A barca fúnebre

Um fenômeno sobrenatural tornara-se atração turística na cidade onde minha avó crescera. Segundo ela, um barco de madeira, desses que os homens usam quando saem para pescar com os filhos nos fins de semana, podia ser visto boiando na correnteza do único riacho que cortava a cidade de um extremo ao outro, logo após o pôr do sol. Dentro dele havia o cadáver de uma moça de cabelos compridos e pretos, enrolada em uma mortalha alva e imaculada, o rosto pálido cintilando como a própria lua prateada.

Havia muitas histórias acerca daquela morta que assombrava a cidade da minha vó. Tantas histórias, que ninguém mais sabia qual se aproximava mais da realidade. Parecia que nenhuma delas era digna de muito crédito, também. Mas uma delas era satisfatoriamente coerente.

Diziam que a moça vivera na cidade, há muito, muito tempo atrás, até os dezesseis anos, quando morreu de uma doença misteriosa. Levou muito tempo para que alguém tivesse coragem de considerá-la morta, já que nenhuma mudança havia ocorrido com ela depois que seu coração parara de bater. Não quiseram enterrá-la, por medo de que ainda estivesse viva. Em vez disso, colocaram-na nesse barquinho e o soltaram no riacho. O barco desapareceu na bruma, em direção às árvores que se adensavam.

No sétimo dia, que fora o mais curto daquele inverno, o barco reapareceu. E a moça estava no fundo dele, intocada e absolutamente imóvel, igual a quando fora despachada.

Naquela época, houve grande pânico entre os moradores. Chegaram a dizer que a “assombração” pressagiava algo ainda mais hediondo. Podia significar a vinda do próprio Coisa Ruim àquelas paragens. Muitos temeram um levante de todos aqueles que jaziam no cemitério local, debaixo de muita terra. Seria um acerto de contas entre mortos e vivos e ninguém queria imaginar quando começaria. Ou como acabaria. Alguns homens tentaram afundar a embarcação, virá-la, incendiá-la e até mesmo exorcizá-la. Mas sequer chegaram a tocá-la. O barco passava longe da margem. A água ao seu redor era traiçoeira como ninguém havia imaginado.

Não demorou muito e a cidadezinha percebeu que nada de interessante, tirando-se o evento em si, iria acontecer. O barquinho de madeira aparecia quando escurecia, percorria toda a extensão do riacho e desaparecia onde as árvores se fechavam ao redor das margens. Sem mais problemas. Nenhuma peste, nenhum inverno rigoroso, nenhum despertar dos mortos ocorreu nos meses subsequentes àquele dia nebuloso e frio, no qual a barca fúnebre retornou de onde quer que tenha retornado.

E não é que esse fenômeno tornou-se sensação entre os visitantes que chegavam à cidadezinha de minha vó? Muitos não se continham ao tirar fotografias, disparando flashes em direção ao riacho como paparazzi alucinados. A imagem sombria de um barco de pesca pairando sobre uma superfície negra banhada pelo luar ilustrava o cartão postal da cidade e eu nunca entendi como as pessoas compravam isso. Com tantas lembrancinhas muito melhores sendo vendidas no comércio, a mais vendida era a representação de uma perturbação do Além.

Para falar a verdade, sempre duvidei que a história fosse verdadeira e sempre ouvi as palavras de minha avó com um desdém mais do que óbvio. Ela acreditava, no entanto; disso eu estava certa. Ela acreditava em tudo que dizia.

Andhromeda
Enviado por Andhromeda em 13/01/2011
Reeditado em 15/08/2011
Código do texto: T2727522
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