A Alma Penada
A alma penada
Acordei tarde da noite com a mão de um brutamonte sobre o meu tórax. Era uma mão pesada e muito fria. Ainda meio sonolento sentia que ela deslizava sobre mim, deixando-me ofegante e um rastro de gelo por onde passava. Após um breve susto e já desperto, atinei de ser uma alma penada que estivesse querendo assustar-me. Enquanto eu pensava, aquela enorme mão fria e pesada continuava a me atormentar. Pensei em mil e um planos mirabolantes - exageros à parte - de agarrá-la e, quem sabe, tornar-me o primeiro vivente a ter o privilégio de agarrar - concretamente - uma alma.
O coração batia bastante acelerado e o temor do contato real com um fantasma me fazia tremer que nem vara verde. Enquanto isso, a monstruosa mão continuava me esmagando. A sensação que me dava era que sobre a minha caixa torácica havia um corpo estranho que pesava mais de uma tonelada, tal a pressão que exercia sobre o meu peito. Refleti e falei comigo mesmo: - vou dar um bote certeiro e segurar esta danada! Agora vai ser eu ou ela! Vamos ver quem possui mais farinha no saco! Como uma cobra espreitando a futura presa, pus-me em absoluto silêncio. - Silêncio este que só foi quebrado pelo ressonar das minhas tias que dormiam no quarto contíguo ao meu – e me preparei para o ataque.
Fui deslocando a minha mão direita, lentamente, em direção à monstruosa mão do brutamonte, que me comprimia; fui levando devagarzinho, fui levando e, vapt vupt! Num só golpe agarrei-a com vontade, segurei-a bem firme e gritei bem alto: - tia Eulina! tia Eulina!
- O que foi Vavo? - Perguntou tia Eulina.
- Eu peguei uma alma tia! Chega rápido que estou segurando a danada! Chega rápido tia! Daí a pouco as tias, Eulina, Neném e Elvira, que dormiam no quarto ao lado, riscaram um pau de fósforo, acenderam o pavio do candeeiro e, rapidamente, partiram de lá em meu socorro. Entraram no meu quarto e lá estava eu com a cara de bundão; - amarelo, igual menino comedor de terra, segurando o meu próprio braço - crente que realmente estava segurando o braço de um fantasma.
Minhas tias começaram a gozar com a minha cara.
– Que alma que nada seu medroso! Você tá segurando é o seu próprio braço!. – Disse tia Neném -. Onde já se viu um menino com doze anos de idade, pode-se dizer um rapazote, estar morrendo de medo do seu próprio braço? Toma jeito de homem rapaz! – Completou.
- Você é um homem ou um saco de pipocas?
Perguntou tia Elvira, tentando ferir os meus brios de homenzinho, a fim de me encorajar a continuar dormindo naquele quarto sozinho.
Não teve encorajamento certo. Naquele dia e noutros tantos eu dormi mesmo foi no quarto das tias. Não tava nem aí se elas me chamavam de medroso ou coisa que o valha. A casa onde morávamos, contribuía para reforçar a minha fobia. Era imensa; somente quartos existiam sete. E fatos estranhos, - embora eu nunca os tenha presenciado - como móveis se arrastarem de um lugar para outro da casa, barulho de grãos sendo jogados no assoalho, cachorros fazerem festa, abanando a cauda, como se alguém estivesse entrando na sala em plena luz do dia, elas comentavam que já haviam acontecido. Notem que o meu medo era justificável. As três tias dormiam num só quarto. E o projeto de homem aqui, para provar a adolescência precoce, tinha que dormir num quarto sozinho, enfrentando assombrações de almas penadas. Isso não era justo.
Justo ou não o apoio das tias durou pouco. Logo trataram de me expulsar do aconchego do quarto delas e eu tive que me contentar em dormir, sozinho, no meu, sujeito às lembranças atemorizantes de seres do além. Os primeiros dias do retorno ao meu quarto foram difíceis. Não tive sossego. O meu sono era constantemente interrompido. Bastavam o farfalhar de folhas no jardim, as pisadas dos cachorros que dormiam na varanda, o ressonar das tias no quarto ao lado, para que eu despertasse assustado. Entrei em paranóia. Cobria-me todo - com minha dorme bem - da cabeça aos pés, mesmo que o calor estivesse insuportável. Deixava apenas a ponta do nariz de fora; eu mal podia respirar.
Todavia, como vulgarmente se diz, “a necessidade faz o ladrão”. Com o decorrer do tempo e por não ter outro jeito, já que fui sumariamente expulso do quarto das tias, fui me acostumando a dormir sozinho e a enfrentar as patacoadas fantasmagóricas. Aprendi a conviver com todos aqueles fatores que me enchiam de medo. A conviver com os meus fantasmas; os fantasmas que construíram dentro de mim. Cheguei à conclusão de que eles não existiam. A prova cabal das minhas suspeitas foi a de que me assombrei com o meu próprio braço, que ficou adormecido e gelado sobre o meu peito por falta de circulação do sangue para irrigá-lo, devido ao mau posicionamento ao dormir. Eu me assombrei com uma parte do meu próprio corpo! Tem cabimento uma coisa dessas? Deve ter sido isso que, certo dia, aconteceu à tia Elvira. Ela acordou, tarde da noite, assombrada, dizendo que alguém estava lhe agarrando. Isso causou um alvoroço sem precedentes. Todos nós acordamos, nos armamos das armas que dispúnhamos no momento: faca, cabo de vassoura, facão e vasculhamos todo aquele enorme casarão, cômodo por cômodo, debaixo das camas, atrás das portas e nada encontramos. Naquele dia ninguém conseguiu dormir mais. Passamos o restante da noite em vigília, investidos de um misto de medo e determinação, à espera de que o (tarado, ladrão ou quem quer que fosse) aparecesse para castigarmos severamente. Isto é, se o medo, que falava mais alto, não atrapalhasse a consecução daquela empreitada. Foi um resto de noite tenebroso; amanhecemos o dia, sem pregar os olhos; em vão.
Concluí que a tia Elvira devia ter passado por situação semelhante à que passei. E que lhe deu a falsa impressão de estar sendo agarrada por alguém. Quanta gente não já deve ter passado pelos mesmos dissabores e sai por aí, mundo afora, a difundir boatos de que foi tocada por fantasmas? Você tem dúvidas quanto a isto? Eu, que já passei por essa experiência, não as tenho.