Vodu

Sua presença no espaço vazio era marcada pela grossa jaqueta branca. Ele era moreno com seus finos cabelos loiros desgrenhados distribuídos pelas costas, até parecia um surfista. Ao passar por mim a primeira vez, foi como se lá no fundo, num canto escuro do meu ser, algo gritasse tão alto de pavor, que minha voz não era capaz de reproduzir.

A semana passou normalmente após o susto inicial, fiz aniversário, exames médicos, tirei carteira de habilitação... Eu estava feliz. Era domingo, o mesmo que o da primeira vez, chuvoso, e, novamente, o estranho passou. Dessa vez, ao invés do grito, tudo ficou silencioso, como se aquele momento fosse uma ruptura no tempo.

Novamente, a semana correu normal. Visitei minha amante, dei um presente caro para minha esposa, ajudei as crianças com o dever... Eu estava normal.Outro domingo cinza, as árvores balançavam como na primeira vez, e o estranho passou. Agora, foi minha visão que me falhou, fazendo-me ver vários riscos coloridos, como se fossem balas traçantes.

Mais uma vez...mais uma semana que voou tranqüila e normalmente. Fui ao trabalho, briguei com o chefe, passei a mão na filha dele...eu estava estressado. De novo o domingo vazio, os carros estavam num grande engarrafamento e lá veio o estranho. Minha espinha gelou... E queimou ao mesmo tempo,como se nevasse dentro de um vulcão.

Outra semana ainda normal. Encarei alguns arruaceiros, “brinquei” com a namorada de um deles, fumei meus três maços de Derbie... Eu estava exausto. E como sempre(ao menos naquele mês) o torturante domingo voltou, todos corriam para se abrigar da chuva com exceção é claro daquele estranho.Ao cruzar meu caminho, um gosto azedo inundou minha boca, como se eu tivesse acabado de chupar um limão inteiro.

Minha semana, incrivelmente, foi perfeita. Minha mulher e minha amante se conheceram, se gostaram e propuseram que formássemos um trio, meu chefe foi morto e eu transferido, meu filho me deu uma caixa de cubano... Eu estava no céu. O domingo acordou ensolarado, todos estavam nas ruas para aproveitar o dia e eu havia acabado de acordar com duas mulheres gostosas do meu lado.Como de costume, fui até a padaria que ficava a cinco quadras da minha casa, mas dessa vez com um sorriso imenso no rosto.

Quando voltava com o pão, escorreguei numa poça e o mesmo estranho me ofereceu ajuda... Sem dizer uma única palavra, apenas esticando a mão em minha direção. Sua feição estava diferente das outras vezes, ele parecia triste, derrotado, então o chamei para tomar café na minha casa. O caminho todo ele não pronunciou uma única palavra, foi ai que eu percebi que nunca ouvira a voz daquele sujeito. Nem na hora de aceitar, ele falou, apenas acenou com a cabeça.

Ao chegar em casa, minha mulheres estavam chorando abraçadas; eu ia correndo ver o que tinha acontecido, mas o estranho me segurou pelo braço, e pela primeira vez eu ouvi sua voz grave e imponente:

- Esqueça, elas estão com raiva e condenadas... Uma por ser libertina e a outra por ser tão submissa. Você morreu de AIDS e elas estão morrendo também.

- Como assim eu morri!? Eu estou aqui falando com você!

Terminei de falar isso e vi minha casa e as duas mulheres pegando fogo... E um grito familiar ecoou ao fundo. Voltei dois anos antes de conhecer minha mulher, eu me vi novamente na polícia, meu chefe ainda estava vivo e tudo como era. Eu entrei numa casa, havia esquecido disso, que pertencia a um grande traficante. O matei a queima roupa, essas eram as ordens.

Até ali, nada demais, apenas estava cumprindo meu dever... até que outra cena me chocou. A mulher do traficante estava chorando na sala... Grávida, e eu mesmo assim abusei dela. A chamava por todos os nomes baixos que conhecia, a tratei como o animal que eu realmente acreditei que ela fosse naquele dia. Após tê-la usado e torturado como pude, deixei-a para morrer.

O que eu não sabia...é que ela não havia morrido. Teve uma linda filha e ambas se suicidaram quando ela fez cinco anos e foi abusada por outro policial tão escroto quanto eu. O que eu não sabia é que a mulher durante cinco anos e durante o resto da gestação treinou a filha... Na verdade, a garota foi estuprada com consentimento da mãe, para que entendesse o mal que eu havia feito a mãe dela. Parecia coisa de filme de terror.

Agora estou aqui... o anjo que tentou me avisar agora me deixava nos braços frios e puros da morte, que não passava daquela menina cheia de cachinhos que exibia um sorriso tão doce e sádico que eu comecei a sentir dor antes mesmo dela começar o seu show.

Inari
Enviado por Inari em 28/11/2010
Código do texto: T2642229
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