memória primeira - A Potência do Amor
A cidade estava calma como sempre. Raleigh andava sob a névoa, estava em busca de ar. A noite já ia longa e o seu peito estava rasgado.
Lucélia morrera, eu mesma a busquei, estava morta e o seu corpo jazia frio e inerte sob o cedro de sua casa, uma morte limpa.
Raleigh estava sufocado, "por que ela fizera aquilo?", "Porque deixara a carta?". O frio da noite o consumia quase igualando-se ao frio do seu coração.
Dias antes despedira-se de sua esposa, grávida do seu primeiro filho, com um beijo demorado e partira de viagem em busca de mercadorias e negócios. Sua viagem fora rentável, ele estava satisfeito, iria prover o seu lar. Galopou velozmente distanciando-se de sua pequena comitiva para chegar logo aos braços de sua amada esposa.
Mas ela jazia morta... enforcara-se. No desespero seu rosto se desfez e as lágrimas caíram, demorou para que ele percebesse a carta deixada. Mas eu o chamei... e ainda que ele não me ouvisse, ele atendeu:
"Querido Raleigh
Hoje me desfaço da minha vida. Não chore por mim, há muito tal idéia me tenta. Não há esperança para alguém como eu, cujos sonhos morrem antes mesmo de nascerem, seu amor me manteve viva enquanto pode, mas eu já não era deste mundo, nunca fui. Esse lugar sombrio, essa névoa constante me sufocam... Eu sempre quis ver o sol... Hoje acredito que o verei. Não quis a mesma semi-vida para o nosso filho por isso fui-me com ele. Não chore por nós, você é vivo e possui esperança. Eu nunca fui assim.
Amo-te, esqueça-me...
Sua para sempre, Lucélia."
Eu o contemplei por horas... Talvez por pena ou por cuidado, não sei ao certo. Seu rosto estava desfigurado, a incredulidade e a dor estampados. Foram tão felizes... ela era tão bela...
Raleigh se esgotara em seu pranto e em sua dor, passou três dias trancado em sua cabana, eu o contemplava. Ele não tinha forças.... ele iria se suicidar... e eu esperava...
Algumas pessoas precisam de ajuda e eu soprava meu nome em seu ouvido. Ele estava fraco, suscetível ao meu chamado... eu me sentia quase humana em minha pena.
Raleigh não me chamava, mas me acariciava em seus pensamentos, ele não pedia por minha companhia, se mostrava forte no fim. Mas o fim viria com certeza. Ele se recompôs, tomou o corpo de sua esposa nos braços e a deitou sobre a cama, já faziam três dias desde sua volta, ele fez uma última homenagem, tirou suas roupas e a amou, não havia nele qualquer asco, era a sua amada esposa. Seu corpo estava frio e sua boca tinha o gosto da morte.
Ele cobriu o corpo com o melhor lençol de linho que possuía e saiu ao jardim debaixo de suas árvores e ali no meio dos lilases cavou funda cova. Eu o observava...
O chão duro pelo gelo machucava suas mãos sob a pá. Ele estava fazendo o que era certo, a capela não a aceitaria e ele não suportaria ouvir os comentários...
Então ali, debaixo dos pinheiros, em meio aos lilases, ele deitou eternamente o corpo de sua amada.
A noite já ia longa e Raleih estava sob a névoa buscando ar. Sua vida acabara? "Não, não pode ter acabado, a dor é muito forte e eu ainda a sinto".
Ele caminhou longamente até ser vencido pelo enfado, seus passos o levaram até o pé da montanha e ele agora contemplava a sua negra plenitude coberta por nuvens cinzentas. Sua decisão foi impulsiva, ele estava cansado, mas subiu a montanha como estava.
O frio, a fome o feriram durante dois dias inteiros, mas ele conseguiu, chegou ao topo da montanha e ali postou-se embevecido, ele via o nascer do sol.
Dei-me por vencida... Ele sobreviveria...já ia ao longe quando um chamado me interrompeu. "Eu quero te contar como é o brilho do sol Lucélia, meu amor!". E naquele lugar Raleigh empunhou seu punhal contra seu peito. Ele não morreu de pronto, ainda houve tempo para ele me sorrir... e eu retribuí...
Como foi estranha aquela morte... ele venceu seu enfado, alcançou seu objetivo e viu o brilho do narcer do sol, o símbolo de toda a vida...mesmo assim o amor o subjugou e ele se rendeu a memória de sua amada esposa. Eu o segurei em meus braços, ele era leve, então, sob o brilho do sol, o levei para Lucélia...
Agradavelmente, Alanis de Louvain.