FEBRE
“FEBRE”
Era noite e a Rua das Flores que já dormia pelo adiantado da hora, estava clara num tom azulado, iluminada com a luz da lua cheia, o céu brilhando, estrelas prateadas cobriam a cidade. Maria sai devagarzinho pela porta entreaberta de sua casa e corre, com sandálias de arrasto nos pés, em direção a rua. Até chegar lá, Maria desce uma ladeira de aproximadamente trinta metros por um caminho sem pavimentação.
Ali perto, no cruzamento com urna outra rua, Maria se depara com um cavaleiro que aparece de repente. Um homem estranho, vestido com uma capa escura e chapéu na cabeça. Maria grita assustada e com medo. O cavaleiro abaixando-se sobre a montaria tenta raptar a menina que quase era pisoteada pelo cavalo. Não conseguindo raptar Maria, o cavaleiro corre para longe.
- Uaaaaai!Socooooorro! – grita Maria.
Julio, pai de Maria, de longe numa rua perpendicular a que eles moram, ouve os gritos, olha para trás e volta correndo e encontra sua filha ali, estática no meio da rua. Abraça a menina ali sentada no chão. Ambos estão apavorados. As luzes se acendem na vizinhança e as janelas se abrindo aos poucos, bem devagarzinho.
- O que foi Maria? – indaga Júlio. - O que você ta fazendo aqui menina? Você não ta doente, com febre? Eu tava indo na farmácia, justamente comprar remédio pra você minha filha.
- Eu queria ir com o senhor, papai.
- Porque você gritou, o que foi que aconteceu hem? Fala pro papai, fala.
Muito amedrontada responde Maria - Foi um homem, montado num cavalo, com uma espada enfiada no peito... Queria me pegar.
- Te pegar? Que história e essa menina? E ele foi pra que lado?
Apontando para um dos lados - Não sei, acho que foi pra la.
- Pode deixar minha filha que eu vou pegar esse miserável. Vamos pra casa que você ta queimando em febre.
Júlio coloca Maria no colo e caminha em direção à sua casa.
Subindo a ladeira que leva até sua casa Julio encontra sua esposa Neide e ali mesmo os dois começam a discutir.
Muito irritado questiona Júlio - Você não viu essa menina sair de casa não Neide, a menina com febre e você nem presta atenção na menina. Eu falei que ia na farmácia comprar remédio. É só eu sair que as coisas desandam nesta casa.
- Eu não vi não Julio, será possível que nessa hora, uma agonia danada, cuidando das coisas dentro de casa, botando as outras crianças pra dormir, você não compreende, fica ai me culpando. Essa menina é muito danada também, ora.
O que é que tu foi fazer lá na rua menina? - muito irritada Neide reclama a pequena Maria.
- Queria meu pai.
- Vamos entrar. Explica Júlio - Maria disse que viu um homem estranho... Sei lá... Montado num cavalo, vestido com capa escura. Disse que queria lhe raptar. Ninguém nunca viu isso por aqui, essa é boa. Vamos entrar, vamos.
As outras crianças acordaram com a discussão dos pais na porta de casa e vão se aproximando.
- O que foi pai, que briga e essa. Indaga Carlinhos o mais velho ainda sonolento.
- Maria não ta com febre? Porque tava na rua. – pergunta Rebeca.
As crianças ficam sem resposta. Nenhuma explicação foi dada.
- Vamos entrar. Vamos, deixem de pergunta. – diz Júlio.
Todos entram em casa e se aquietam.
Muito preocupado, nervoso e ao mesmo tempo com medo Júlio propõe que se fechem todas as entradas, portas e janelas.
- Vamos fechar as janelas, as portas. Fechar tudo. Neide, você fez o chá pra Maria? Dá a ela e bota pra dormir. Carlinhos e Rebeca vão dormir também, vão. Vamos ficar aqui prestando atenção na rua pra ver se esse tal cavaleiro aparece de novo. Vem pra cá Neide.
Na sala Neide improvisa uma cama para os irmãos dormirem todos juntos. Neide dá chá pra Maria e coloca pra dormir junto com os outros dois.
Já é madrugada e Neide observa a temperatura de Maria e percebe que ela ta suando muito, sinal que a febre está passando. A rua está em silencio, na casa ninguém faz barulho, estão todos atentos. Ouvem-se umas batidas na porta, o trinco mexe e o medo toma conta dentro de casa. Silencio total. Uma voz feminina chama lá de fora.
- Ola! Tem alguém ai?
- Devagar, Júlio vai até a porta.
- Quem e que ta aí? – indaga Júlio assustado.
- Sou eu, Marieta.
Júlio abre a porta para D. Marieta - uma senhora com aproximadamente sessenta anos de idade. Vizinha de Júlio.
- Como vai Júlio? Ta tudo bem ai? Eu ouvi o grito da menina de vocês e pra falar a verdade eu fiquei com medo de ir até lá na mesma hora pra ver o que tinha acontecido. Também o senhor apareceu logo Júlio ai eu fiquei tranqüila. Agora eu vim ver. O que foi mesmo?
- A senhora viu alguma coisa passar pela rua naquela hora D. Marieta? Alguém montado num cavalo?
- Não. Não vi nada, apenas os gritos de Maria. Mas se ta tudo bem, vou indo e qualquer coisa me chame em casa, eu vou ta acordada pronta para ajudar no que for preciso Júlio.
- Ta bom. Obrigado!
- De nada, boa noite!
- Boa.
A noite passa devagar, Júlio esta impaciente, as horas parecem não passar, ele olha para o relógio da parede, incansavelmente. As cortinas que deixam frestas na janela permitem que Júlio fique atento ao movimento da rua, nada acontece, apenas latidos de cães ouvidos de longe. Neide, tomada pelo cansaço, dorme ali mesmo sentada num banco da sala, debruçada sobre a mesa.
- Eu to com um sono danado, vou me ajeitar por aqui mesmo, enquanto olho as crianças dormirem e observo a febre de Maria.
Horas depois.
- Mamãe,mamãe! – grita Maria assustada.
- Psiu, cala essa boca menina.
- To com medo, o homem vai me pegar!
Neide acorda e logo vem cuidar da menina.
- Calma filha, não vai não, eu to aqui do seu lado.
Passa um tempo e a noite volta a ficar tranqüila, o silêncio toma conta. Neide volta a dormir debruçada sobre a mesa. As migalhas de comida espalhadas pela sala atraem as baratas que à noite circulam pela casa. Uma voa e sobe na mesa, come as migalhas e depois anda na mão de Neide que esta debruçada.
Júlio, sentado numa cadeira, está quase cochilando ao mesmo tempo em que vigia a rua pelos vidros da janela.
- Uai! Acode Júlio! – grita Neide.
- O que foi mulher?
Neide vê que foi uma barata que andou sobre sua mão. A barata vai embora correndo pela casa.
- Ai que susto! – aos risos Neide pede desculpa. - Foi uma barata.
- Ai, Ai... Tu vai me deixar doido viu Neide.
Aproveitando mais um momento de silêncio da madrugada todos dormem na sala: Júlio sentado na cadeira, Neide debruçada na mesa e as crianças na cama improvisada.
Passada a noite, amanhecendo o dia o galo começa a cantar.
O sol nasce por detrás da casa e na rua é grande o movimento de gente passando, indo para seus trabalhos e seus afazeres diários.
Neide coloca na mesa, café com leite e pão pra seus filhos Carlinhos e Rebeca. Com as costas da mão, observa que Maria esta bem e sem febre e lhe da uma mamadeira de mingau. Júlio não quis comer nada, sai cedo pela vizinhança em busca de informações sobre o acontecido na noite anterior. Pergunta ao povo na rua e nas portas. Ninguém sabe e ninguém viu. Parece que as pessoas não querem falar. Júlio fica intrigado e ao mesmo tempo irritado. Sem solução volta pra casa.
Neide cuida das crianças e faz suas recomendações.
- Comam tudo viu meninos. Maria tome o mingau todo ta filha. Você vai ficar bem viu... Mamãe vai trabalhar, mas volta logo, prometo que não vou demorar.
- Meninos, graças a Deus ta tudo bem não é meus amores. Papai vai sair e mamãe também. Não saiam de casa enquanto eu não voltar ta certo? Esqueçam o que aconteceu ontem à noite, não foi nada viu. Dá beijo em papai vai. Eu amo vocês! Fiquem tranqüilos... Não vai acontecer nada!
Neide e Julio saem juntos, beijam as crianças e se despedem.
Julio passa o dia fora e Neide vai trabalhar. Ela pega o seu carrinho de catar papelão e segue para o centro da cidade. Faz algumas coletas de papelão e materiais descartáveis e preocupada com os filhos, volta pra casa. Guarda o carrinho de papelão nos fundos da casa e cobre com uma lona.
Ao entrar a casa Neide encontra as crianças brincando no chão da sala, logo todos param para recebê-la.
- Mamãe chegou. Vou tomar um bom banho e dar beijo em todo mundo. Fiquem aí que já volto. – diz Neide sorridente.
Afastando-se continua fazendo indagações. - Sentiram falta da mamãe?
E todos respondem juntos - Sentimos.
Depois do banho Neide vai para o quarto enquanto as crianças continuam brincando. Espalham os brinquedos por toda a sala. Maria brinca com os bonecos que ganhou da festa de aniversario do seu colega da escola.
Neide volta para a sala e diz:
- Pronto. Olha a mamãe aqui... Ficaram quietinhos, brincaram muito? Mamãe vai preparar alguma coisa pra gente comer, ta bom? Papai ainda não chegou né? Já, já ele vai ta ai também.
Neide observa a temperatura de Maria e vê que já não sente febre e vai para a cozinha e prepara o almoço das crianças. Liga o rádio de pilha que fica em cima da mesa da cozinha e ouve musica tranquilamente. Depois coloca o almoço das crianças na mesa da sala e também almoça junto com elas. Depois do almoço as crianças voltam a brincar enquanto Neide arruma a casa, olha no relógio da parede da cozinha e fica preocupada com Júlio que demora de chegar.
No final da tarde Júlio chega.
- Olá crianças. Tudo bem por aqui?
- Tu tava onde homem? Até uma hora dessas? – indaga Neide.
- Tava por aí. Procurei saber sobre o tal cavaleiro e nada... Sabia. Eu to preocupado viu Neide. Não entendo como isso aconteceu... Mas acho que não foi nada não viu... Sei lá... O que você acha?
- É tanta coisa que se vê por ai que eu já nem sei viu Julio? Mas o importante e que Maria ta bem. Esquece esse negócio de cavaleiro maluco.
- De qualquer forma vamos se preparar de novo, vai que esse danado aparece hoje? Agente não pode ficar despreparado. Vamos fechar tudo de novo e prestar atenção na rua.
- Estas cortinas tão é ruins, viu? Vou pegar uns lençóis lá dentro pra tapar mais a claridade que ta entrando pela janela.
- É mesmo, faz isso.
Neide pega na cômoda que fica ali na sala, uns lençóis e ajuda Júlio a escurecer a sala enquanto Neide coloca as crianças para dormirem na mesma cama da noite anterior. Ali mesmo na sala. Na cozinha Júlio come alguma coisa enquanto Neide lava e arruma as louças.
Mais uma noite de preocupações, e todos se preparam para evitar qualquer surpresa.
- Você deve ta cansada, vá dormir eu fico de vigia na janela. – diz Júlio para Neide.
Neide vai até a sala para arrumar os brinquedos que os meninos deixaram espalhados.
- Vou arrumar essa bagunça que os meninos deixaram aqui na sala. Olha pra isso quanto brinquedo à toa! Todo dia eu falo, mas não tem jeito, sempre sou eu que arrumo.
- Tu já não sabe?
As crianças já dormem e Júlio a postos na sala, pela janela fica atento ao movimento da rua que começa a ficar vazia. Passam poucas pessoas, apenas uns velhos que voltam do culto da igreja protestante. As luzes da casa estão apagadas, fica apenas uma penumbra que vem da cozinha que ainda continua acesa. Neide prossegue na sala arrumando os brinquedos das crianças.
- Ai! Me furei aqui!
- O que foi mulher? Tu já gosta de me da susto.
- Me furei... Aaai... Vem ver aqui. Acende ai a luz vai.
Julio levanta-se e acende a luz da sala. Eles encontram entre os brinquedos de Maria que estão atrás do sofá, alguns bonecos. Júlio pega um boneco e observa curioso.
- O que é isso? Eu nunca vi esses brinquedos de Maria...
- Foram os que ela ganhou na festinha de aniversário de Rafael, o filho de Margarida.
- Rafael?
- É... Foi um bolinho que ela fez na escola, você não lembra? Alias, você não foi. Fui eu que fui buscar ela no dia.
- Não, eu não fui. Eu nunca tinha visto isso.
No meio dos bonecos havia um cavaleiro montado, espetado com uma agulha de costura.
- Olha isso Neide.
- Ah! Isso ela ganhou na festinha, me lembro que ela me mostrou quando agente tava voltando.
Depois de uma pausa, Neide olha para Júlio.
- Você ta pensando o que eu to pensando?
Desconfiado, Júlio responde: - Será?!
Nesse momento Neide resolve contar para Júlio como foi a festinha de Rafael.
- Foi na sala de aula que a festa aconteceu. Tinha muitas crianças da turma de alfabetização numa sala de aula, em volta de um bolo de aniversario, colocado sobre a mesa do professor. As crianças cantaram parabéns em comemoração ao Rafael, seu colega de sala e o aniversariante, juntamente com sua mãe Margarida ele distribui bolo para as crianças num guardanapo, ajudados pela professora e distribuiu também uma sacolinha com alguns brinquedos como lembrança.
Todos estavam muito alegres parabenizaram o aniversariante e foram saindo da sala aos poucos. Maria estava toda arrumadinha com os cabelos penteados no estilo rabo de cavalo, com a farda da escola e uma bolsa a tiracolo sendo a última a sair da sala, se despediu de Rafael e da pró. Neide aguarda por Maria no portão da escola. Logo Maria chega, Neide dá-lhe um beijo e, andando pela calçada voltam para casa. No caminho Maria vai mostrando os brinquedos que ganhou na festa de seu colega Rafael. Foram vários bonecos e entre eles um montado num cavalo, vestido com uma capa e chapéu na cabeça. Neide observa vagamente e manda que Maria os guarde.
Enquanto Neide conta para Júlio sobre a festinha de aniversário de Rafael, as crianças brincam no chão da sala, e Maria dorme no chão ali perto.
- Não é possível... – pergunta Neide para Júlio - Você viu mesmo o cavaleiro ontem homem?
- Confuso ele responde - Acho que vi... Sei lá... Maria disse que viu.
Impaciente continua Neide - Acha? Viu ou não viu? Você vem me dizer que Maria viu.
- Na verdade não vi. Lembro de um vulto que parecia um homem montado num cavalo, vestido com uma capa escura. Eu tava longe quando ouvi o grito de Maria. Ela me disse que era isso que eu to dizendo, mulher. Ah! Sei la... Eu não to maluco!? Nem sei...
- Vamos perguntar a Maria.
Juntos acordam Maria.
- Maria... Maria... Acorda filha! – diz Júlio.
- Hã! Que foi pai? – responde ainda sonolenta.
Julio mostra a agulha espetada no boneco de Maria.
- O que é isso? Quem fez isso com seu brinquedo?
- Ah! pai, foi eu que fiz isso com ele.
- Porque você fez isso com ele?
- Ah! pai... – rindo continua - Ele não queria me obedecer. Eu pedia a ele pra me levar pra passear, mas ele não me levava. Então fiz isso com ele e falei que enquanto ele não me levasse para passear eu não arrancava a agulha.
Impressionado com a atitude de Maria - Mas menina!...
Espantado Julio e Neide dão boas risadas. Maria olha pra eles e não entende nada.
- Me responda agora minha filha. O que você viu ontem à noite quando eu te peguei no meio da rua? Você chorava assustada.
Apontando para o boneco ela responde - Foi ele papai, vi esse homem aqui, montado nesse cavalo mesmo, querendo me pegar.
Julio e Neide se olham e dão boas gargalhadas juntos.
- Ou será que foi a febre? Dizem que a febre faz ver coisas...
E continuam rindo juntos.
“Fim”