O LIVRO AMARELO

Depois do jogo de bola, certa parte do caminho para chegar em casa eu fazia sozinho, geralmente com a noite chegando, sentia um certo medo que me corroia por dentro, era como se ouvisse as recomendações de meu querido e amado pai alertando-me para os perigos da rua. E assim com aquelas palavras que insistiam tanto em meus ouvidos, passava a correr ainda mais para logo chegar em casa.

Mas num destes dias, não sei bem qual, ao virar a esquina da rua Rui Barbosa, vi um livro jogado pelo caminho, estava bem juntinho da guia pelo lado da rua. Não sei por que, abaixei e o peguei, mas confesso que senti como se estivesse tirando-o de alguém, pois embora muito garoto e para falar a verdade não muito afeito as leituras, esse sentimento terrível de pegar algo que não fosse meu, também fez questão de me acompanhar até em casa.

Chegando lá, com aquele livro em minhas mãos, fui para os fundos da casa, onde havia uma porta que dava acesso a cozinha, antes porém uma espécie de ranchinho, como nós chamávamos na época, fazia a recepção de quem chegava por ali, era a lavanderia de hoje, se é que se pode comparar o nosso ranchinho a isso. Ali tirei meu quichute, um tênis preto que tinha umas travas de borracha no solado, ele imitava chuteiras, a maioria dos meninos que jogavam bola tinha um desses, depois retirei o meião, a camisa e só de calção entrei na cozinha. Meu pai já havia saído para estudar, ele fazia Odontologia a noite e trabalhava de dia como peão na Companhia Suzano de Papel e Celulose, uma fábrica de papel conhecida na região por Papelão. Minha mãe cuidava com muito carinho da gente e de nossa casa. Ela era professora primária. Muito embora fosse alugada a casa onde morávamos, sentia como se ela fosse verdadeiramente nossa. Mas, foi então que minha mãe perguntou o que era aquilo que eu havia entrado nas mãos, e disse-lhe de imediato que era um livro que eu encontrara jogado na rua e que eu só tive tempo mesmo foi de pega-lo quando o vi. Ela não se importou, mas disse-me para ver se haveria nele um nome que o identificasse com o seu dono. Minha resposta foi imediata e disse que após o banho e o jantar iria vê-lo com calma. Após o banho quentinho, sai do banheiro e já estava na cozinha onde almoçávamos e jantávamos, pois minha casa não tinha sala de jantar. Enquanto comia arroz e feijão com um caldinho de galinha com farinha, aquela sobrinha do almoço que parece ficar mais gostosa ainda a noite ou no outro dia, aproveitei para conversar com ela.

Assim passamos alguns bons minutos na mesa, me levantei e minha mãe pegou o meu prato de comida e o levou para a pia para lavá-lo e terminar de ajeitar as panelas e arrumar a cozinha para ir assistir a sua novela, como era de costume.

Fui então escovar meus dentes no banheiro e fiquei pensando sobre o livro que havia achado, e algumas perguntas me vieram a cabeça. Quem seria o dono daquele livro? Será que ele foi jogado fora ou foi perdido? Seria um livro de estórias? Poesias? Um livro escolar? Sei lá...

Acabei então de escovar meus dentes e fui até o ranchinho dar uma espiadela nele, agora com calma e sem sustos. Sua capa era amarelada, e não havia nenhuma coisa escrita nela e nem na contra capa, não havia figuras, sua capa era lisa, apenas amarelada com o tempo. Pensei comigo que ele deveria ser muito velho. Com um certo ar de coragem, afinal eu já estava em casa, abri! Virei a capa e deparei-me com uma folha também amarelada, porém nessa haviam algumas coisas escritas nela, estavam escritas a mão e com uma letra muito bonita que me impressionou pela qualidade da caligrafia. Essa beleza instigou a minha curiosidade de tal maneira que virei mais uma folha, e ela estava em branco, virei outra e ela também estava em branco, e verei mais uma e novamente em branco, e outra e mais outra, e outra, até que na última folha daquele livro encontrei outras palavras escritas, agora com uma caligrafia ainda bonita, mas muito trêmula, que não conservava a direção das linhas corretamente. Foi aí que um nó subiu na minha garganta, a coragem deu lugar a uma vontade imensurável de fuga e fiquei ali paralisado, só deu tempo de fechar o livro e mante-lo preso entre minhas mãos.

Fiquei pensando o que seria aquilo tudo. Um livro com duas páginas escritas, em meio a quase 300 folhas. Já sentado, alias há muito no banquinho que havia no ranchinho, fiquei ali quieto por uns bons instantes até que meu coração parasse de querer sair correndo. Abri o livro novamente em sua primeira página, onde havia aquelas tão lindas letras caligrafadas, e as li. Lá estava escrito o seguinte:

Obrigado por me salvar, eu sabia que nós íamos nos encontrar novamente. Eu sou você, por isso as letras estão belas e firmemente grafadas. Porem como você haverão muitos que não terão essa mesma oportunidade, esse reencontro consigo mesmo, e vão se perder pelo caminho..., não terão a mesma sorte sua. A partir de hoje encontraste o verdadeiro mapa do tesouro de sua vida e nós iremos juntos viajar pelo seu tempo de vida, olhando o que passou, escrevendo o presente, e registrando nas páginas que virão a forma que você foi construindo seu futuro.

Agora é a sua hora de começar a escrever estas páginas em branco que estão a tanto tempo a te esperar. Tenha paciência e fé, persistência e tolerância. Veja a responsabilidade que tens daqui por diante, pois quem vai escrever é você, tenha muito boa sorte, um dia a gente volta a conversar...

Quase caí duro para trás!!! Minha Nossa Senhora!!! O que está acontecendo aqui??? Se a minha mãe ver isso aqui..., eu to frito!!! Ela não vai acreditar nisso! Eu devo estar sonhando... Mas o desejo de ir então para a última página ficou ainda maior e pensei, será que aquelas letras trêmulas da última página não estariam me revelando o futuro? Senti um frio na espinha e novamente fiquei paralisado, perplexo com a enorme possibilidade de isso vir a ser verdade, mas percebi que se fizesse isso, ler um final que não se conhecia os caminhos percorridos, não seria honesto comigo mesmo e com o livro, afinal o livro me dissea que era eu mesmo, eramos agora uma só pessoa.

Que loucura estava vivendo!

Levantei dali, entrei cozinha adentro carregando o livro e na sala falei para a minha mãe que o livro não tinha nenhum nome nele e se eu poderia guardá-lo para mim, minha mãe sempre amorosa e muito zelosa disse-me que não teria problema algum. Levei-o então para o meu quarto e comecei então a escrever dia após dia, página por página do livro que testemunharia minha vida, que alias, ainda testemunha até hoje!

Espero porem que as palavras trêmulas de sua última página, sejam um sinal de esperança para os homens, de fé para os desacreditados, e de uma bela e grande vitória do bem e das coisas de Deus. Porém, esta última página com certeza irá assinada por todos aqueles que um dia me conheceram e saberão fazer um juízo justo e perfeito do que fui e consegui ser em vida, nas suas vidas, na sua vida e na minha própria.

Assim seja!

Vitor Mailart
Enviado por Vitor Mailart em 28/01/2011
Reeditado em 05/03/2017
Código do texto: T2756796
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