Memórias Alheias
Emília não se preocupou com ela mesma naquele momento, pensou mais na sanidade das pessoas: o que fariam, ao ver sair sozinha do quarto, uma boneca de pano velha, simples. Não queria isso. Mas por quê? O que isso importaria? Quem eram aqueles personagens? Talvez estivessem ali simplesmente para ficarem loucos, para se acharem loucos. Porque se preocupava com eles? Não era obrigação dela. A boneca não se mexeu, ainda que não entendesse por que, estava em dúvida: Mas como poderia ela estar em dúvida?
Emília passou dias na mesma posição, pensando e refletindo, buscando algo que explicasse, algo que respondesse, algo que... concluiu: algo que perdera! O que lhe estava faltando naquela história, história boba, porque não a deixavam em paz? Mas decidiu refazer todo o caminho de volta; é o que se deve fazer quando se perde algo, refazer o caminho de volta. Voltou história por história, lembrou-se de cada final, de cada começo. Lembrou-se enfim do Pica Pau e como era convicta: Convicta, era isso: Emília já não era mais convicta: Descobriu finalmente o que perdera: a convicção! Mas quando foi, qual foi o cara de coruja seca, a expressão saíra truncada, que ousara lhe tirar a convicção? Porém, ninguém ousou tirar-lhe a esperteza e Emilia pode pensar, e pensou durante noites inteiras, e dias inteiros.
Ela pensou, pensou e pensou e foi difícil para a boneca contar a si mesma o que descobrira: Desde que fecharam o livro e acabou-se o Pica Pau, desde que Lobato parou, desde que se despediu... A verdade estava a um palmo do seu nariz: A convicção era dele, era ele quem sabia até onde Emília podia ir, e quando se sabe até onde se pode ir, se uma coisa é certa, é que em cada palavra, cada passo, em cada coisa há convicção: A criara convicta, pois a conhecia. Diferente dos outros, que apenas a reconheciam por outras coisas: sua boca suja, sua esperteza, seu nascimento acidental... mas nunca por sua convicção.
Estava furiosa e desejou, como nunca lhe haviam feito desejar tanto alguma coisa, que Lobato estivesse vivo para que pudesse lhe tirar satisfações: Onde já se viu? Apenas usara a boneca para falar coisas que ele mesmo não tinha coragem, não se preocupara com suas vontades, e se Emília quisesse ser tão somente, e não menos importante, uma Barbie? Uma Happy Doll? Talvez agora,pudesse estar descansando em paz e não sendo incomodada todo o tempo por esses metidos, espertalhões, estudantes babacas, incapazes de criar uma personagem pra eles. Por que com ela não era como as outras, que apenas ficavam presas no final feliz? Por que Emília tinha sempre que começar uma nova história? Ela estava verdadeiramente furiosa. Mas ainda usando a esperteza que – bufou - pelo menos isso cultivaram, ela matutou e matutou: se já não era convicta, se já não era tanta coisa que ficou no caminho, que ficou em cada abrir e fechar de livros, em cada virar de páginas: o que ainda fazia dela, ela mesma? E se se chamasse dessa vez Keity ou Jessey deixaria de ser Emília e poderia enfim descansar em paz? A boneca estava em dúvida: era, sempre seria dali pra frente, a falta da convicção. Ela decidiu esperar: E mais dias se passaram, e mais dias vieram e Emília permanecia na mesma posição: imóvel, inanimada, um objeto, como tantos outros naquele quarto... Emília perdera a vontade de pensar...
Demorou um pouco pra que eu pudesse perceber que ninguém além de mim era responsável por aquele mau pedaço de Emília: eu a fiz pensar, eu a fiz se perguntar sobre ela mesma e estava arrependido... Dolorasamente arrependido! Mas não poderia simplesmente matar Emília, descosturá-la, transformá-la em uma capa de almofadas: eu sabia até onde iam os meus direitos sobre ela. Sim, mas também me negava a iludi-la com outro final feliz, ela mesma perceberia o hipócrita que teria sido.
Acabei a história assim:
E Emília adormeceu, e os seus quase 100 anos de sono acumulado, pois nenhum outro se preocupara com o sono de Emília, o sono acumulado a faria dormir por pelo menos outros 100 anos, e quando acordasse, já não estaria eu aqui, e Emília não tiraria satisfações com o estudante boboca que a fez pensar... quem sabe o que será de Emília, quem mais poderá tentar?
Lucan Moreno.