O Chalé

Meu chefe me chamou à sua sala quando cheguei ao trabalho naquela manhã. Fazia tempo que eu não me motivava a sair para trabalhar, ao acordar, uma desagradável sensação me impedia de levantar da cama. Assim que abria os olhos, me dava conta dessa situação de desinteresse. E eu sabia o motivo: o barulho daquela perna se arrastando!

Nicolas era um antigo funcionário daquele pequeno jornal. Reservado, quieto, não gostava de brincadeiras, era comum trabalhar o dia inteiro sem proferir uma palavra. Era limitado, sem nenhuma perspectiva, mas responsável e dedicado e um bom colega de trabalho. Um fato de sua infância fez com que ele puxasse de uma perna. Nicolas era o mensageiro do jornal e durante todo o dia levava e trazia correspondências de um setor para o outro. E durante todo o dia eu ouvia aquele som, o som da perna de Nicolas arrastando no chão.

Assim que saí, indiferente, da sala do chefe, tomei uma caneca de café, como já era de hábito antes de ir para minha mesa cheia de papéis. Tinha sido assim nos últimos meses. Eu chegava, quase sempre atrasado, tomava meu café e ia para minha mesa. Meus colegas me olhavam, seguindo meus movimentos até eu me sentar, depois se entreolhavam e voltavam ao trabalho, sinalizando negativamente com a cabeça, mais por comiseração do que por reprovação. E eu seguia minha rotina. O barulho das máquinas de impressão por trás da divisória era alto e ininterrupto, mas eu só ouvia a perna de Nicolas.

Ao término do expediente, peguei meu casaco e fui depressa para casa arrumar minha mochila de viagem. Era sexta feira e eu tinha planejado ir para o chalé ao pé das montanhas, herança de meu avô que ali viveu sozinho durante muito tempo. Era um chalé antigo, porém muito bem conservado, graças a Kinder, um velho amigo de meu avô que morava próximo ao vale e que sempre ia até lá para uma manutenção.

Tudo arrumado, joguei a mochila na carroceria da velha caminhonete, também herança de meu avô, e parti em direção à estrada que dava para as montanhas, para um fim de semana longe daquela rotina, longe de Nicolas e sua maldita perna! Era outubro, mas o vento gelado de outono não me desanimava.

Quando cheguei, já estava bem escuro. Eu não sabia ao certo que horas eram porque, quando ia para lá, não levava relógio, queria ficar em paz, livre do tiquetaquear enfadonho de um relógio e seu ponteiro me fazendo olhar para o alto da parede a todo instante. Agora me lembrei, além da perna de Nicolas, eu também podia ouvir o relógio.

Kinder havia cortado lenha e eu acendi a lareira. O chalé até que era confortável. A lareira era muito boa, construída na parede dos fundos. A porta ficava em frente a ela. Ao lado da lareira, à direita, havia uma janela, ao lado da porta, também à direita, outra janela, de modo que as duas janelas ficavam uma de frente para a outra. Ao pé da lareira, como não podia deixar de ser, havia uma poltrona e uma banqueta de madeira, feita pelo meu avô. Meu avô era um excelente carpinteiro, podia fazer qualquer coisa com madeira.

Havia um piso superior fazendo as vezes de quarto, com uma janela que dava para os fundos. Na parte de baixo, num canto embaixo da escada de madeira, havia um baú, onde meu avô guardava suas ferramentas de carpintaria.

Tudo ali era como têm que ser os chalés nas montanhas.

A luz do fogo iluminou e aqueceu o ambiente. Preparei uma sopa, dessas enlatadas. Enquanto a sopa esquentava, saí para a pequena varanda do chalé e fiquei a observar aquela escuridão. Ouvi ao longe o uivo de um lobo, que se confundia com o do vento. Nada. Não havia nada ali a não ser a floresta. E o meu chalé. A escuridão era tanta que chegava a sufocar. Eu estava tranquilo, em paz, e o mais importante: longe do barulho da perna de Nicolas, para lá e para cá, indo e voltando, arrastando e parando, como uma cantilena infernal e interminável nos meus ouvidos. Como eu o odiava! Havia dias em que tudo o que eu queria era matá-lo!

Voltei para o interior do chalé. Coloquei uma concha de sopa em uma caneca e me sentei na poltrona para saboreá-la. Estiquei as pernas e coloquei os pés sobre a banqueta. Dirigir me causava dores, provavelmente obra da idade, eu já não era tão moço. Segurei a caneca com as duas mãos com o propósito de aquecê-las. Depois, fiquei a observar o fogo e as faíscas de lenha que pulavam. Fiquei assim durante um tempo, até que adormeci.

Acordei com um barulho. Meio zonzo, olhei em volta, o fogo estava fraco, o ambiente frio e escuro. O que teria sido? O barulho foi tão nítido. Coloquei mais lenha na lareira e logo as chamas aumentaram. Tornei a me sentar na poltrona. Ainda intrigado com o barulho que me fez acordar, voltei a observar o fogo. Adormeci novamente.

Não sei por quanto tempo dormi, sei que o barulho me acordou de novo. Levantei, agora de um salto! Fui até a janela dos fundos e olhei. Nada. Depois olhei pela janela da frente. Nada. Nada havia ali que não fosse a floresta, e o meu chalé. Então, fui até a porta. Não sei explicar por que, mas hesitei ao colocar a mão na maçaneta para abrir a porta. 'Que bobagem! Não tem nada aqui.'

Abri a porta. Uma lufada de vento gelado me atingiu. Olhei. Escuridão. Com uma lanterna, dei a volta por trás do chalé. Nada. Voltei para dentro e tranquei a porta. Sentei-me novamente em frente à lareira. O fogo produzia sombras que dançavam pelo chalé, subiam e desciam pelas paredes de madeira.

Resolvi ir me deitar. Enquanto eu subia a estreita escada, me pareceu ter ouvido o mesmo barulho. Parei. Silêncio. Voltei a subir, pensando que deveria ser algum animal noturno no teto do chalé.

Deitei-me, já devia estar prestes a amanhecer e eu tencionava acordar cedo para pescar no lago que havia nas proximidades. Me cobri com uma grossa manta de lã de carneiro, virei de lado e fechei os olhos.

De novo o barulho! Parecia mais perto dessa vez. Num gesto rápido me sentei na cama, e fiquei ali. E ouvi de novo. Parecia que algo se aproximava.

Ergui-me e fui até a janela. Nada. Sentei de novo e prestei atenção. E ouvi novamente. 'Esse barulho!... Meu Deus! É um barulho de... de uma coisa arrastando!'

Não é possível! Só posso estar sonhando, pensei em voz alta.

Desci as escadas e quase me arrebento lá embaixo. Olhei novamente pelas janelas. Nada ali, a não ser... Bem, já sabem. Então, fui até a porta. Ao me aproximar, parei. Dei uns passos para trás e fiquei ali, olhando para a porta. O som parecia vir do lado de fora. Continuei ouvindo. Algo se arrastava, se aproximava... Fosse o que fosse, estava cada vez mais perto, arrastando e parando, arrastando e parando... Até que parou! Eu olhava para a porta. Meu coração estava tão acelerado que eu quase podia ouvi-lo! Um suor frio e pegajoso brotava da minha testa. Senti a nuca arrepiar, minhas mãos e pés estavam gelados, a boca estava seca. Se quisesse dizer algo ou gritar, não conseguiria. Fiquei ali, olhando para a porta, completamente paralisado por um medo que eu jamais imaginei que pudesse sentir. De repente, a porta se abriu! Um vento gélido invadiu o chalé apagando a chama fraca da lareira. Coisas caíram pelo chão. E eu ali, estático! Foi então que percebi, creio que senti... algo, ou alguém, em frente à porta. Eu não conseguia definir o que era, a escuridão não deixava. Então, o barulho recomeçou: o som de uma coisa que se aproximava, se arrastando! Eu não via nada, apenas ouvia... Arrastando e parando, se aproximando, arrastando e parando... Achei que meu coração fosse explodir! E o barulho cada vez mais perto... mais perto... Quando senti que “estava” bem à minha frente, parou! Eu estava em choque!

A luz do dia entrava pela janela do quarto. Percebi que estava deitado em minha cama e que estivera dormindo. Levantei-me e aí me lembrei do ocorrido. Lembrei do barulho, da porta abrindo, do fogo apagando, do suor, “daquilo” parado na minha frente, do pavor!

Desci as escadas, ainda meio assustado. Fui até a pia, joguei uma água no rosto e saí para a varanda. O dia estava nublado. Fiquei alguns minutos observando, não notei nada de diferente ou de estranho. Nada. Dei a volta, olhei atrás do chalé. Nada. Só a floresta, e o chalé. De repente, algo me chamou a atenção. Eu tinha ouvido o barulho novamente! 'Não! Não pode ser! De novo, não! Estou louco?'

Voltei a sentir pavor! Me virei para retornar e ouvi novamente: arrastando e parando, arrastando e parando... A sensação que eu tinha era de que, o que quer que fosse, tentava me alcançar, mas era lento, se arrastava... Assim que entrei no chalé, o barulho parou.

Eu não sabia o que fazer. Decidi ir embora! Enfiei umas coisas de qualquer jeito na mochila e ia saindo às pressas daquele chalé quando notei uma coisa: o baú com as ferramentas do meu avô estava aberto!

Apressei-me em direção à caminhonete. Podia ouvir o barulho bem perto, como se estivesse querendo me alcançar, me impedir de ir embora!

'Nicolas! Vou matá-lo! Juro que vou matá-lo! Ele está me enlouquecendo com aquela perna! A culpa é toda dele!'

Já estava decidido: ia matar Nicolas! Não me importava ir para a cadeia. Queria era me livrar daquele barulho, do som daquela perna se arrastando! Queria me vingar de Nicolas por ter me enlouquecido!

Entrei na caminhonete e voltei para a cidade. As dores dificultavam dirigir em alta velocidade, mas eu estava determinado!

Eu sabia onde Nicolas morava, fui direto para a casa dele. Toquei a campainha. Ninguém atendeu. Girei a maçaneta, a porta estava destrancada. Entrei. De repente dei de cara com Nicolas. Golpes a esmo! Três, quatro, muitos! Não via o rosto de Nicolas, mas ouvia seus gemidos abafados, seu corpo deixando um rastro vermelho e mal cheiroso na parede. Depois, parei. Fiquei olhando para aquela criatura insignificante, no chão, ensanguentada. Ele ainda gemia, e eu ainda sentia ódio! Dei o último golpe, na perna! Naquela maldita perna! O sangue jorrava. Ele estremeceu por alguns instantes e então ficou imóvel.

Permaneci naquela cena durante algum tempo, até que senti frio. Muito frio. Atordoado, saí de lá. Ia na direção da caminhonete quando, para meu pavor, ouvi de novo aquele barulho: arrastando e parando, arrastando e parando..., como se estivesse vindo atrás de mim. Foi então que me dei conta de algo. Parei. O barulho também parou. Olhei para mim, para minhas mãos: estavam cheias de sangue, a roupa empapada de sangue, olhei para baixo, para minhas pernas, ensanguentadas! Uma dor lancinante me fez gritar.

Dei um passo, uma de minhas pernas se arrastou. Dei outro, a perna se arrastou de novo. Mais um e a perna se arrastou outra vez. E cada vez que eu dava um passo, ouvia aquele barulho: o som de algo arrastando e parando, arrastando e parando... E tudo então, escureceu.

Eu não ouvia mais nada. Só a floresta, e o Chalé.

Bete Allan
Enviado por Bete Allan em 27/11/2010
Reeditado em 06/01/2015
Código do texto: T2639448
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