CAFÉ DE MORTE

Cheguei em casa, e chovia muito.

Eram por volta das onze e meia.

Vinha todo encharcado, pois voltara a pé do teatro.

Sem guarda-chuva, sem capa, sem medo da noite escura, sem amor pra recordar.

A peça tinha sido uma porcaria; não valia o preço do ingresso.

Mas tudo bem.

Pelo menos, quando eu entrasse em casa, estariam me esperando minha velha tia e sua cadelinha Rebita.

De fato, mal entrei, Rebita apareceu fazendo festa.

Sorri pra ela, lhe fiz um ligeiro carinho e dobrei pra cozinha.

Minha tia com certeza lá se encontrava, já que um cheiro agradável de café invadia a casa.

Mas nem sinal dela na cozinha.

O fogão dormia silencioso.

E nenhum resquício de café...

Então, de onde vinha aquele cheiro tão forte, tão vivo – tão...?

Chamei a cadelinha.

Em resposta, só o silêncio.

Intrigado, fui pro quarto da minha tia.

Bati uma, duas, tia!, tia! – nada.

Abri a porta.

Entrei no escuro e tateei o interruptor.

Quando a luz acendeu, deparei com minha tia caída ao pé da cama.

Deitada ao lado, focinho no chão, Rebita me olhava furtivamente...

Mas, como...?!

Corri ligeiro pra minha tia, tentei erguê-la pra cama.

Ela era finada, a pobrezinha!

Alvoroçado, a beijei e abracei, disse coisas.

E percebi que era do seu vestido, dos seus cabelos que se desprendia o tal cheiro de café...

...

Esta noite faz um mês que minha tia morreu.

Foi coração, o médico falou.

Tenho trinta e três anos e estou chegando mais uma vez do teatro.

Sem guarda-chuva.

Se amor pra recordar.

Completamente molhado.

(A peça não valia o que paguei!)

Vou preparar uma xícara de café pra me aquecer.

Depois, talvez, eu escreva um poema sobre nada.

E, quem sabe, estrangule Rebita...

Hélio Sena
Enviado por Hélio Sena em 16/11/2010
Código do texto: T2618103