Gourmet II – Redenção Oculta
I – “Peca Dor”
Aos que acham que o pólen da borboleta de carnificina é pouco, a vida é uma exúvia muito mais extensa e obscura do que pode parecer. A crueldade e os batismos de sangue são bem mais confusos e negros do que podem aparentar.
O monsenhor estendera-lhe a mão, o crucifixo pingente reluzia todo o ambiente em sua carne espelhada, os olhos do garoto fitavam-no, de alguma forma se refratavam na sua superfície assumindo outro tom de cor plagiada.
“Eu posso lhe ajudar”. Mais nenhuma frase, nenhuma confirmação e apesar de positiva estas palavras foram ríspidas e diretas por demais. O garoto cabisbaixo saíra dali contra a vontade de suas opiniões, saiu em verdade porque nem ao menos tinha as suas, propriamente dizendo.
Uma longa caminhada os fez percorrer até o limiar do bairro. Encontraram então com um carro preto de médios luxos, aposentaram-se. Lá dentro estava mais um velho homem, trajado de preto, trazia na cabeça um chapéu rasteiro de cor grená. Um cordão pendia e prendia-se sobre a sua cintura e caia com exatidão e harmonia com a faixa amarrada na mesma altura, de mesma cor do chapéu. “Tua viagem não será longa, toma tua benção!”, falou o bispo.
Silêncio.
“Não falas nada? Onde está o gato que comeu tua língua?”
“Nenhum gato comeu minha língua”, mostrou-a com desrespeito.
“Mal criado! Responda-me quando lhe perguntar algo.”
“Eu não me importo, longe ou perto, lixo-me.”
Um tapa escorreu-lhe metade exata da face. Tinha violência e pouca calma, mas não viera do bispo. A mão levantada era a do Monsenhor, que entre os dentes clamava que o menino tivesse mais respeito com sua senhoria, o Bispo. “Todo o ato envolvido a você aqui, deve-se à caridade da sua senhoria!”. “Pois não me importo, morram e me deixem morrer”.
Mais uma vez a mão do Monsenhor acertara-lhe em cheio a face. Agora a carne estava irrigada com o vermelhão. Da Janela do Carro, em movimento já a alguns minutos, O menino sentiu a fragrância inconfundível das pétalas brancas. “Odor da morte”, pensou consigo. Passaram frente à estrada da beira da floresta traiçoeira, seu antigo refúgio.
A má educação da língua deu ao monsenhor sangue fervente no corpo e ao garoto uma boa surra ao chegar ao catre do orfanato paroquial. Fora escorraçado de algumas formas impensadas, mas no final, a calma do monsenhor conseguira se despertar. O Bispo parara-lhe com um pequeno gesto de mãos. Mãos que acudiram, mãos que guiaram até um quarto. Mãos que fizeram tudo errado.
II – Mel e Fel
“O terrível inferno espera pelos pecadores os engolirá, Serão como são sem sabor pisado por Deus!”. O monsenhor falava para alguns meninos naquela sala abafada. Além dos praguejares ouvia-se um relógio enfurecido com seu “tic tac”, numa lentidão que ao mesmo tempo parecia estar rápida demais.
Para o menino do casulo, tudo aquilo era diferente demais, sagrado demais, chato demais, infernal demais. Era um estrangeiro na embarcação de destino extraviado. Resistia como uma flor de cacto em pleno deserto vazio.
Certo dia fora chamado até a administração. O bispo queria dar-lhe uma palavra.
“E tu, garoto, o que sabes fazer? Afinal, cada um contribui aqui da maneira que pode. Com você não será diferente. Afinal, nem mesmo o relógio trabalha de graça, não?”, gargalhou.
“Nada senhor, a única coisa em que auxiliava em casa era na cozinha. Mas sem chance nenhuma, meu padrasto achava a comida um lixo.”
“Ganhaste educação! Mas, voltando ao assunto, será nisto mesmo em que ajudarás.”
“Disse que a comida era um lixo.”
“... E estou te dizendo que teu padrasto era um louco. Não custa tentar, não?”
A partir daquele momento conhecera o mundo imenso da cozinha. Adquiriu idéias, experiências. Tinha na mão um toque especial, ninguém reclamava. Excluía-se do resto das pessoas, ia para a cozinha. A boca do forno, a língua das facas, os dentes das serrinhas e a palavra dos cutelos eram os únicos a lhe pronunciarem algo. Experimentara de um fel, agora tinha nas mãos o mel. Mas em um ponto critico de sua mente, em uma intersecção mortal, escondia a vingança jurada aos pés do crucifixo, voto repousado jamais abandonado. Perpétuo.
“O terrível inferno espera pelos pecadores os engolirá, Serão como são sem sabor pisado por Deus!...”As palavras ecoavam em sua cabeça. “O terrível inferno os engolirá”, “engolirá”. Então saboreava em seu prato uma carne muito sutil:
Caçando pecadores pela noite, em nome da cruz da perdição empalou as ovelhas. Aqueles cordeiros escarlates deram um belo banquete. Era a primeira vez que devorava carne humana.
III - Éden
Em meio à escuridão parcial, sorriu. A liberdade finalmente abrira as asas, voava e o carregava em sua garupa. Este era o poder que a fuga trazia.
Com os braços bem abertos o assassino esbanjava sua destreza. Sem premissa aproveitava os sons e as vozes dentro de si, parava o gosto no paladar, analisava, como quem detecta a cura em busca de peçonha selvagem. Era a matéria, era também o abstrato. Cada dia seu corpo era mais impalpável e a mente mais sólida.
No final, um objeto. Era apenas um objeto louco sem pretensões, sem motivos. Monstro criado debaixo das saias do amor. Vinho curtido a tornar-se vinagre da casa.
“Serão atirados à boca do inferno, os demônios os devorarão com seus garfos pontiagudos, arrependam-se”. Mensagens do falso paraíso. O verdadeiro patamar do céu estava agora em suas mãos.
Mordiscou mais um pedaço da carne suculenta. Novamente sorriu, e fora esta a última vez: Num risco fez inflamar o assoalho.
A pequena lâmina de luz rebuscou-se num trago, virava uma fera, consumia o chão e as paredes embebidas pelo querosene. Queimaria, incinerar-se-ia no meio daquela cobertura maléfica que era a sua pele de lobo vadio: Agora que provara daquela carne podre poderia ir visitar o inferno. Sua furtiva das grades fora destinada exatamente a isto.
Momentos depois em que a polícia chegara ao local para revistar os escombros, encontraram carvões de um corpo que agora descansava nas brasas. Do lado de fora, na varanda, uma caraça carcomida e mutilada trazia em si uma pequena placa.
“Jaz aqui o traidor, Assassino das flores brancas,
Miserável a morrer ridiculamente
Pelas mãos do monstro
Que ele pessoalmente criou.”
Em um paraíso não muito distante, Adão mordia sua maçã, aliviado.
“Maldito padrasto”, dizia.