Cabra-cega
- Bom dia. Em que posso ajudar?
- É... Uma amiga me aconselhou a pedir orientação à senhora. Ela disse que você faz umas rezas, que se comunica com espíritos, certo? Por isso vim até aqui. Você assistiu ao jornal ontem? Soube do caso da menina Bel Liz, de oito anos, que desapareceu terça-feira? Pois, desde que assisti ao jornal, não consigo tirar a menina da cabeça. Já sonhei com ela por duas noites seguidas e estou com a estranha impressão de que ela quer comunicar-se comigo. Eu sei lá! Nunca senti isso antes. Eu sou cético quanto a espiritismo, acho uma alucinação. Mas antes de procurar ajuda psiquiátrica, vim aqui. Para analisar todas as opções. Então, o que você acha? Você pode ver se o espírito da menina Bel está aqui agora, ao nosso lado?
- Ela não está aqui. Mas acho que não foi por dúvidas que você veio a mim. Acho que você já veio com uma decisão tomada.
- Você quer dizer que já decidi em não acreditar?
- Não. Isso você não decidiu ainda. O que você já decidiu é que irá ajudar a pequena Bel.
- Mas por que eu? Por que um espírito procuraria um cético? Por que não você, que acredita?
- E por que não você? Todos nós fazemos parte desta criação. Talvez sua missão seja agir em meio ao ceticismo. Investigue. Teste seus sentidos. Siga o próximo passo. O que você sente neste momento?
- Sinto... Sinto que devo falar com a família da menina desaparecida...
~’’~
- Senhora Liz?
- Sim.
- Desculpe incomodar. Imagino o momento ruim pelo qual vocês todos estão passando. Antes que perguntem, eu não sou nenhum repórter, nem policial. Mas estou aqui por causa de sua filha. Acho que posso ajudar a encontrá-la.
- Ó, entre, por favor. Sente-se. Este é meu marido, esta é minha irmã e este é o marido dela.
- Bom dia a todos. Bem, senhora Liz, você acredita em comunicação com espíritos?
- Sim... Ó, céus! Mataram minha filha?
- Calma, meu bem! Deixa o homem falar.
- Senhora Liz, o que você e sua família pensariam se eu dissesse que a pequena Belinha pensa em pedir ajuda e que eu posso ouvi-la? Você acreditaria em mim?
- Ó, sim. Claro!
- Então, acho que posso dizer que eu tenho tido algumas sensações desde o desaparecimento da Bel. Sinto que se eu estiver em algum lugar onde sua filha esteve, ou me aproximar de algum objeto pessoal, ou até mesmo ouvir sobre ela, posso seguir algum rastro de sua energia ou algo assim, e chegar ao paradeiro da menina
- Então o senhor é um paranormal...
- Bem, não sei como isso pode ser chamado, senhor. Na verdade, eu nunca havia sentido isso antes. Só estou agindo segundo minhas sensações. Sinto como se eu fosse um aparelho de ressonância, e estivesse seguindo ecos do passado. Sinto-me como em um jogo de cabra-cega, andando na escuridão. E juro que estou tentando ser o mais racional possível sobre tudo isso, o que é novidade para mim também.
- Do que você precisa?
- Querida, você nem sabe quem ele é!
- Realmente não sabemos. Mas você tem uma ideia melhor? Rapaz, eu vou lhe mostrar o quarto dela. Venha. Veja, está tudo como ela deixou pela última vez. A polícia já investigou tudo, então acho que você pode buscar pistas onde quiser.
- Ele não é detetive, querida. Acho que não é desse tipo de investigação que ele veio fazer aqui.
- Este quarto... Sim, sinto algo muito forte aqui.
- Que ridículo...!
- Por favor, deixe-o trabalhar.
- Não tem problema, senhora. Quanto mais eu me envolvo nisso, até eu acho incrível. Agora, vejamos... Esta mesinha... Este caderno... E este lápis rosa. É o lápis que ela sempre leva para a escola. Fica com ele o tempo todo na aula porque ele tem cheiro de morango. Mas ela se esqueceu de levá-lo quando foi à escola no dia em que desapareceu. Deixe-me segurá-lo. Sim! Eu estou vendo! Ela está com este lápis na mão, e da sala de aula ela olha pela janela o parquinho do pátio. Ela gosta do lugar dela na sala porque ela pode ver o balanço, que é o brinquedo que ela mais gosta... E ela pode ver a rua pelas grades do pátio... E ela vê... Ela vê... É isso!
- Por que largou o lápis dela no chão desse jeito? O que houve?
- Ela via um homem na rua através da janela. E ele a via também. Foi esse homem que a sequestrou.
- E onde ela está? Quem é este homem? Diga!
- Esperem! Deixem-me ver... Esta cama... Este ursinho de pelúcia... Sim, este ursinho! Ela quer este ursinho para poder abraçá-lo! Onde ela está, ela sente a falta dele! Está precisando dele agora!
- Sim, esse é o preferido dela! Ela dorme com ele quando está assustada... Ó, céus!
- Tudo bem, querida. Ela está viva. Não vamos perder as esperanças.
- Preciso levar este urso de pelúcia comigo. Ele nos conduzirá até ela. Pelo que sinto, ela está escondida em algum cativeiro. É um lugar escuro e úmido. E ela está me atraindo para lá.
- Você sente o que ela sente?
- Quanto mais me aproximo da vida dela, mais eu sinto sua presença. É como um sexto sentido, entende? Ah, esqueça. Nem eu entendo.
- Quer uma carona? Nós levamos você aonde for preciso. Querida, vamos com ele. Deixe sua irmã e seu cunhado aqui, que eles nos avisam sobre qualquer novidade da polícia.
~’’~
- Ela está por perto?
- Parece que chegamos cada vez mais perto. Vire ali. Agora pare. Espere. Foi daqui que ela foi levada, e deixou uma energia muito ruim até... ali! Vamos circular pelas ruas ao norte.
- Por aqui está bom para você?
- Nada ainda. Espere. Aquela rua! Sim, vá devagar. Não. Melhor, pare! Ele está aqui. O sequestrador está aqui. Pare o carro. É ali. Aquela chácara. Ela está lá. Mas não podemos seguir adiante. O sequestrador está atento aos movimentos da rua agora. Ela ficará em perigo ainda maior se continuarmos.
- Tem certeza de que é ali? Ei! Viaturas da polícia! Mas como?! Ah, sim... Seu cunhado, querida. Deve ter mandado seguirem nosso carro. Agora a polícia já está batendo à porta. Olhem! Tem um homem na chácara com uma arma na mão e ele está pulando o muro para o terreno do lado! A polícia está indo atrás dele!
- Precisamos ir lá!
- Querida! Não! É perigoso! Volte aqui! Ó, eu tenho que ir atrás dela.
- Eu vou com vocês. Faço parte disso também.
- Ô, ô, senhores, favor dar meia volta! Esta é uma operação policial! Estamos invadindo o local e pode haver troca de tiros.
- Minha filha está aí! Nós somos os pais dela! É a Bel que está aí, policial!
- Não tem mais ninguém na casa, tenente! A área está limpa! Deixem a família entrar!
- Ela não está na casa da frente. Sinto que tem uma construção mais adiante. Ali! Naquela caldeira! Tem um porão ali. Mas a porta está trancada.
- Nós iremos arrombar, senhores. Afastem-se!
- Tenente, estamos entrando em mais um recinto. Vocês aguardem aqui.
- Belinha! Belinha! Ela não responde!
- Encontramos a criança!
- Ó, Céus! Ela está...
- Desmaiada, senhora, mas está viva.
- Não...! Sinto que ela está tendo uma parada cardíaca. Está há dias sem água ou comida. Precisa de um atendimento de emergência.
- Chamem uma ambulância! Procedimento de primeiros socorros!
- Ó, meu anjinho! Nós estamos aqui! Viemos te salvar!
- Ela sente que vocês estão aqui e que vieram resgatá-la. Ela ficará bem. E eu também ficarei. Você vai para casa, Bel, e acho que agora vai me deixar ir para casa também.
~’’~
“... E na tarde desta sexta-feira a polícia encontrou o cativeiro da menina Bel Liz, desaparecida havia três dias, quando retornava da escola. Policiais seguiram informações da própria família e chegaram a uma chácara próxima da escola. O sequestrador era o caseiro da chácara Breno Cruz, 52 anos. Ele trocou tiros com a polícia e foi morto no local. Ele já havia sido condenado pelo estupro de duas adolescentes, em 1991, e havia sido solto em 2009 por bom comportamento. Bel já recebeu alta do hospital e passa bem. E em Catimbó, a polícia também investiga o paradeiro de um menino desaparecido desde o começo do mês, quando saiu de casa para comprar doces...”
- O quê...? Mas...
“... Miguel Salesiano tem cinco anos, é moreno, cabelo preto e liso, e vestia uma camisa verde e uma bermuda branca. Quem tiver qualquer informação sobre o menino Miguel contate a polícia imediatamente...”
- Hum, tudo bem, vamos lá!... Pode falar, Miguelzinho. Estou ouvindo você.