A Sensitiva
Muitas pessoas sentem energias negativas apenas de estar em um determinado lugar. É algo que não é fácil de explicar assim como não é, também, fácil de entender, uma vez que o corpo e a mente às vezes agem de forma alheia à nossa vontade, como se quisessem fazer alguns joguinhos conosco.
Conheci certa vez uma mulher chamada Helena, cuja fama de sensitiva se espalhara tal como cinzas jogadas ao vento em um dia de furacões. Era mulher já feita, tendendo para os quarenta anos. Não a conheci a ponto de formarmos algum vínculo, tal como amizade, visto que era já casada e mãe de duas filhas. Eu era apenas um escritor carregando seus desejos de conseguir escrever uma boa estória, sem muitas expectativas no final das contas. As duas filhas eram poços de ternura e alegria, sendo a mais velha um pouco mais prendada e a mais nova um tanto quanto namoradeira, mas nunca se deixava transformar em motivo de fofocas.
Helena era famosa por sua habilidade como sensitiva, ou seja, por sua capacidade de ver o que ninguém mais poderia. Já ouvi diversas coisas sobre o assunto, mas nunca dei importância para alguma coisa tão fútil em minha opinião. Ouvi casos sobre uma mansão onde ela acabara desabando em choro por ter enxergado num canto de sala uma menina que parecia degolada, algo que ninguém mais estava vendo naquele lugar. Era de fato iluminada. Entretanto não é esse o motivo de estar aqui relatando essa história.
Cerca de uma ou duas semanas atrás, fui procurado por um amigo que tenho dentro da divisão policial, o qual veio me dizer que pensava ter a estória que eu tanto queria escrever, mas haviam condições para que ele entregasse: eu deveria mascarar ao máximo a identidade das pessoas que estariam envolvidas na situação e jamais deveria dar detalhes que fossem considerados confidenciais no ato da investigação. Sem outra escolha acatei os termos de meu amigo e o segui até o local onde havia acontecido um crime bárbaro. “Cinco mortos?” bradei sem poder controlar o tom de minha voz mediante a surpresa. De fato era exatamente o que eu havia escutado, entretanto acreditar era complicado demais para mim.
Conversamos durante o caminho e meu amigo deu-me alguns detalhes a respeito das teorias de como as cinco pessoas poderiam ter sido assassinadas. O trabalho do legista havia sido demorado e cuidadoso. “A mãe e o filho mais velho foram claramente baleados em locais que eram vitais, o que nos garante a idéia de que se trata de um excelente atirador, provavelmente já com formação militar; quanto ao filho mais novo... foi asfixiado com algo que estava molhado, explicando as marcas descoloridas na boca, e com uma força tremenda, o que descarta a idéia de que tenha sido uma pessoa apenas, afinal ele tinha digitais alheias nos dois braços, ou seja, alguém o segurava; quanto ao pai e o avô... bem... ambos foram golpeados até a morte com uma toalha molhada, tendo em vista a ausência de hematomas e a grande dilatação interna...”, era muita coisa para assimilar. Era difícil entender como alguém poderia ser tão desumano.
Quando entrei na casa da família, uma casa de classe média de apenas um andar com no máximo dois quartos para os filhos, além do quarto de casal e o quarto do avô que morava como eles desde o casamento do filho mais velho, senti um cheiro insuportável de morte. O pessoal da perícia estava ainda investigando o local e, quando olhei no canto esquerdo da sala, percebi a presença da sensitiva no local. Ela estava tranqüila e conversando com os policiais. Não tinha nada que estar ali naquela hora, mas estava, afinal era amiga próxima da família.
Apresentei-me a ela e fiz algumas perguntas sobre quais eram as suas razões para estar em um lugar tão ruim naquele momento. Ela me respondeu com um tom de submissão, como se pensasse que eu fosse policial. Não podia culpá-la, afinal usei de um tom bastante firme e ela também não poderia saber, uma vez que mesmo como sensitiva não poderia ver através de paredes. Ele me contou sobre seu relacionamento com as pessoas que moravam na casa que estava sendo agora investigada. Era amiga bem próxima de Dona Amélia, a mãe assassinada enquanto penteava o cabelo do filho mais velho. Eram o que chamamos de comadres. Contou-me que elas trocavam segredos quando uma se deslocava até a casa da outra com o intuito de pegar um pouco de açúcar emprestado. “Parece que acertou, meu amigo, sinto que terei minha estória!” pensei desavergonhadamente em meu íntimo. Pretendia fazer mais algumas perguntas, mas um oficial que se aproximava com meu contato na polícia, que também estava a par de tudo, nos convidou a verificar a casa.
Caminhamos primeiramente em direção ao quarto do filho mais velho, onde havia apenas uma cama e um pequeno guarda-roupa. Olhamos para todos os lados enquanto ouvíamos as palavras trocadas entre os policiais. Realmente não havia nada de especial naquele lugar, o que nos fez decidir mudar de aposento, até a hora em que olhamos para Helena. Estava petrificada e quase chorando. “O que foi?” perguntei. Ela apenas me olhou com a expressão amedrontada e me pediu para tirá-la de lá, pois não poderia ver mais aquele garoto baleado no peito. Assustei-me com o comentário e tornei a face de volta ao quarto, sem ver nada. Um pensamento me fez desconfiar, afinal o garoto havia sido morto no quarto da mãe, então como ela poderá vê-lo lá? Ela explicou sem que eu pedisse ou pronunciasse qualquer palavra que aquele devia ser o local preferido da criança, uma vez que ele estava brincando lá com seu peito completamente aberto. Assustei-me novamente e nada mais disse. Não havia palavras. Apenas a tirei do local e seguimos até o quarto do filho mais novo.
Naquele quarto haviam sido mortos o pai, o avô e o próprio menino, todos com tecidos molhados. Ao entramos, encontramos uma cama e um guarda-roupa, tal como no outro quarto. Lá não permanecemos muito tempo, uma vez que não haviam vestígios visíveis para serem encontrados. Exatamente. Invisíveis para quase todos nós. Não houve uma cena aterradora na expressão da sensitiva naquele local, uma vez que ela dizia ter visto apenas três pessoas caídas. Quando deu as costas para sair junto conosco, Helena escutou um barulho bem baixinho, o qual nenhum de nós havia ouvido, o que a fez virar-se novamente para o quarto. Caiu de joelhos em seguida, pois a cena que se passava em sua frente a perturbara muito. Contou-me do lado de fora, assim que a tirei do quarto, que o garotinho havia se levantado e estendeu-lhe a mão. Ela petrificou-se de pavor, pavor este que aumentou ainda mais quando viu que o garoto vomitava toda a água que acabou bebendo da toalha molhada com a qual o enforcaram. Falava algo com ela, entretanto sua voz era muda. Ao mesmo tempo em que falava, desciam de seus lábios pequenas quantidades de água que não molhavam o chão ao encontrá-lo. Era demais para ela. Pedi que parasse de nos acompanhar ou ela poderia acabar enlouquecendo com aquilo que apenas ela poderia ver, entretanto recusou.
Havia apenas mais um aposento a ser visitado: o quarto do casal, onde morreram a mãe e o filho mais velho. Esse foi o mais impressionante. Ao entrarmos nós três, uma vez que Helena decidira tomar um pouco de ar antes de nos acompanhar, nos deparamos com uma bela cama de casal completamente respingada com sangue, obviamente resultante dos disparos que ocorreram no quarto. Andei por alguns metros sem mexer em nada, pois bem sabia que nada poderia ser alterado na cena de um crime ou o trabalho da perícia poderia ser mais demorado. Comecei a observar que havia um certo vão no quarto. Não era um grande espaço, mas era um espaço que não foi aproveitado. Poderia estar presente ali um criado mudo ou um lugar para guardar calçados, mas não havia nada.
Pouco depois, cerca de dez minutos ou menos, Helena chegou ao quarto olhando diretamente para o local onde me encontrava e gritando muito. Corri até ela para tentar acalma-la e saber qual era o motivo dos gritos. Ela soluçava muito enquanto dizia que a mãe estava com um garoto nos braços vestido de branco com respingos de sangue em toda a roupa, além dela mesma estar com a cabeça estourada devido ao tiro da magnum 45 que a acertara. “Seis... seis...” ela repetia várias e várias vezes, sem que eu pudesse entender de que se tratava aquele número. Seis o quê? Seis por quê? Não havia nexo no que ela estava falando. Estava muito impressionada e acabei retirando-a da casa, sem que olhássemos coisa alguma além do que já havíamos visto.
As palavras da sensitiva não me saíram da cabeça até o dia seguinte quando li o jornal da manhã. Lá estava a notícia: “Casal, idoso e duas crianças mortos em brutal chacina na avenida principal”. Li cuidadosamente a notícia até o final, quando perdi completamente a firmeza de minhas mãos e não mais pude segurar o jornal. “A dona da casa esperava seu terceiro filho já há quatro meses, o que gera ainda mais revolta na população...”. Ela estava grávida! “Seis... seis...” voltou-me a imagem da sensitiva quando entro no quarto. Nesse momento, acometeu-me uma vontade incontrolável de chorar. Foram seis...seis...