O Delírio

-nada é o que parece ser, tudo pode ter um segundo significado, é só saber olhar, prestar atenção-

Embriaguez... estado de dormência geral, passa cambaleando pela porta do seu apartamento sem nem saber o que aconteceu, não vê nada alem de vultos com sua visão periférica, sai tateando tudo ridiculamente e sentindo o carpete macio na sola suja dos pés... realmente não sabia o que poderia ter acontecido, por que chegaria assim? Ele nem bebe! Quer dizer... eles nem bebem! Isso não é algo de seu feitio, chegar em casa e sentindo tudo vir pra fora, segura antes de vomitar, tropeça um pouco, vacilante vai até o espelho e olha, no escuro sua imagem, iluminada apenas pela luz do poste que escorria da sua janela e pingava no espelho, dava pena de ver o homem no espelho, o ébrio de barba mal feita com um cavanhaque escondido em meio dela, cabelos castanhos sujos e curtos, assanhados caídos sobre o rosto, olhos amarelados e olheiras grandes, não queria continuar vendo aquilo, aquilo não podia ser ele, mas era... aceite isso!

Era! Um grito ecoou pelo apartamento sombrio e o barulho do vidro estilhaçado compunha a melodia, o barulho de caquinhos de vidros caindo e caindo pelo chão, depois um som mais delicado que pouco se podia perceber aos ouvidos sãos, um som delicado e cortante nos ouvidos insanos do louco, que insistia em querer entrar naquele local!

O gotejar do sangue caindo no chão, você pode não perceber, mas aos ouvidos dele aquilo o fez cessar os gritos e soltar o punho que apertava sua mão, relaxou-a escutando o gotejar cortante e delicado do sangue, ficou prestando atenção... Não era um pingo qualquer. Todos os líquidos podem ser confundidos, mas esse não, esse era diferente, podiam ser confundidos até com sangue comum, mas esse não...

Dava pra sentir o peso do sangue caindo, tudo que ele carregava se estilhaçando quando chocado contra o chão, quase que cacos de vidro quebrando, mas era algo mais bruto, mais triste, podia ser qualquer coisa, mas aquilo era diferente...

Levou a mão até a altura de seu olhar fraco e viu o fio de sangue descendo dos dedos

Ficou acompanhando o caminho até chegar a poça no chão

Olhando agora, não um só, mas dezenas de pequenos espelhos no chão, aquilo causou um arrepio e quase que raiva.

Quebrou o espelho por não agüentar se ver naquele estado e agora se deparava com dezenas de espelhos com aquela mesma imagem deprimente, aqueles mesmos olhos olhando para ele, todos os encarando... Vontade que deu foi de estilhaçar um por um daqueles olhos, mas adiantaria de que? Formaria só mais pares de fiscais para ficarem observando-o.

Tirou o olhar daqueles bichos e esfregou com a mão na camisa para limpar o sangue, caminhou mais para dentro do apartamento, sabia que mesmo tirando os olhos daqueles reflexos, os reflexos continuariam encarando-o.

Viu um colchão grande com uma cocha toda desalinhada em cima, não queria saber. Jogou-se em cima escutando o barulho das molas rangendo, o movimento de trampolim deu-lhe vontade de por as tripas pra fora, colocou a cabeça rapidamente para fora da cama e soltou tudo, nem sabia o que havia comido, se havia comido.

O gosto azedo na boca o deixou tonto.

Por que ficara daquele jeito? Por que agia daquela forma?

Tudo tudo tudo, parecia surreal, aquilo parecia uma viajem ao nada, o vazio completo naquele quarto escuro com uma visão encarando o teto, uma luz prateada no teto,

Uma luz arredondada da rua fazia sombras, mas não pareciam ser da rua, pareciam sair de dentro dele depois ficarem encarando ele deitado ali, fixado nelas...

Agora só havia gemidos, os gritos já foram gastos despedaçando sua imagem,

Seus medos agora são o que mexem seus músculos, esqueleto parece nem ter mais, levado por algo igual a fumaça inalada de dentro dos pulmões,

Com dificuldade pressiona os olhos com os dedos rolando para fora da cama

Cai no chão...derrotado, não sabe direito para que servem as pernas agora, tudo que se pode imaginar, tudo que se tinha, daria para saber como se movimentar agora, ou tirar aquela visão turva que insistia em dificultar a exergar, então se arrasta um pouco pra debaixo da cama, se esconde ali, no lugar fedorento e escuro, para se sentir melhor, se camuflando no cheiro e não sentindo mais falta da utilidade da visão, e para que usar pernas? O peso todo da cama está petrificado em cima agora, o silencio se torna quase completo, exceto pelo o barulho da pessoa de contorcendo em cima do colchão fazendo eco debaixo da cama e alguém cutucando os cacos de vidro na sala...

Vai procurando não sei o que no carpete debaixo da cama, onde não era pra ter nada, talvez ele nem imaginasse encontrar nada, foi só por reflexo que procurou qualquer coisa e tateou com os dedos uma superfície de metal gelada e cilíndrica, um cano.

Puxou o cano seguiu deslizando e sentindo o revolver se formar e encaixou aquela arma em sua mão, abraçou aquilo envolvendo com os seus dedos...

Podia-se ver no escuro total o reflexo da luz da rua refletido no cromo da pistola, ou seria o brilho da luz que circulava as sombras do teto... não tem importância era só reflexo mesmo, escuta um “click” de gatilho engatilhado parece que com aquilo a arma se torna mais pesada e mais atraente...

Tão fascinado deitado de barriga para chão sob a cama olhando para a sua mão aproximando cada ver mais o instrumento para perto de si...

Não imaginava que tinha uma arma, nem sabia onde havia guardado-a.

Aproximou tanto que quase beijava o cano da arma, sentia o cheiro da pólvora, escutando o alguém se contorcendo mais um pouco em cima da cama e o tilintar dos vidros cutucados no chão do corredor...

Apenas seus olhos estavam iluminados naquele escuro, iluminados pelo reflexo hipnotizante daquele instrumento, ele queria lhe contar algo, sabia que sim, talvez algo que lhe fizesse lembrar como foi parar ali, ou algo que lhe mostrasse a saída de sair de lá, tinha de saber o que ela tinha para dizer, era tão bonito...

Então foi tirando de frente do seu rosto e colocando para perto de suas têmporas até sentir o cano frio encostar no couro cabeludo, foi escorregando até próximo do seu ouvido para escutar a solução de tudo.

Quem se contorcia na cama agora parecia um doente e enjoado e escutou-se um grito ecoando por toda a casa vindo guiado pelo seu corredor.

Foi sentindo, com os dedos o gatilho, foi sentindo o sussurro de quase palavras, talvez ainda estivessem se formando. Forçou-se para escutar, mas precisava escutar mais alto, aproximou mais o cano escorregando pro ouvido e encostou quase que dentro em seu tímpano, acariciou aquele gatilho esperando por uma reposta, então um estouro seco foi escutado por todo aquele apartamento.

Quem se contorcia na cama agora parecia atônito, e inalcançável e o tilintar dos cacos de vidros pararam e os olhos todos nos espelhos se fecharam e sumiram na escuridão daquele cômodo.

O homem debaixo da cama agora dormia com sua calma por escutar o que precisava.

Cadu Guerra
Enviado por Cadu Guerra em 03/09/2010
Reeditado em 28/09/2010
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