia me mostrado ele de longe. Depois daquele incidente com o cachorro, Mário passou a freqüentar a academia diariamente onde ficava horas na esteira. Sabrina não sabia de nada disso. Um dia ele me abordou e disse que tinha dois molinetes e me convidou para pescar.
Depois que a noite caiu, botamos o barco na água, Mario ligou o motor, um motor possante. Rasgamos o rio. Andamos um bom tempo. Mário ditava a rota, tudo escuro, o som do motor, dos grilos, a lua nos seguindo.
—Aqui está ótimo. Desliga o motor. Daqui a diante, está vendo lá?
Tudo escuro.
—Daqui a diante vamos remando.
Que remo? Não tinha remo nenhum.
—Você não trouxe os remos?
Ele encovou a face e fez cara de merda, mas não disse nada, deitou no barco e começou a dar braçadas na água imitando um remo. Deitei e fiz o mesmo.
Acordei com o sol na minha cara. Cadê os grilos? Cansado de tanto dar braçadas acabei adormecendo. Mário pescou a madrugada toda, o barco estava cheio de peixes.
—Acorda rapaz.
—Já acabou?
—Olha o tamanho desse peixe. Ele arrastou o barco por mais meia hora, mas consegui pegar o danado.
Olhei em volta e estávamos em outro lugar. O barco girava lentamente.
Liguei o motor e tentava voltar, mas Mario estava perdido. Pegávamos um braço de rio, não era aquele. Voltávamos, pegávamos outro, também era o errado. Um labirinto aquilo. Mario começou a ficar nervoso e para ajudar o motor pifou.
—O que aconteceu?
—Não sei.
—Deixa eu tentar.
—Acho que é gasolina.
Ele meteu um chute no motor:
—Droga! Merda do caralho!
—Calma!
—Eu também não sei nadar, porra! — disse Mário, depois ficou olhando para minha cara.
Eu disse para ele ficar calmo que eu ia tirar a gente daquela merda.
Verifiquei o tanque e ainda tínhamos gasolina.
—Me dê uma chave. Deve ser a vela.
—Essa serve?
—Essa não, aquela maior.
—Essa?
Com a chave eu tentava tirar a capa do motor. Mas a coisa não queria sair, o parafuso estava enferrujado. Botei toda força, pisei, pulei em cima, chutei, o parafuso não queria afrouxar.
Mário olhava para a água com aquela cara triste que só os gordos sabem fazer.
Eu ia abrir aquela porra nem que fosse no dente. A chave escapou da minha mão, tudo aconteceu muito rápido, a chave escapou da minha mão e caiu na água, não, não foi assim que aconteceu, a chave escapou da minha mão e Mario caiu na água, não, também não foi bem assim que aconteceu, tudo aconteceu muito rápido, a chave escapou da minha mão e caiu junto com Mario na água, tudo aconteceu muito rápido, o Corpo de Bombeiro apareceu, a policia, mas já era tarde demais, tive que contar o que realmente havia acontecido.
Mário escorregou nos peixes e bateu a cabeça, tudo aconteceu muito rápido, Mário estava contente, estava dançando, escorregou nos peixes, tentei ajudar, ele é gordo, como os senhores podem ver, fiz o que pude, tudo aconteceu muito rápido.
Tive que repetir a historia na delegacia. Formalidades. Liguei o celular, logo em seguida o aparelho tocou. Atendi, era Sabrina.
—Droga, desde ontem que eu estou tentando falar com você. Você está bem?
—Por quê?
—Olha você tem que tomar cuidado com o meu marido. Acho que ele quer te matar. Escuta, eu não estou ficando paranóica. Acho que ele desconfia de mim. Ou melhor, da gente. Tenho quase certeza que ele já sabe de tudo. De tudo, você esta me escutando? Eu já te disse, ele tem um pino-frouxo, não sei do que o Mário é capaz. Ontem eu peguei ele falando sozinho no espelho. Apesar de doidivanas ele nunca fez isso, entende? Ele dizia, eu te mato como um porco, fazendo movimentos estudados como se estivesse empunhando uma faca. Logo em seguida fiquei sabendo que há uma semana ele esta freqüentando aquela academia onde você faz boxe. Não é coincidência, entende? São fatos. De alguma maneira ele descobriu que você é o meu amante. Você sabe como sou distraída. Eu sei que você já me disse para não ligar para você da minha casa. Mas eu não consigo ficar um minuto sem falar com você, sem te ver, sem sentir o seu pau dentro de mim. Acho até que ele seguia a gente. Pode até ser que ele contratou um detetive. Com certeza ele descobriu que você freqüentava aquela academia e se matriculou, só para ficar estudando você, te observando. Talvez ele saiba onde você mora e outras coisas mais. Semana passada ele comprou duas varas de pescar e um barco, mas ele não sabe pescar, está me entendendo? Ele tem medo até de galinha. Por isso você tem que tomar cuidado, entendeu? Não fica dando sopa por aí. Eu não tô maluca. Onde você está?
—Na delegacia.
—Que delegacia?
—Vigésima alguma coisa.
—O que você está fazendo ai?
—O seu marido está morto.
—O quê?!
—Você conhece um bom advogado?
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