No Extremo da Ilha


No avião, todos conversavam ao mesmo tempo, numa agitação que demonstrava o nível de ansiedade coletivo. A maioria falava das expectativas sobre o que nos esperava. Eu estava excitada com a perspectiva do prêmio, mas não conseguia participar dessa euforia, angustiada que estava com as palavras de minha mãe à minha partida. Pobre mãe... Queria que eu estudasse para me tornar alguém. Nunca acreditei nisso.
- Papai não era advogado? E morreu pobre, frustrado e humilhado, catando clientes em porta de cadeia, sem nunca ter tido uma chance sequer na vida. Por outro lado, o seu Antenor, da padaria, mal tem o primário e é dono de metade do bairro, mãe!
Ela lacrimejou e foi cuidar das costuras dela, coitada. As costas curvas do costume da máquina, para melhorar o orçamento magrinho, ainda mais mirradinho pela viuvez.
Fui atrás. Quis me desculpar. Ela sorriu triste:
- Você sabe o quanto desaprovo esta sua decisão, mas sempre estarei ao seu lado, torcendo pelo seu sucesso.
Fiquei pensando se ela não estaria certa. Para ela, eu estava fazendo uma loucura. Assim que fui selecionada, abandonei o supletivo, o namorado e o emprego. Dois meses se passaram, desde então. Aproveitei este tempo para melhorar a forma física, não só porque eu seria muito exigida nos desafios, mas também pela aparência, que certamente contaria pontos. Tive dois meses para me preparar: perdi peso, ganhei músculos e um pouco mais de cor. Às vésperas da viagem, uma geral no salão de beleza. No final, não sobrou nada do acerto de contas do salário, mas eu estava tão certa de que venceria o desafio que via isso como um investimento.
A balbúrdia à minha volta cedeu espaço a um incômodo silêncio. Penso que todos agora se analisavam uns aos outros, identificando seus adversários e possíveis aliados. Fingi que dormia. Na cabeça, as imagens das últimas edições do programa, os grupos muito unidos no início, numa exagerada troca de gentilezas e carinhos diante das câmaras para, com o passar do tempo e o recrudescimento das provas, tornar-se cada vez mais agressivo, individualista, maquiavélico. Sabia que teria que ser forte, mas, mais do que isso, sabia que precisaria ser esperta.
Sempre buscando valores como simpatia, energia e, claro, beleza física, o programa selecionava dez pessoas em cada edição. Nesta, éramos quatro mulheres: Deise, Patty, Fabi e eu. Todas com idades variando em torno dos vinte anos, corpos esculturais, rostos perfeitos longas madeixas loiras, naturais ou não. Eu era a única morena, cabelos e olhos escuros. Dentre os homens, as idades variavam mais. O mais novo, Luciano, não devia ter mais do que dezoito. O mais velho, Eduardo, já ostentava charmosas mechas brancas.
O avião pousou numa pista que era, na verdade, uma larga faixa de cascalho esbranquiçado, levantando uma assustadora nuvem de poeira. Desembarcamos e fomos conduzidos aos alojamentos, enquanto os equipamentos de filmagem eram descarregados.
O programa, um desses “reality shows” que pretendia testar nossos limites em condições inóspitas, chama-se “No Extremo da Ilha”. Pude ver, enquanto nos aproximávamos, que esta era paradisíaca, coberta por uma riquíssima vegetação tropical e cercada por verdes mares. As praias de areias muito brancas eram ladeadas por rochas escuras e atravessadas por córregos que ligavam o mar a grandes lagoas em seu interior.
O jogo consistia em permanecer até o final, com a bênção do público que, no quadro “Baby, Bye, Bye”, aos sábados, votava em quem eliminar. Para ajudar os espectadores nessa escolha, às sextas, havia o “Hora da Fogueira” que era o momento em que os participantes falavam uns dos outros, incentivando o público a dar imunidade a este ou eliminar aquele outro. As provas envolviam coisas nojentas como comer larvas de insetos ou cérebro de macaco, idiotas como ter que encontrar chaves dentro de tanques cheios de tarântulas sem as presas ou perigosas como atravessar despenhadeiros com o recurso de apenas uma corda esticada de um lado a outro. Em cada prova, os dois melhores colocados conquistavam uma premiação em dinheiro. Assim, qualquer um que vencesse algumas provas, poderia sair dali com o suficiente para mudar de vida. Mesmo sabendo disso, era o grande prêmio que eu perseguia: quinhentos mil reais. Sabia que, com esse valor, poderia mudar de vida, abrir um negócio, quitar a casa de minha mãe e tirá-la da costura.
Naquela primeira noite fizemos um lual. Em clima de festa, descobrimos outros talentos entre os concorrentes. Um dos rapazes tocava violão, Fabi tinha uma linda voz. Percebi que, a partir daquele momento, precisava demonstrar minhas qualidades, ou, na falta delas, atrair as atenções das câmeras e público de alguma outra forma. Embora estivesse mesmo bem desanimada com as perspectivas do momento, esforçava-me para me divertir e não parecer uma chata, o que seria minha condenação. Foi quando observei um dos rapazes me olhando. “É isso!” Pensei. Sentei-me ao lado dele em franco jogo de sedução. Logo percebi que a estratégia era boa. As atenções estavam todas voltadas para nós. Violão e voz eram pano de fundo para nosso “romance”. Que não deu em nada, claro, a intenção dele era a mesma minha: puro marketing. Mas, fizemos a coisa render o mais que pudemos e isso ultrapassou aquela noite, com brigas e tórridas reconciliaçãos, numa novela bem ao gosto do povão, o que nos garantiu alguma sobrevida no ar.
No dia seguinte, as primeiras provas começaram. Como previsto, tivemos que saltar abismos, atravessar a nado um rio cheio de piranhas, mergulhar na lama fétida de um pequeno pântano e comer umas lombrigas. Eu não consegui vencer nenhuma delas. Por outro lado, conquistei a simpatia do público para a minha brejeirice brasileira em contraponto ao biótipo americanizado de minhas adversárias. No sábado, ocorreu o primeiro “Baby, Bye, Bye”. Patty foi eliminada e eu, a menos votada, o que demonstrava que minha estratégia, até ali, estava indo bem.
Na etapa seguinte, estranhei que, além da Patty, um dos rapazes também não apareceu para nenhum de nossos compromissos a partir de quarta-feira. Os organizadores do programa pareciam perdidos sobre seu paradeiro, mas pediram-nos que não tocássemos no assunto quando estivéssemos sendo filmados. Porém, na última prova da sexta-feira, Fabi viu o corpo, numa vala ao lado da trilha. Não nos permitiram descer até lá, mas, dali de onde estávamos, reconhecemos o rapaz desaparecido. A equipe que nos acompanhava acionou os superiores pelo rádio. Horas mais tarde, um helicóptero da polícia pousava na ilha e, após alguns exames no local, retornou à costa, levando o corpo consigo. O apresentador do programa parecia muito chocado ao vir conversar conosco:
- O show deve continuar. O investimento foi grande, a expectativa do público também, não podemos parar por causa desse incidente.
- Incidente!? Mas, o que aconteceu? - o violeiro perguntou.
- Os peritos acreditam que ele caiu enquanto caminhava pela trilha e quebrou o pescoço.
Esta explicação não nos convenceu. Não fazia sentido ele ir sozinho a uma trilha que só enfrentaríamos dali a dois dias. Entretanto, na falta de outra teoria, nos calamos. Fomos orientados a, a partir dali, iniciar uma campanha contra o morto, para que ele fosse naturalmente eliminado na próxima votação.
- Eu não posso falar mal de uma pessoa morta! - exclamei.
Ele respondeu, cínico:
- Eu achava que você fosse mais esperta.
Entendi o recado e juntei-me ao grupo na maledicência contra o pobre rapaz que acabou mesmo sendo eliminado, agora do programa.
O que não esperávamos é que, no meio da semana seguinte, Luciano tivesse o mesmo destino, desaparecendo misteriosamente. Seu corpo foi encontrado dois dias depois, e, novamente, fomos orientados a dirigir as intenções do público contra ele, após seu resgate pela polícia.
Começou-se a se cogitar a presença de um assassino entre nós. O clima, que já era de competitividade e, até, deslealdade, tornou-se ainda mais tenso, ninguém confiava em ninguém. Paradoxalmente, todos queriam estar juntos por se sentirem mais seguros no grupo.
Ainda assim, a coisa se repetia toda semana. Bastava um de nós afastar-se dos demais e ficar sozinho por alguns instantes, para que seu destino fosse traçado, da pior forma possível. Pedimos, imploramos à direção do programa que encerrasse essa edição, dividisse o prêmio igualmente entre os sobreviventes até ali, mas eles estavam irredutíveis, insistiam que bastava que permanecêssemos juntos. E afirmavam-se igualmente assustados, embora nenhum deles tenha sido vítima do facínora, o que nos levava a crer que ele era um de nós, levando o jogo às últimas conseqüências. Ainda podia ser uma vingança, alguém que tenha sido anteriormente eliminado. Patty, talvez?
Ao final, restávamos apenas eu e Eduardo, o cinqüentão. Ele, aos poucos, foi conquistando a todos nós e ao público e, nessas últimas nove semanas, eu havia aprendido a confiar cegamente nele. Não poderia jamais supor que fosse ele o matador e grudei-me nele todo o tempo, não querendo arriscar-me por aquelas matas sozinha.
Nós dois já tínhamos conquistado um razoável valor em dinheiro. Eu tinha quase cem mil. Ele, pouco mais de duzentos. Sabíamos que um de nós morreria, então eu o fiz jurar que se algo me acontecesse, ele faria tudo para garantir que minha mãe receberia esse dinheiro. Ele queria que o dele fosse para os filhos.
Porém, nada aconteceu de extraordinário e, ao final do programa, eu venci, com a surpreendente eliminação dele, pelo voto dos espectadores.
Na cerimônia de premiação, sentia-me como quem recebe uma condenação por culpa. Doía-me o estômago pelas vidas ceifadas de forma cruel por um louco qualquer, enquanto os produtores do programa acobertavam tudo, pelo sucesso do show. Nem a visão de minha mãe no auditório, feliz e sorridente pela minha vitória, suavizou o desconforto que eu sentia.
Convidada a falar ao microfone, fui, decidida a acabar com aquele farsa ridícula. Abriria mão do meu prêmio, mas não podia mais conviver com a angústia de ter convivido com o medo por mais de dois meses.
Falei disso e de todo o resto:
- É deprimente que programas como este façam tanto sucesso, quando só o que se busca neles é a exploração das mazelas humanas! Só seres humanos desprovidos de esperanças são capazes de submeter-se às provas e humilhações pelas quais passamos.
Nesta hora, comecei a chorar. Alcançaram-me um lenço e minha mãe foi conduzida ao meu lado. Com a força da presença dela ao meu lado, falei também dos assassinatos, perguntei como poderia ser possível ninguém ter percebido nada se havia cenas constantes dos nossos closes mostrando o quanto estávamos sofridos, enojados, cansados, se ninguém teria percebido a falta dos outros... Cogitei o poder da emissora, que conseguiu calar até a polícia...
- Vocês são todos uns manipulados! Tanto quando eu e os demais participantes fomos. – vociferei.
No entanto, por mais que eu falasse, ninguém esboçava qualquer reação de apoio ou repúdio ao que eu dizia. Até minha mãe parecia sorrir, como se apenas aguardasse o fim do meu discurso. Era óbvio que todos sabiam algo que eu não sabia. Foi quando vi, a um lado do palco, os outros participantes, todos muito bem e vivos e também rindo. Não havia dúvidas, rindo de mim.
Foi quando o apresentador assumiu o microfone e explicou que as “mortes” seguiram-se às votações e não as antecederam como pensávamos. Eram parte do cenário para testar ao máximo nosso emocional. Eu me encontrava em turbilhão. Furiosa pela forma como fui ludibriada, aliviada por ver que não houve mortes, feliz porque ainda teria meu prêmio e triste pela sensação de que nós nada mais éramos do que atrações de circo.
Peguei meu prêmio, quitei a casa de minha mãe e abri, para ela, um pequeno atelier de costura, onde duas auxiliares faziam o trabalho pesado.
O que sobrou, guardei na poupança para garantir minha subsistência durante algum tempo. Afinal, precisava terminar o supletivo, me preparar para o vestibular de direito e bancar a faculdade após minha aprovação. Na formatura, talvez não sobrasse nada. Mas eu via isso como um investimento, pois estava certa de que, ao final, conquistaria o grande prêmio: finalmente, eu me tornaria alguém.


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Texto escrito para o 6° Desafio Literário da Câmara dos Deputados - Etapa 2.
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