ERA UMA BELA TARDE NO ANO DE 1977 , EM BELO HORIZONTE...

Era uma bela tarde do ano de 1977, em Belo Horizonte.

Quem conhece aquela cidade sabe que ela é capaz de proporcionar a seus habitantes ou aos seus visitantes, dias de grande claridade, de tardes melancólicas gratinadas pelo esplendor exuberante do por do sol.

E lá estavam aqueles três amigos estudantes com o coração aquecido pêlos sonhos e a mente ansiosa pelas descobertas promissoras de um mundo novo. Cheios de idéias na cabeça e um grande desejo de abraçar a liberdade e possuí-la na palma da mão e depois soltá-la como uma borboleta ao vento.

As notícias que chegavam até eles os colocavam sob o estigma do medo. Não entendiam muito bem o que se passava, mas sabiam que o Congresso Nacional havia sido fechado. O então presidente Ernesto Geisel era um general com grande poder de mando. O coronel Erasmo Dias reprimira com bombas e cassetetes elétricos o III Encontro Nacional de Estudantes, realizado no dia 22 de setembro em São Paulo. A imprensa marrom (jornais que circulavam na clandestinidade) chamada “alternativa” que lutava tentando rasgar a mordaça imposta pela censura no país transmitia informações não muito animadoras. Dizia que muitos haviam sido presos e torturados, e outros mortos. Por causa disso o Encontro havia sido transferido para Belo Horizonte que, naqueles dias, era um centro de grande agitação político estudantil. Os três amigos estavam agitados e não queriam perder a chance de participar da história que então se escrevia. O encontro seria realizado na Escola de Medicina, cujo “DA” (Diretório Acadêmico) abrigaria o encontro de cúpula dos estudantes. As entradas da capital permaneceriam vigiadas, sob forte esquema armado, 24 horas, pelo exército, revistando os ônibus que chagavam de toda parte do país, e prendendo muita gente.

O plano era o seguinte. Aliás, tudo tinha que ser muito bem planejado. Os amigos não estavam preocupados em saber quem estava por trás de tudo aquilo. Eles se sentiam envoltos pela teia da história que estava sendo tecida ali, bem diante de seus narizes.

Enquanto o exército preocupava-se com os ônibus, o esquema montado permitiria que os líderes passassem despercebidos. Estudantes chegavam de todas as partes, desciam por todas as ruas, sempre em grupos. Pouco a pouco formaram um cordão humano de isolamento em torno da Escola de Medicina. Era uma grande multidão de jovens que ia aglomerando-se em torno das grades que cercam a escola. Meninos de cabelos compridos, anelados, lisos, barbudos ou imberbes, esquálidos ainda da adolescência recente, olhos vibrantes e corações apaixonados pela vida. Meninas corajosas, sonhadoras, companheiras inseparáveis de seus pares, alegres, mulheres de futuro.

Enquanto lá dentro os líderes discutiam as questões de ordem, lá fora a maioria gritava palavras de ordem: “abaixo a repressão”, “abaixo a ditadura”... ”o povo unido, jamais será vencido”... Os policiais ficavam rondando por fora do cordão de isolamento, cada um com um daqueles cães treinados especialmente para estas ocasiões e com cassetetes elétricos.

O Eduardo, um dos três amigos, morava em um apartamento privilegiado na esquina da Rua Guajajaras com ampla visão para a Av. Afonso Pena. Neste local eles permaneceram tocaiados até então. A ansiedade devorava tudo que estivesse ao alcance da boca. Podia-se tocar o medo que emanava no ar como uma névoa gelatinosa em que ressoava tristonhos ecos daqueles que já haviam sumido pelos labirintos da tortura. Todos eram amados por todos mesmo que não soubesse quem fosse. Todos se queriam bem. Todos choravam e se alegravam por um apenas ou por todos juntos.

Da sacada do apartamento dava para ver os camburões do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) correndo atrás e lançando bombas sobre os manifestantes, em frente ao Palácio das Artes, que fugiam apavorados. E os cães latiam e babavam como feras. Correria, gritos, berros, latidos, o motor dos camburões, todo este barulho provocava um som estridente que penetrava corpo adentro eletrizando a atmosfera. Eram cenas dantescas, de tensão e terror. Estes episódios ocorreram durante todo o dia, praticamente, porque o encontro estava marcado para as quatro horas da tarde. Seria demorado e gastaria tempo para que tomassem as decisões que o movimento esperava.

O que estavam esperando? Será que teriam que se lançar na arena? O que lhes competia naquele momento? Poderiam ficar ali assistindo de camarote, ou arriscar suas próprias vidas. O silêncio preenchia o espaço da ausência da coragem. Porém depois de conversarem e almoçarem, inclusive, decidiram que não poderiam ficar ali parados, não podiam se omitir. Eles tinham que ir até a Escola de Medicina engrossar o cordão de isolamento. Na verdade a repressão não tinha, a princípio, intenções de causar ferimentos ou prender alguém especial. Mas a iminência do caos desestabilizava qualquer ordem e a ópera catastrófica prorrompia sem maestro. Era um aparato destinado a amedrontar através do pânico, porque em Brasília o presidente Geisel já começava a preparar os militares para a possibilidade de uma abertura política.

Os estudantes eram jovens promissores da sociedade, que se sentiam compelidos a defender a liberdade de expressão, a liberdade de ser cidadão, de poder caminhar com as próprias pernas, de construir uma nova nação com as próprias idéias.

E lá estavam eles, os três amigos, juntos, misturados à multidão, quando em um bar da esquina iniciou-se uma ação da polícia e um tumulto logo se formou. Estavam prendendo uma companheira, ninguém sabia o motivo. Gritos de “abaixo a repressão”, os cachorros latiam; jovens gritavam palavrões. Em um rápido instante um dos três foi agarrado por um cão pastor que lhe mordeu a perna, porém como ele estava de calça jeans, por sorte, o cachorro ficou preso a ele, pelos dentes, através de um pedaço da calça. Neste momento, como se um sopro poderoso viesse do alto, todos se afastaram formando uma grande arena. Lá no meio, bem no centro do foco, com o policial segurando o cachorro que o segurava pelo pedaço da perna da calça, sobrou o pequeno jovem. Os olhos fixavam-se nos olhos do cão, desafiavam o poder do medo. Na mente nada. Na garganta um grito calado. Em volta de si meninos e meninas apavoradas. Ninguém se atrevia a mover em direção a ele. Será que viria algum herói para tirá-lo daquele covil. Toda a atenção voltou-se para eles (o jovem, o cão e o soldado do Dops). Todos gritavam, urravam, choravam. Em seguida outro policial aproximou-se com seu cão, instigando-o sobre o estudante caído. Todos paralisados.

A situação estava no limite, quando pelo ar veio uma enorme pedra atirada pelo Heitor, um dos três, que acertou em cheio o capacete do soldado que mantinha o cachorro preso sobre o estudante. Atordoado, o soldado relaxou a corrente. Neste momento o estudante levantou-se deixando a metade da calça jeans nos dentes do pastor alemão.

Fugiram entre a multidão que os protegia como um campo de trigo que se fecha, quando por entre seus pendões passa uma raposa acuada.

Foram socorridos pêlos médicos e enfermeiros do hospital São Lucas, que trataram o ferimento da dentada na perna do estudante e esconderam os três até que a polícia fosse despistada.

Foi uma bela tarde, carregada de emoções e eu nunca me esquecerei daquela pedrada do Heitor na cabeça do guarda. E deste acontecimento tirei uma grande lição: Às vezes, uma pedrada no alvo certo resolve um problema que uma multidão inteira não foi capaz de resolver.