Cristina

Advertência

Existem muitos casos que desafiam a lógica que estão documentados nos acervos parapsicológicos mundiais, entretanto o que é apresentado a seguir é meramente fictício. As pessoas que são aqui apresentadas de fato existem, porém não tiveram participação em nenhuma história semelhante assim como não detém quaisquer argumentos ou provas que classifiquem os eventos a seguir como reais.

Primeira parte

Tempestade

Certas vezes colocamos a nós mesmos na parede e nos interrogamos sobre o que é ou não possível para aquilo que denominam poltergeist e de outras que nomeiam percepção extra-sensorial. Enquanto pessoa, não acredito nem desacredito em tal força, entretanto não considerava que coisas que desafiam a lógica pudessem realmente acontecer, assim como sequer pensei que as presenciaria. Eu sei que usei o verbo acreditar no passado, algo que vai de encontro ao que afirmei logo ao início desse depoimento, mas não o fiz sem ter uma causa justa.

Quando me mudei para a cidade onde atualmente resido, chamada Paula Cândido, não era uma pessoa que tinha muita facilidade de se entrosar com os demais, na verdade era minha maior dificuldade. Sorte minha que meu irmão já morava na dita cidade já fazia algum tempo e pôde me ajudar nesse ponto, permitindo-me conhecer pessoas dos mais diversos tipos e dos mais variados costumes.

A cidade em si nada tinha de especial. Tal como qualquer cidade pequena tinha seus atrativos, tais como uma belíssima igreja na praça principal e outra menor no bairro do Rosário (que francamente não entendo o motivo pelo qual toda a cidade tem um), além de dois pequenos postos de gasolina que parecem ser uma espécie de inimigos jurados, há um posto de saúde que é relativamente pequeno também, tanto que às vezes não consegue atender toda a população necessitada. O ponto preferido dos jovens é um bar que fica em um dos postos, conhecido como “Bar do Zezé”, onde das oito da noite; horário em que a missa celebrada na matriz da praça termina; até Deus sabe quando tudo o que se ouve são os sons de tacos de sinuca batendo no bolão branco para tentar encaçapar as demais bolas e as conversas de muitas pessoas entretidas com as conversas que tem entre elas mesmas enquanto saboreiam suas cervejas ou seja lá que bebida pedem naquelas mesas de plástico com o escudo da antártica.

Foi nesse cenário que meu irmão e eu nos colocamos numa noite chuvosa de sábado e pedimos uma cerveja para que pudéssemos passar o tempo conversando tal como todos os demais presentes estavam fazendo. Estávamos sós sentados na mesa que recebia o número dezoito, restando ainda mais duas cadeiras vazias, o que não durou muito, uma vez que pouco tempo depois meu primo, que passava o fim de semana na cidade com a intenção de rever a mãe, aparecera e assentara junto a nós na dita mesa. “Ué! Não sabia que você ainda bebia, Marcos!” foi este o primeiro comentário que fez ao se colocar frente a mim, o que fez com que meu irmão risse enquanto tomava seu refrigerante. Tivemos uma conversa animada enquanto a chuva insistia em cair, agora mais forte do que quando chegamos ao bar.

A chuva não dava a pensar que cessaria tão brevemente, uma vez que se podiam ouvir, em quantidade cada vez maior, os trovões e a visão dos raios brilhando no céu eram um espetáculo tanto belo como assustador. Digo isso devido ao fato de que pude ser testemunha do medo de algumas pessoas de raios e trovões e, confesso, me divertia com isso. “Não consegue conter a risada, não é”? Meu irmão me conhecia bem. De fato estava prestes a rir, pois eu achava que qualquer espécie de medo era absurda, devido ao fato de que se ter medo não é algo que impeça o acontecimento de alguma coisa. Mal via a hora da luz acabar para matar minha curiosidade sobre o que aconteceria com aquelas mesmas pessoas.

Não demorou muito e o que eu pensava em minha mente e compartilhava com meu irmão e meu primo aconteceu. A luz acabara e eu ouvia algumas pessoas mudando seu tom de voz para um mais assustado, além de ter podido ver outras que se agarravam mais fortemente naqueles que estavam ao seu lado. Vi a expressão de terror nos olhos de algumas daquelas pessoas (as que se encontravam mais próximas a mim) e senti vergonha pelo meu pensamento. De fato não havia graça alguma em contemplar a face de alguém amedrontado por algo que não tem qualquer efeito sobre mim. “Agora sei o que acontece” foi o meu pensamento, pensamento esse que fez com que eu, sei lá por que cargas d’água, olhasse para meu irmão que levava a garrafa de refrigerante à boca. Meu primo apenas abaixara a cabeça e deu uns risos disfarçados que pude perceber sem muita dificuldade.

Os trovões aumentavam cada vez mais e a chuva fortalecia de maneira que se tornava algo insensato deixar o lugar até que ela se acalmasse ou se estivesse de carro. Não estávamos, de modo que optamos por permanecer naquele lugar até que a chuva se acalmasse. Levantei-me e fui buscar outra cerveja, uma vez que a garçonete, ou seja lá como são chamadas as mulheres que atendem as mesas colocadas ao ar livre nos bares, estava demorando a vir verificar se desejávamos algo mais. Não demorei muita coisa dentro do bar e trouxe minha cerveja, além de outro refrigerante para meu irmão e um copo para que meu primo pudesse me acompanhar na bebedeira. Assim que servi os copos, meu primo e eu fizemos o brinde que fazíamos quando éramos ainda adolescentes: “hei de tomá-la, ó bebida do inferno; teu prazer é temporário, mas desejo que me seja eterno!” e batemos nossos copos um no outro e em seguida na própria garrafa, finalizando nosso ritual. Bebemos. Bastou esta pequena ação para que a noite começasse a se tornar a noite que ficaria na minha lembrança por toda a minha vida.

Em meio a aquele dilúvio que estava caindo, vi um vulto que se aproximava do lugar onde estávamos. Não era capaz de dar detalhes no mesmo momento em que aparecera, mas era possível perceber que se tratava de uma menina pela pequena estatura e pelo vestido que usava. Era difícil de enxergar devido a chuva, contudo pude verificar que era de fato uma menina. Esta mesma criança se aproximou das bombas de gasolina e veio a desmaiar, o que fez com que meu irmão e eu largássemos as nossas bebidas e corrêssemos em direção à menina ao mesmo tempo em que nosso primo corria até uns amigos na mesa ao lado para pedir-lhes que nos ajudassem.

Era uma menina bonita, a qual não arriscaria dar mais do que quatorze ou quinze anos, morena, de cabelos lisos e longos que tendiam ao meio exato de suas costas, magra, mas não esquelética, diria esbelta. Estava ardendo em febre, o que me levou a imaginar ser culpa do tempo chuvoso, além do fato que poderia agravar seu estado as roupas molhadas. Além de molhado e sujo, o vestido da menina estava rasgado e o vermelho característico do mesmo se mostrava mais forte em algumas vertas partes, o que meu irmão percebeu ser devido a alguns poucos focos de sangramento, pois estava realmente machucada. Deveríamos ter levado a garotinha imediatamente ao posto de saúde, entretanto nos preocupamos com uma possível piora devido aos trajes ensopados que ela vestia, de modo que corremos debaixo da chuva protegidos apenas por um único guarda-chuva que nos fora emprestado por uma moça que meu irmão dizia estar interessada em mim desde minha chegada e a levamos para a casa de nosso primo, uma vez que era a mais próxima além de que ele tinha uma irmã da mesma idade da menina, o que nos permitiria usar uma das roupas dela para vestir a pequena doente. Diana, a garota que nos emprestara o guarda-chuva, nos acompanhou e vestiu a menina com um outro vestido, desta vez negro e a deixou dormindo na cama da irmã de Alan.

Na sala discutíamos sobre o que deveríamos fazer depois de trocar as vestes da menina. Conversamos um pouco e decidimos que esperaríamos que a chuva acalmasse para que pudéssemos levá-la ao posto, uma vez que deveria haver algum médico de plantão. Tanto meu irmão Thiago quanto os demais assentiram que seria tolice sair com a menina às pressas e debaixo de chuva, pois o choque térmico poderia ser fatal com a febre que ela apresentara. Estava decidido então, mas havia outra coisa que nos preocupava: quem era aquela menina? Quem são seus pais? Eram perguntas que precisavam de respostas para que pudéssemos entregá-la em segurança depois que ela fosse atendida pelo médico do posto.

“Perguntamos a ela assim que estiver em condições de falar conosco”, disse Diana sensatamente, uma vez que, na verdade, era a única coisa que poderia ser feita. Ela pretendia completar sua explanação, mas se assustou ao ver a menina andando descalça em sua frente; uma vez que a poltrona onde ela estava assentada era exatamente na frente da porta do quarto onde deixamos a menina dormindo; com uma expressão vazia, como se ainda estivesse dormindo, entretanto caminhava com passos surdos pela sala dizendo palavras sem nexo: “eu sei... sou sua... pequena Cristina... estou te ouvindo... onde você está... sou a pequena Cristina... a pequena Cristina...” e ainda andava. Seu trajeto não se alterava um centímetro. Sempre em frente. Passou pelas janelas laterais ainda perguntando onde estava seja lá quem fosse, e quando parecia que não obteria qualquer resposta aumentou um pouco o tom de voz, permitido que pudéssemos ouvir mais claramente o que dizia. Disse “onde você está?” e também coisas como “estou aqui” e “vem conversar comigo de novo”. Pareceu que não obteve resposta. Então acabou gritando e o vidro de uma das janelas laterais se partiu. Todos tomamos um grande susto, mas nada fizemos por estarmos petrificados com a cena que se dava a nossa frente. Retornei ao meu estado normal para que pudesse refletir sobre o que estava acontecendo e encontrei uma explicação lógica para um dos eventos, uma vez que na presença de uma representação sonora de um tom muito agudo, certas superfícies acabam se destruindo, tal como o vidro da janela. Isso explicaria o fato se segundos depois o vidro das outras três janelas não se partissem no sentido horário e para o lado de dentro da casa, sem que ninguém houvesse feito qualquer coisa. Após esse acontecimento tornei a face para a menina e me assustei mais ainda pois ela me encarava sem qualquer luz nos olhos e dizia “conversa comigo... não me deixa sozinha...”, vindo a desmaiar logo em seguida.

Frente a todo aquele quadro não pude mover minhas pernas imediatamente para ir até a menina e pegá-la novamente para retornar ao quarto. Estava apavorado, assim como meus companheiros que testemunharam tudo que ocorrera naquela sala: meu irmão, tão sem reação quanto eu mesmo e meu primo na mesma situação e Diana quase entregue aos prantos a se lembrar gemendo palavras e soluçando tentando entender aquela cena assustadora. Nenhum de nós conseguiu dormir aquela noite.

Segunda parte

Família

A chuva do dia anterior não nos permitiu passar a noite em outro lugar que não fosse à casa de nosso primo Alan, entretanto creio que a mesma não tenha sido a única razão para que nos mantivéssemos lá, uma vez que também havia aquela menina. “Deve chamar-se Cristina” pensamos depois de ouvir as poucas palavras por ela pronunciadas no dia anterior. Diana, mesmo ainda um pouco assustada pelo ocorrido, estava fazendo companhia a ela no quarto enquanto dormia. A menina não tinha mais febre e não mais suava, o que nos tranqüilizou um pouco, mas a preocupação com uma possível repetição do episódio da noite passada nos preocupava. Tentei não pensar nisso e persuadi meus companheiros a fazer o mesmo. Não valia a pena temer algo que talvez nem acontecesse novamente. “Um raio não acerta duas vezes o mesmo lugar” pensei.

Meu irmão estava na cozinha preparando um suco para nós enquanto meu primo e eu dávamos uma adiantada no almoço. Diana permanecia com a menina no quarto.

Ao terminarmos de preparar o dito almoço, chamamos Diana no quarto para que se unisse a nós na mesa, além de tentarmos acordar a menina. “Deve estar com fome, afinal sequer tomou café” foi a acusação de Diana. Os homens que estavam na casa saíram do quarto e se colocaram na cozinha, onde havia uma mesa que, apertados, caberiam as cinco pessoas.

No quarto, Diana tentava fazer com que a menina acordasse. Chamou-a, balançou-a, mas nada parecia surtir efeito, o que a fez parar por um momento para que pudesse pensar em uma outra forma de abordagem. “Seu nome é Cristina, não é? É um nome bem bonito!” disse em voz baixa próximo ao ouvido da menina, mas nem assim ela acordou, de modo que acabara desistindo de qualquer outra tentativa e levantou-se da cama onde sentara para que pudesse ir ao nosso encontro na cozinha.

“O seu é Diana... também é bonito...” ouviu Diana ao colocar sua mão na maçaneta da porta para abri-la e poder sair do quarto, fazendo com que ela tornasse o corpo para o lado da cama e visse que a garota estava agora acordada. Aquela expressão que contemplara no dia anterior havia desaparecido completamente, apresentando-se apenas a inocência de uma criança que não aparentaria mais do que seis anos, entretanto a nossa protegida aparentava mais. A surpresa maior de Diana estava no fato de que a menina estava sorrindo para ela como se soubesse com quem falava, ademais era mais estranho ainda que soubesse seu nome. “Deve ter nos escutado em algum momento. Quem sabe estava apenas fingindo que dormia” pensou Diana em seu íntimo.

Não demorou muito e pudemos ver a menina adentrando a cozinha de mãos dadas com Diana, ao mesmo tempo em que sorria para nós. Contemplamos aquele sorriso com certo assombro, pois a lembrança dos vidros se despedaçando persistia em nossa memória e teimava em não abandona-la em hipótese alguma. A expressão inocente que pude verificar no semblante da pequena criatura era tão doce que não conseguia fazer qualquer ligação com o monstro que conheci na noite anterior. O andar da garotinha era calmo, quase angelical, e sua postura mostrava-se tratar de uma menina que recebera uma excelente educação. Trocou poucas palavras conosco devido ao seu acanhamento em estar com pessoas desconhecidas, o que era bastante previsível. Descobrimos poucas cosas sobre ela, tais como seu nome, o qual era realmente Cristina (como a ouvimos falar na noite em que presenciamos seu transe), a idade de quinze anos, onde morava e que era órfã de pai. Estava morando com a tia, uma vez que a mãe estava internada em um hospital da capital devido a um acidente enquanto cuidava do gado da fazenda onde residiam além de nos contar dos maus tratos que recebia da tia.

Após ouvi-la, lembrei de ter lido em algum lugar, não lembro se fora um artigo de revista ou qualquer estudo universitário a cerca de eventos paranormais resultantes de maus tratos em jovens meninas, os chamados poltergeists, mas em hipótese alguma acreditava na existência de tal coisa. Não entrava em minha cabeça algo tão sem cabimento. Não sem provas concretas. Mas ainda assim me intrigava o ocorrido da noite anterior, uma vez que a pequena Cristina não parecia se recordar de qualquer coisa que acontecera, sequer lembrava de ter vindo para a cidade debaixo de um baita temporal.

Retiramos-nos para a sala e nos colocamos a conversar entre nós mesmos enquanto Cristina andava pela casa como se quisesse conhecê-la por inteiro. Não era muito grande, apenas três quartos, um banheiro, a sala, a cozinha e uma área de serviço onde poderia encontrar a lavanderia e a entrada para a despensa. Ela ficou na despensa por alguns minutos a folhear os livros que lá encontrara. Começou a ler um deles; acho que era Mensagem de Fernando Pessoa, mas não me lembro ao certo; entretanto abandonou a leitura pouco depois e voltou para onde estávamos.

O tempo estava melhor do que o do dia anterior, embora ainda chovesse, mas não com a mesma violência que havia quando encontramos Cristina. “Devemos procurar a tia dela e avisar que está conosco. Ela pode estar procurando pela menina” disse meu irmão sabiamente. Era mesmo o que deveríamos fazer e logo, antes que o tempo resolvesse piorar novamente. Alan pegou o telefone de sua casa e ligou para a polícia para fazer a ocorrência do encontro de uma menina desaparecida. Deu ao policial que o atendeu todos os detalhes que pudemos descobrir sobre a menina e de sua origem, de modo que a polícia entraria em ação imediatamente para que uma solução fosse dada ao caso da menina. Avisariam assim que encontrassem a família. Cristina estava agora no mesmo quarto onde estava quando acordou a contemplar a paisagem do lado de fora da janela, a qual também fora destruída, o que me fez verificar as demais janelas da casa. Todas haviam sido quebradas.

Disse a Alan o que havia descoberto e ele se surpreendeu tanto quanto eu mesmo, perguntando em seguida o que deveríamos fazer até que a polícia entrasse em contato novamente. Diana estava indo ao quarto onde Cristina estava para conversar um pouco com ela, uma vez que não seria muito bom deixar uma menina sozinha em um lugar que lhe é totalmente estranho. Adentrando o recinto, o sorriso que trazia consigo transformou-se em um grito de pavor ao contemplar a menina. Viemos correndo ao ouvi-la e acabei batendo o ombro na parede do quarto. A dor era pouca e me recuperei rápido, mas não tive a mesma sorte em relação ao que presenciei em seguida. Cristina estava novamente sem o brilho nos olhos e com a face vazia, sem qualquer expressão. Estava de pé, entretanto seus pés não tocavam o chão. Estava realmente levitando. Dizia coisas como “estou ouvindo... não... isso é ruim... papai... não...”. Aquela cena assustadora da outra noite estava novamente acontecendo no meio do dia! Era horrível! Meu terror tornou-se maior quando ouvi ruídos de coisas se arrastando, o que me fez olhar para todos os lados do quarto, quando vi que a cômoda ao lado da cama estava realmente se movendo em uma velocidade considerável, mas não mais rápido do que uma pessoa correndo. Caí imediatamente de joelhos. Thiago não se mexia, assim como Alan. Diana novamente estava à beira dos prantos frente aquela cena assustadora.

O evento se seguiu por cerca de cinco a dez minutos, uma vez que nenhuma pessoa em são consciência pensaria em marcar o tempo presenciando um quadro tão assustador, de modo que apenas poderia estabelecer uma média imaginária. Ele pareceu terminar quando Cristina começou a gritar “pára!” vezes seguidas, como se estivesse sentindo dores, caindo logo em seguida chorando. Lembrava-se de tudo desta vez e suspirava baixinho, mas o suficiente para que também pudéssemos ouvir, “papai... eu não quero mais... não quero ouvir...”. A menina estava muito frágil e, se arrastando, buscou amparo nos braços de Diana, a qual a abraçou mesmo assustada e tremendo muito. Choraram juntas enquanto nós três nos olhávamos tentando pronunciar qualquer coisa que parecia que jamais sairia de nossos lábios, pois nosso medo jamais haveria de permitir que qualquer coisa fosse proferida naquele instante.

Cristina acabou adormecendo novamente e então a carreguei para a cama. Quando a coloquei lá ela acabou despertando e me perguntando se eu também havia escutado a voz de seu pai falando com ela. “Não, menina. O que seu pai disse para você?” foi a primeira coisa que me veio a cabeça para perguntar. “Ele dizia que eu não estava sozinha. Que mesmo que minha tia não gostasse de mim ele ainda estava comigo. Ele e todos os outros”. Eram palavras bonitas que todo pai deveria dizer a uma criança, mas se era só isso não haveria motivo para que ela o mandasse parar. Quis saber então qual foi o motivo. “Os outros. Eles estavam brigando e falando coisas que estavam me assustando”. Fiquei pensativo e não me atrevi a falar mais nada que não fosse um “descanse que você está precisando”. Saí do quarto com muitas perguntas, mas não era a hora certa para procurar as respostas. Devia esperar. Teria minhas respostas mais cedo ou mais tarde.

Terceira parte

Tragédia

Ao entardecer, cerca de cinco horas mais exatamente, a garotinha despertara pela segunda vez em um lugar estranho. Meu irmão e eu estávamos na sala assistindo a um programa sobre História na TV. “O que está passando?” foi a pergunta da jovem ao nos encontrar na sala guiando-se pelo barulho feito pela televisão. Respondemos a ela do que se tratava ao mesmo tempo em que buscávamos vestígios daquele assombro anterior em sua figura, mas nada havia lá senão a inocência que contemplamos quando ela acordara de manhã. Andava pela casa como se mais uma vez se tratasse de uma novidade, entretanto buscava encontrar Diana naquele espaço, mas não obtivera sucesso já que ela, Diana, havia saído para fazer umas compras para fazermos nosso jantar, uma vez que havíamos decidido permanecer na casa de Alan até que tudo estivesse resolvido e a menina estivesse entregue à alguém que poderia criá-la com o amor que sua mãe dedicara a ela. O amor que parecia não mais ter da tia.

Pouco depois a porta da casa se abriu e meu primo adentrou o recinto. Confesso que me apavorei a ver sua expressão, pois parecia ter sofrido um grande susto tal como o que sofremos ao presenciar os eventos fantasmagóricos da noite passada e daquela manhã. “Estou voltando da delegacia... e não tenho boas notícias” disse Alan para minha preocupação. Ele pediu alguns momentos para ir até a cozinha e beber um copo com água, o que o ajudaria a organizar as idéias para que nos contasse o que havia de fato acontecido de tão preocupante naquele lugar. “Esperemos Diana”, ele disse. Assim seguimos sua vontade, pois ele não nos faria esperar se não fosse algo que realmente exigisse a presença de todos os envolvidos.

Diana chegou exatamente vinte minutos após Alan carregando três bolsas de compras que pareciam estar pesadas, o que me fez levantar e ir até ela tomar duas das bolsas para levarmos até a cozinha onde Cristina estava sozinha observando pela porta da área de serviço para ver a paisagem, embora a visão não fosse tão privilegiada quanto a visão da própria área. A menina ficou muito feliz em ver Diana, tanto que correu até ela e a abraçou. De fato havia se apegado a ela, bem como Diana se apegara à menina. Deixamos as duas juntas por alguns minutos e depois pedimos que Diana se juntasse a nós para que Alan nos dissesse o que havia de tão preocupante sobre o caso da menina.

Alan já estava sentado na poltrona menor da sala, de modo que nós dividimos a maior e mantivemo-nos calados para que pudéssemos escutar o que ele tinha a dizer. Cristina estava novamente na despensa tentando dar continuidade ao livro que lhe chamara atenção da primeira vez em que lá entrara e não poderia escutar a conversa que estava em andamento na sala, sendo a distância um tanto considerável. Alan preferia assim mesmo, pois acreditava que a menina sequer soubesse do que havia acontecido em sua casa no mesmo dia em que fora encontrada por nós.

Ouvimos, assombrados, tudo o que Alan contara com certa dificuldade em acreditar que tais coisas pudessem mesmo ter ocorrido, uma vez que sempre pensamos que essas fossem coisas que acontecessem apenas em lugares como Transilvânia. Era impossível acreditar que a tia da moça havia sido encontrada morta dentro de sua própria casa com uma faca cravada no peito. Outros detalhes que foram dados foram a respeito do solo, onde não haviam respingos variados, o que significava que não houve qualquer luta no local, ou seja, apenas um golpe fora desferido e este fora certeiro ao ponto que o sangue sequer tocara o chão além do detalhe da parede, o qual era o mais estranho de todos. Havia lá uma mensagem escrita com o sangue que teoricamente deveria estar no chão; não me perguntem como ele poderia estar lá, pois para mim também é algo inexplicável; e estava escrito “meu anjinho, papai cuidou de tudo para você”. Não conseguimos pensar com clareza depois de escutar tudo o que foi atestado por nosso primo. Cristina não tinha para quem voltar, uma vez que a mãe estava ainda internada na capital. Deveríamos então rever os planos sobre o que é melhor fazermos naquele dado momento.

Não escutamos um pio da garota desde que começamos a conversar, o que me motivou a ir até a despensa ao seu encontro. Ela estava lá a ler os poemas pessoanos com uma concentração fora do comum, como se realmente apenas aquilo lhe importasse naquela hora. Chamei-a por duas vezes, mas ela não parecia ouvir. Quando tentei a terceira vez ela se assustou e me respondeu. “Desculpe, estava lendo os poemas para o meu pai” disse ela para meu assombro. Perguntei novamente para quem ela estava lendo sendo que não havia mais ninguém junto a ela no local. Ela me respondeu dizendo que às vezes conversa e ouve o pai quando pensa nele com força. “Percepção extra-sensorial” pensei imediatamente, pois só seria possível para alguém que tivesse a mente tão limpa a ponto de ouvir qualquer coisa que não ouvimos normalmente. “Quanta besteira” pensei em seguida. “Ele disse que eu não posso ficar muito tempo com vocês aqui”, disse Cristina com a expressão pura. Alan estava entrando na área quando ouviu as palavras da menina e se opôs completamente a que ela deixasse a casa sem ter para onde ir. Apoiei-o plenamente assim como Diana e meu irmão. Cristina apenas assentiu com a cabeça e tornou a ler os poemas que estava lendo.

Chamei todos novamente para a sala e contei sobre a conversa que tive com a menina, o que os preocupou ainda mais. Também era bastante previsível, pois se o pai matara mesmo a tia e se manifestava apenas na presença da filha, significava que ele poderia estar conosco na casa de Alan e poderia vir a fazer alguma coisa conosco; o que considerava até aquele momento uma hipótese bastante estúpida; ou que a própria menina haveria matado a tia; o que era mais estúpido ainda, visto que uma garota tão jovem jamais seria capaz de praticar um ato de tamanha crueldade com equivalente maestria. Eram duas hipóteses que não valiam a pena ser consideradas.

Anoitecera. Finalmente estavam próximos ao tempo de repouso. Alan convidara Diana para permanecer em sua casa baseado no fato de que a menina havia em verdade se apegado à ela. Meu irmão e eu não nos opusemos de maneira alguma, afinal estávamos na casa de nosso primo e ele poderia convidar para pernoitar quem bem entendesse. Isso não era da nossa conta. Cristina aparecera em nossa frente caminhando suavemente como lhe era característico e assentou ao lado de Diana e do meu, colocando-se a me olhar. Da última vez que me olhara tão profundamente nos olhos foi quando estava em transe e me pedia que conversasse com ela e não a deixasse sozinha. Creio que tenha sido isso o que eu vinha fazendo desde a noite de sábado. Diana levantou-se e foi até a cozinha verificar como estava o jantar, deixando-me sozinho com a menina. Conversamos pouca coisa até a hora em que ela perguntou se Diana era minha namorada e eu disse que não, pois a conhecia fazia apenas dois dias, ao contrário do tempo em que ela e meu irmão se conheciam. “Acho que ela gosta de você. Ela te olha de um jeito todo especial” pronunciava enquanto dava seu sorrisinho envergonhado. Aquilo parecia diverti-la bastante. E de fato divertia. Antes que pudéssemos continuar o assunto, Diana chamou todos para se sentarem à mesa, pois o jantar estava pronto.

Apareci ao lado de Cristina, sorrindo igualmente. Fomos os últimos a sentar à mesa e, por isso, os últimos a se servirem. O jantar estava muito bom, menos pelo silêncio que Cristina fazia na mesa. Não trocara uma palavra sequer conosco e sua comida estava pela metade. Tentei induzi-la a comer mais um pouco, pois ela precisava se alimentar bem, afinal estava se recuperando de uma febre muito violenta. “Você precisa comer, meu anjinho” dizia ela baixinho. Pensei que ela estivesse apenas repetindo minhas palavras e colocando algo mais suave no fim da frase, mas logo vi que não era nada disso. Ela repetia diversas vezes a mesma coisa e começava a subir o tom ao mesmo tempo em que subia meu nervosismo. Estava começando a temer o pior: um novo ataque. Não poderia ser outra coisa, embora tivesse a esperança que fosse. Não deu outra. Quando Cristina começou a abaixar novamente o tom de sua voz a mesa começou a balançar, bem como os pratos e talheres que estavam sobre ela, o que nos fez levantar imediatamente.

Diana correu até a menina e a abraço tirando-a da mesa na esperança de parar o evento, contudo nada aconteceu para melhorar a situação. Ao contrário disso os talheres começaram a se mover em direção às paredes, como se fossem lançados por uma mão invisível, quase acertando as pessoas que estavam presentes no local. Diana gritava muito de medo ao mesmo tempo em que abraçava fortemente a menina e Alan tentava recolher os talheres para colocá-los em algum outro lugar onde não pudessem acertar mais ninguém. Meu irmão fazia o mesmo com os pratos. Eu corri até as duas garotas na tentativa de acalmá-las, uma vez que á havia percebido que esses eventos eram frutos de um momento de estresse profundo da parte de Cristina. Acalma-la era a melhor e única opção para dar fim a todo aquele pesadelo. “Vamos para o quarto!” foi a primeira coisa que me veio à mente. Saímos da cozinha e entramos todos no quarto dos pais de Alan, o qual era o maior e o único com chave.

Tanto Cristina quanto Diana estavam completamente fora de si de tanto pavor em virtude do que acabara de ocorrer na mesa de jantar. Cristina chorava muito e dizia que ainda podia escutá-los falando com ela. Podia ouvir seu pai e todos os outros. Isso a sufocava e amedrontava muito. “Parem, por favor! Eu não quero mais ouvir!” dizia aos prantos segurando a cabeça e se retorcendo na cama como se a estivessem machucando. “Não posso mais!” disse levantando-se e correndo em direção à porta chorando muito. Não tivemos tempo de reação para impedi-la e a vimos correr pelo corredor em direção à sala onde assistíamos televisão mais cedo. Levantei-me da cama o mais rápido que pude e corri atrás dela seguido por meu irmão, meu primo e Diana. O corredor estava um caos. Nunca havíamos visto um caos tão grande, o que significava que a mente de Cristina estava quase apocalíptica. Os quadros do corredor caíam sozinhos e alguns eram lançados pelo nada logo em seguida. Criei coragem, ou me nutri de tolice, e parti para a sala onde encontrei Cristina a gritar muito. Olhei em sua face e ela não estava mais com os olhos sem brilho, ou seja, não era transe algum desta vez. Ela chorava muito. “Chega... não posso mais...” dizia quase sem voz depois de tanto gritar. Olhou profundamente para meus olhos e deu um sorriso carregado de amor e seus olhos brilharam de uma maneira diferente, como se ela realmente tivesse se apegado também a mim nesse curto espaço de tempo.

Quando meus companheiros chegaram na sala eu estava de joelhos no chão e chorando. Não encontraram qualquer sinal da garota no local. Perguntaram-me o que havia acontecido, mas o pranto não me permitiu responder a qualquer questão. Diana olhou em sua frente e viu que a porta que dava para a sacada estava aberta, na verdade destruída, como se um grande golpe houvesse sido desferido nela fazendo com que as dobras se partissem. Caminhou até a sacada e olhou para baixo, caindo de joelhos em seguida e começando a chorar. Alan e Thiago foram ver a cena. O corpo de Cristina estava arrebentado no chão e com sangue espalhado por todos os cantos, aberto em parte do tórax. Quatro andares. Foi essa a altura da qual se jogara depois de um tempo de profunda tensão e de profundo desespero e, porque não dizer mais além disso, profundo terror, o mesmo terror que senti ao vê-la se jogar sem que pudesse impedi-la. Um sorriso. Com um sorriso ela me privou de salva-la da morte, mas pergunto-me até hoje se não era realmente o que ela queria: uma morte que a livrasse das várias vozes que estavam brigando em sua cabeça e fazendo-lhe tanto mal. Não havia mais o que pudesse ser feito, a não ser aceitar que acabara tudo.

Ainda hoje me lembro daquela figura inocente sorrindo para mim sempre que passo frente a casa onde meu primo morava. Ele se mudou depois do evento alegando que não teria coragem de ficar naquela casa com tais lembranças. Foi melhor. Meu irmão e eu mudamos para a capital e meu primo vem morar conosco daqui uns tempos. Diana trabalha hoje com crianças especiais e temos saído juntos. Quando venho a passeio na cidade onde tudo aconteceu fico mais tempo observando a sacada da velha casa. Um dia vi duas crianças brincando lá, mas eram observadas cuidadosamente pela mãe, o que me lembrou a inocência de Cristina. Algumas vezes quando estou sozinho em casa, parece que posso sentir aquele abraço que me dera antes de se jogar e também tenho às vezes a impressão de que a vejo sorrir.

O Mercador de Sonhos
Enviado por O Mercador de Sonhos em 02/10/2010
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