O JULGAMENTO DE JEAN SOBRAU

Após seu despertar à luz e com tantos questionamentos a serem feitos. Encontrou-se perdido em meio ao novo, silencioso e esplêndido lugar. Por mais que buscasse em seu subconsciente, algo que pudesse explicar o seu estado presente de alienação, não se via em condições de alcançá-lo.

Havia um brilho vindo de todo lado. Todas as cores d’antes vistas na Terra, todas as formas, tudo que fora chamado de coisa, hoje nem se compara ao que vê. Cabe lembrar que suas decisões do passado, mesmo as mais difíceis já tomadas, nada seriam como a que estava para tomar.

Passou a andar trilhando pela luz de maior refração naquele estranho, e como não, divino caminho. Ali não havia placas que o guiassem, nem um mensageiro que o coordenasse, apenas a própria intuição e nada além.

Quando o grande brilho o parecia ainda mais forte, talvez algo insuportável para prosseguir, tudo se apagou. Uma força misteriosa jogou-o ao chão como fazem as árvores aos seus frutos maduros e suculentos expulsando-os de seus galhos.

Era um homem de aparência jovem, teria no máximo trinta e cinco anos, cabelos curtos, pouco se via grisalho neles, barbas por fazer, olhos castanhos, mas em tonalidade bastante viva, corpo em forma, podendo-se dizer que tinha completa simetria de seus membros, tanto os superiores quanto os inferiores. À vista, notava-se perfeito latino, cabível até para dizer que pela aparência era um italiano legítimo. Entretanto, na malícia do olhar, jeito esquivo, de palavras bem escolhidas, sempre curvilíneas, nunca direto, como quem encobre seu verdadeiro “eu”, observando por este lado, era brasileiro.

Com a queda, não se sabe ao certo, mas tinha-se ficado bom tempo desacordado, então, desta amedrontadora escuridão, surge uma voz, como que de um homem experiente, vivido, com anos quais não se pudesse contar. Na verdade, era somente uma voz, ecoando de um enorme precipício, o que muitos diriam ser o maior de todos os precipícios, a mente.

- Acorde! Ordenava a voz.

- Onde estou, o que aconteceu, por que estou tão confuso? Questionou o rapaz.

- Tu estás em casa, estás onde devias estar, com quem devias estar, exatamente como devias estar. Dizia a voz, complicando grandiosamente o estado de lástima cujo homem se encontrava, e assim prosseguiu:

- Serás guiado por ti ao teu caminho merecido, no instante certo, saberás responder sim ou não quando questionado, por enquanto, sentes-te confuso, futuramente, saberá o que fazer, e mesmo não encontrando-te saberás como proceder.

- Não consigo lembrar quem sou ou o que fui, em minha mente passam mil coisas, todas desconexas. Explica o homem.

- Verás uma história, a de um homem, este por ti será julgado e por ele tu terás teu caminho. Todas as coisas antes tuas, agora não mais são, tudo te foi tirado, até mesmo a memória de teus próprios atos. Encerra a voz.

Da magia a história começa a ser revelada, como num filme de cinema, porém em amplas dimensões, algo nunca antes visto.

Esta história se inicia a partir dos três últimos dias vividos por um homem chamado Jean, Jean Sobrau.

Não importa quem foi ou o que fez em vida até seus últimos três dias. Pois a relevância aqui, está nas ações do ser, no que o torna eterno.

A vida inteira de Jean não inspiraria qualquer escrita. Homem de pouca fé, tão rico quanto arrogante, tão infeliz quanto solitário, não tinha mulher, dizia-se aberto a todas, tinha posses, nenhuma atitude. Enfim, um homem destituído de vida enquanto vivo.

Herdeiro de grandes empresas (ramo dos cosméticos), nunca necessitou provar seu valor. Sim, uma vida inteira improdutiva, um produto do meio, assim diriam os deterministas, crápulas!

Na primeira noite que antecedera sua morte, Jean sonhou, ou previu. O importante é que enquanto dormia teve uma visão peculiar de si. Estava pálido, imóvel, dilacerado em um caixão. É, ele estava a sete palmos do chão, morto, falecido, desalmado e encarcerado embaixo da terra. Mas Jean sentia-se leve, flutuando pelo teto do pequeno caixão, era a sua alma liberta de um corpo estúpido, esquecido, asqueroso. Porém próximo o bastante para vê-lo ser devorado por vermes e larvas. Parecia sentir cada perfurar de pele, cada centímetro de carne que o era retirado, contudo não ligava, havia ali uma festa da podridão, o transformar de um corpo vazio em adubo, em fonte de vida.

Mesmo não estando ali, exatamente dentro do pote carnal cuja vida era sugada com gigantesca agilidade pelos repugnantes operários da morte, ele conseguia sentir a dor de ser mastigado, engolido, digerido e desfigurado. Entretanto, Jean sorria, sentia-se incrivelmente feliz, livre, vendo aquele ser qual nunca nada havia feito em vida dar lugar a outro ou outra coisa, ou à possibilidade de explorar o que ele não fizera. Ele gritava de felicidade, urrava.

- Comam, comam. Acabem com a carne morta de meu corpo. Façam de mim um novo ser!

Mais e mais as larvas o penetravam, deteriorava pele, músculos, órgãos, tudo. O odor era inigualável, tão fétido quanto sua inatividade, podre como suas antigas atitudes. Era sórdido, era repugnante, mas a ele, lindo. E assim terminou seu sonho.

Era manhã, Jean acordava diferente no seu segundo dia de “vida”, ele sentiu-se novo, sentiu-se vivo, sentiu poder ser e fazer coisas o qual jamais faria, dali começou sua obra.

Doou seus pertences, e eram muitos, restou-lhe apenas o suficiente para comer, beber, descansar e produzir. Jean andou às ruas, suas vestes antes caras e sofisticadas, eram agora simples, entregava seus ternos, relógios, acessórios a mendigos, homens desprovidos de bens materiais, mas em maioria, ricos de espírito, assim ele os via.

Convidou-os a passear com ele, espalhar o “amor”, a paz de espírito aos que ainda não enxergavam com os olhos da alma. Jean falava de sua trajetória com desdém, sabia a necessidade de contar sobre si, porém incomodava-se, era como falar de políticos, ou religiosos corruptos, necessário a evitar sua propagação, contudo, angustiante.

Neste segundo dia, visitaram adoecidos em três hospitais diferentes, afagou-os, deu carinho e atenção aos esquecidos, sentiu sua dor, auxiliou portadores de deficiência pelas ruas, chorou. À noite, discursou aos muitos que se agradavam a sua presença, deu novo humor aos rostos anteriormente descontentados, deixou a eles palavras inspiradoras, ouviu suas histórias, e eram muitas! Dormiu aos pés do Monastério, em banco de concreto, rodeado de muitos outros, então fiéis companheiros.

No terceiro dia, Jean fora acordado pela imprensa. O tão conhecido Jean Sobrau, por hora, Jean, o que estava a fazer, enlouquecera? Esta era uma entre algumas perguntas dos carniceiros.

Jean disse-lhes que “nunca foi nada” até o momento, e que o “antes” perdera a graça, o importante era o “hoje”, cada dia que se seguia, pois não se pode esperar pelo futuro, por oportunidades surgindo a esmo, tem de criá-las, já que a vida era uma apenas e vivê-la, por assim ser, não é existir, é sobreviver. Não se atinge a eternidade por números matemáticos, mas por ações filosóficas. Sem o “fazer”, não há o “porquê”.

É, amigos! Nosso tempo é muito curto, nosso coração muito grande, se não há motivos para enchê-lo de sangue, não há do que se orgulhar, nem mesmo vida há. São sempre os feitos, nunca o tempo, às vezes pouco se vive e se torna eterno, às vezes um longo sobrevivendo, mas tão logo é esquecido.

Com isso, chegou seu momento,

na frente de todos rompeu o sofrimento,

com um golpe repentino do tempo,

seu coração perdeu seu sustento

e sua vida foi-se ao vento.

Ao homem que assistia tudo tornou a apagar. Então cego, tornou a questionar:

- O que houve? Acabou a história?

Todavia a voz responde com uma questão:

- É tua responsabilidade falar, deve ele entrar, ou na terrível escuridão vagar?

- Ao que vi, ele é merecedor de um bom lugar, pois se redimiu em seus últimos atos, viu-se livre do fado, por isso deve continuar. Afirma o homem.

A voz conclui:

- Então, Jean Sobrau, recobre tua memória e siga em frente para a luz, eis que lá é teu lugar.

O Homem seguiu para a luz, compreendendo a própria existência.

Pandim
Enviado por Pandim em 03/11/2010
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