Precisa-se de um defunto

PRECISA-SE DE UM DEFUNTO


Astória é uma cidade bem antiga. Já comemorou seu centenário de existência. Os administradores da cidade, já conseguiram resolver vários problemas reivindicados pela população, entre eles, o asfaltamento de ruas, o grande parque de exposições, os “problemas da saúde, educação e moradia”.
Mas na cidade estava faltando alguma coisa, que sob a ótica dos políticos locais, constituía também, prioridade; a construção de uma capela mortuária. Alguém na Câmara Municipal compadeceu-se dos mortos e fez um projeto para construção do prédio.
Por trás do projeto, um argumento muito justo. Em Astória, ainda existe aquela maneira antiga de sepultar os mortos. Primeiro, é aquela ladainha diária, na rua, anunciando o passamento, o endereço do dito cujo, o local e a hora do sepultamento e os agradecimentos antecipados da família pelo ato cristão. Segundo, o cortejo fúnebre propriamente dito, pára o trânsito nas ruas principais da cidade e as portas das lojas são fechadas em sinal de respeito ao morto.
Enquanto isso, lá do outro lado do mundo, bem do lado de lá, almas fazem os comentários entre si:
- Mas que hipocrisia, dizia uma, quando o defunto é rico, é aquela procissão, mas, quando é pobre, apenas os carregadores do caixão. Nem carrinho para empurrar tem.
- Viu que falatório naquele enterro de luxo? – Dizia outra, aquela gente empurrando o carrinho pelo morro acima? – Parece que essa gente vem comentar seus negócios e fofocar exatamente aqui. – Esses
papa-defuntos deviam nos respeitar ao menos com o silêncio !...
Ainda uma outra comentava: - Bem feito, agora com o projeto do Sr. Atalício, eles vão ter que fazer outra coisa.
E, assim, com todo apoio terrestre e do além, o projeto do Sr. Atalício foi aprovado na Câmara.
Passaram-se meses e anos. Como tudo que começa tem que acabar ou emperrar, a prometida Capela Mortuária ficou pronta. Aí, vieram as propagandas, com faixas e mais faixas nas ruas; na entrada, na subida, na saída. Uma delas dizia: “Um sonho que se tornou realidade, os mortos de Astória, já têm uma ante-sala para descansar antes de serem enterrados”.
Uma vez pronta a capela, marcou-se o dia da inauguração. Afinal, não é todo dia que se constrói uma obra desse porte.
Mas, para isso precisava-se de um defunto. Onde já se viu inaugurar uma Capela Mortuária ou um cemitério, sem um defunto? – Anunciou-se no Jornal local e noutros meios de comunicações.
Havia no hospital local muitos doentes, principalmente pobres, esperava-se que no dia, alguém fizesse o favor de morrer.
Na véspera da inauguração, os donos da festa estavam preocupados. – Nada de defunto, a situação era preocupante. Mas lá, pela meia noite, como de costume, lá vinha o carrinho anunciando mais uma morte na cidade. Imediatamente, procuraram a família para oferecer as honras de ser o defunto inaugural da Capela, inclusive com funeral por conta da casa, o que foi logo acertado.
Ah, ia esquecendo de dizer. O nome do defunto era Esquisito, ou seja, seu apelido. Esquisito tinha um problema neurológico, que nem mesmo ele sabia, era cataléptico. Catalepsia é o estado em que ficam temporariamente suspensos os movimentos voluntários e a sensibilidade externa de uma pessoa. Assim é como se estivesse morta por algum tempo.
Naquela pressa toda, não procuraram um médico para atestar a morte do Esquisito, ou se realmente ele tinha morrido. O serviço funerário se encarregou de tudo. Levaram o defunto direto para a Capela Mortuária colocando-o bem no centro do salão. Esquisito estava bonito, de terno, gravata e flores até o nariz. Como toda inauguração que cheira política, vieram os discursos. Primeiro falou o Vereador responsável pelo projeto:
- Bem, meus amigos, tenho imenso prazer de comunicar e entregar esta obra à comunidade de Astória. Era o que o povo tanto esperava. Aplausos. Passo a palavra para o Sr. Prefeito pedindo a V. Excia. que descerre a placa inaugural.
- Meus amigos e correligionários de Astória aqui presentes. – Falou o prefeito. – Quero parabenizar nosso vereador Atalício de Jesus por essa brilhante iniciativa. Astória precisava mesmo dessa Capela. Esse defunto veio na hora certa, o que caracteriza esta solenidade...
Nisso, Esquisito que saía do estado cataléptico começou a mover-se no caixão e ouviu alguém falando.
- Como estava dizendo, - continuou o prefeito – essa família, dona desse defunto, aqui presente, vai ficar na história dessa Capela como sendo a primeira a usá-la...
Esquisito ouviu nitidamente e se deu conta do que estava acontecendo. Ia ser enterrado vivo e nem sabia por que.
Naquele momento, alguém viu o “morto” mexer-se no caixão e gritou: “ Olhe, o defunto ta mexendo”? E os outros entraram em coro, é... é mesmo. O morto ta levantando...
Esquisito levantou, deu um pulo para fora do caixão e desceu o morro o mais rápido que pôde.
- Calma, calma pessoal. Pediram uns aos outros, o Sr. Prefeito quase que engoliu o microfone. Outros saíram pelas portas e janelas pisoteando quem estivesse na frente.
E assim, a Capela Mortuária deixou de ser inaugurada, porque o defunto não era apropriado.O vereador perdeu aquela bandeira de reeleição.






ateleszimerer
Enviado por ateleszimerer em 29/09/2010
Reeditado em 27/03/2013
Código do texto: T2527066
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