Gourmet

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I – Esfíncter Selvagem

Percebia uma natureza encarrapitada de organismos e de silhuetas inanimadas ao adentrar os campos. Na orla tudo parecia toscamente verde, vindo de um tom um pouco apagado, outrora meio gótico.

A pastagem se abria em um caminho de terra simples, um convite aos que passavam e que conseguiam chegar enfim à atmosfera semi-silvestre da borda da estrada que esgueirava à falsa circunferência da savana de pedra que o homem ergueu, estas toneladas e toneladas de concreto apelidadas de “cidades”.

E foi da cidade que brotara, naquele trecho, tal garoto. Ali naquela paisagem parecia facilmente poder clonar a imagem que tinha na retina. Com os passos sorrateiros e minuanos de menino turista chegava à plenitude de um camaleão, ganhando em vista no meio das folhagens o dom de tornar-se invisível aos puros olhos e talvez até aos olhos puros que não mais lacrimejavam.

Mas as lágrimas vindas do céu sempre o tocavam, Os olhos do lábaro eram os únicos capazes de saber onde estava, eram os únicos que podiam conduzi-lo até uma forma de êxtase em contato com cada gota do orvalho. A chuva era a mestra perfeita em encontrá-lo.

Com o cheiro da chuva os ventos levavam ao toque do olfato outra perfeição rara e presunçosa. Um perfume mítico surgia meio às folhagens opacas, o perfume incendiava toda a superfície que tocava, fazendo Sândalo em qualquer resto que atingia. Bem se aproximando o menino viu a canção dos olhos: um paraíso de flores brancas, atrevidas como um floco de neve em seu ápice de pudor gelado. Uma relva, de oscilações claras e turvas, que jamais uma borboleta, sequer uma borboleta pudesse cometer a ousadia de ignorá-la.

“Ali estava pronta para eclodir uma lagarta que honrasse seu casulo mestiço.”

II - Na Boca do Estômago

Era o vidro que o separava da cartilagem fútil dos humanos normais. A mente, mais do que um poderoso instrumento de inspeção era a chave do trabalho executados pelas mãos golpeadas no dorso. O cutelo sereníssimo fixava a carne e dividia a gordura, separava fibras, dava forma ao quebranto que logo ali, em sua majestosa forma dilacerada, seria assassina da fome.

Cozinheiro chefe o menino dos bosques de flores brancas havia se tornado, seu nome já havia quase sido esquecido, ou talvez ele mesmo já quisesse apagá-lo antes mesmo que a pronúncia o acusasse. Mais sangue ainda a faca produzira, como que se a sua lâmina aproveitasse dos liquefeitos impuros para por ela chorar à custa dos animais que morriam para servir de sustento.

Eram semanas e mais semanas sem fim, perdido na vastidão da loucura, cujo único movimento se resumia em fatiar. Cozia os pedaços, tudo se misturava em uma panela mágica, a bocarra da fornalha produzia então a chama mortal e o gotejo da dor em soluções saturadas de gordura.

Daquela janela de vidro besuntado, que o separava do salão onde os clientes comiam, ele podia ver as bocas escancaradas, cheias e dentes a morder o próximo pedaço da carne. Via os sorrisos, as conversas, os goles que engorduravam a borda do copo ao tocar de lábios. Um ou outro cliente babava pelo mesmo canto que escorria e que engolia, outros inconscientemente alisavam a mesa no instinto de manter limpa a palma das mãos, em busca do tato mais seco.

Um homem de meia idade, ainda conservado levantou-se. Chamara o garçom, queria reclamar que a comida estava com um tempero forte demais, que aquele restaurante era algo exageradamente chinfrim, camuflado em luxo de cinco estrelas.

“Ora, pois se não quer comer, que caia fora” – berrou o cheff.

“Quanta insolência contra um empresário de minha categoria. Nesta espelunca eu não como nunca mais, ouviu bem? Nunca mais!”

Mal sabia o tal homem de negócios que ali realmente ele nunca mais iria comer. Nem ali, e nem em lugar nenhum.

III – Faca no fruto

“... um jovem rapaz, chefe de cozinha de um famoso restaurante da avenida principal está sendo apreendido pela polícia neste exato minuto. A perícia de investigação criminal apurou os fatos e chegou à solução do caso de desaparecimento de quatro pessoas distintas. Segundo afirmações do delegado. Todas as vítimas haviam desaparecido coincidentemente no freqüentar do estabelecimento.

O autor dos crimes já está sendo transferido pela escolta rumo à delegacia, toda a população está chocada com a brutalidade da forma dos assassinatos, e por isso há um grande descontrole aqui no centro da cidade. Mais notícias com a cobertura.”, estas foram as palavras que um monsenhor de aparência tranqüila ouvia da tevê antes de desligá-la e balanças a cabeça para os lados, como sinal de desaprovação e tristeza. “Não foi desta maneira que o ensinamos”, disse baixinho entre os milhares de crucifixos na parede. Aquilo era mais uma confissão do que um desabafo.

“Monstro, demônio, você tem de pagar”, toda a população gritava e corria atrás dos carros da polícia enquanto era alcançável. Em seu leito cúbico e estreito, o antigo garoto das pétalas brancas tentava pensar na confusão que estava acontecendo. Incidir-se no camburão não era agradável, mas nem de longe parecia ser algo real. “Porque fazem isto comigo, desta forma?”. O carro rodou, rodopiou, o cozinheiro tinha ainda na retina o reflexo dos flashes, as caras, os cuspes, as xingamentos, as gargalhadas de glória e desgraça, até que então, num freio sutil foi presumível: a delegacia era ali.

“O senhor matou estas pessoas?”, falou ríspido o delegado apontando as fotos enfileiradas.

“Não, não os matei, apenas dei a eles o que mereciam”.

“Então acredito que você gostaria de me contar mais detalhes sobre isto, não? Qual a explicação do sumiço destes corpos? Onde os enterrou?”

O rapaz soltou uma gargalhada enorme, exibindo tudo que a boca guardava, sem mistérios. “Enterrá-los? Não fiz algo tão amador quanto a isto que se refere, doutor.”

Numa exclamação confusa, o delegado ousou então indagar o destino dos cadáveres. E jurou, depois da notícia, que seria melhor não ter perguntado.

“Eu os cozinhei. Se querem procurar os túmulos destas pessoas, procurem nas inúmeras barrigas de pessoas que freqüentam aquele restaurante”, depois disso ele se calou, não mais falou com ninguém, não respondeu a mais nada.

Era agora uma lagarta de mutações erradas, retirada muito antes do tempo de seu casulo torto e degenerado. Era uma mariposa de asas corrompidas, e não voava.

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Era um mês agradável, chovia. Mesmo escondido entre as folhagens, a chuva era a única a encontrá-lo. Um menino corria pelos altos campos, adentrava as florestas, voava tocando o solo com os pés, unificava o céu e a terra com seu sorriso. Bastava o perfume daquelas flores brancas e tudo se dissolvia em um mar inexato, incoerente.

Chegava então à sua casa, cozinhava para o padrasto. Ele reclamava-lhe do sabor, cuspia fora a comida que aos poucos preparava. Dizia que estava sem sal, ou salgada demais. Muito sal talvez se explicasse por suas lágrimas a banhar os temperos, tornar a alegria algo salobro e digerível.

Mas a tristeza se derretia toda vez que tocava o poço das flores brancas, flores que com todo o seu perfume inebriante seduziam os passos para seguirem a perdição das matas, sempre.

Naquela manhã algo era diferente, o perfume da brancura agora parecia ter sido diluído em uma solução que em seu meio não conseguia se disfarçar. O perfume gostoso existia, mas não encobria o odor ácido intrometido na clareira.

O menino seguiu os rastros da trilha, o cheiro fétido quase se tornou o principal da mistura. Junto de um riacho que cortava o bosque de flores brancas, no reflexo da lua, o menino viu uma silhueta, o que parecia ser um saco jogado à margem da água. Sua mãe jazia ali numa serenidade, apesar das escoriações e feridas profundas e tão mortais pela carne. Do seu sono em paz ela jamais acordaria, tudo estava acabado, e o garoto sabia exatamente quem era o executor daquela desgraça, o carrasco do desespero, o manipulador de sangue e fragrância. “Padrasto miserável!”

Depois de tanta confusão e impiedade, depois de freqüentar várias vezes a casa da tormenta e do distúrbio, o garoto se deixou levar na maré do destino. Estava só agora, rezava baixinho, procurava um local para se recostar naquela casa vazia, até que ele viu aproximar-se dele o brilho de um crucifixo pendente de um braço, e uma voz gasta pelo tempo lhe dizia “Eu posso lhe ajudar”.

A cruz era a cruz do monsenhor que o sustentaria, que o acolheria agora que o padrasto não tinha paradeiro. Havia naquele objeto religioso um brilho tonalizado entre a prata e o preto. Portanto, a habilidade de perdoar contida naquele crucifixo poderia ser no garoto uma forma de salvá-lo.

Sem chances: Ele escolhera para si mesmo o peso da cruz da perdição.

Leandro Landcaster
Enviado por Leandro Landcaster em 24/01/2011
Código do texto: T2748008