O FORASTEIRO (Conto Original)
A noite de sábado caía calma e fresca, com prenúncio de estrelas que além de enfeitar o céu servem de velas aos incautos que rasgam a madrugada, ou sem rumo certo, ou puramente para usufruir os prazeres simples que oferece a vida noturna de uma pacata cidade do interior.
Bem à vista de todos, exposta logo na entrada da cidade, vê-se uma enorme placa, incrustada sobre um lindo canteiro, cuja relva se encontra brilhante por causa do sereno que caiu no gramado cheio de flores, na placa se lê a inscrição gravada em letras garrafais:
“SEJA BEM VINDO A..."
Placa de metal não tem olhos nem coração para analisar as pessoas que há décadas, por interesse próprio ou por acaso ali chegam e se instalam, uns vem para ficar e se enraízam e tornam- se respeitados cidadãos do município; outros embora fiquem um curto espaço de tempo, mesmo não sendo notados, trazem para horror dos habitantes locais a desgraça que os marcará para sempre.
Ele fitou a placa e não obteve uma visão nítida, mesmo com a noite enluarada.
Não importava o nome do lugar que o acolhia, porque o que lhe interessava se não lhe desse, ele tomava.
Dono de um par de olhos negros e profundos, perdidos no nada, assombreados por espessas sobrancelhas igualmente negras, seu olhar taciturno, dava-lhe um aspecto de homem mau, de um malvado sem coração.
O nariz achatado não ornava a face, fora quebrado varias vezes, resultado de lutas desleais. A boca tem a aparência de uma fenda mal feita, recheada de dentes amarelos e descuidados, se assemelhando a um rasgo que não fora feito para sorrir.
A barba negra cerrada completa o asqueroso quadro de seu perfil.
A roupa surrada e fétida parece fazer parte de seu corpo, e banho somente de chuva quando não encontra abrigo.
Calça um par de tenis, que furtara em certa ocasião, ainda em boas condições, mas exala tremendo mau cheiro devido ao seu uso constante, ao suor. Seus pés estão tomados pelos fungos. Acostumou- se com seu odor e não se incomoda.
O porte físico é grotesco; pernas e braços musculosos, comandados pela mente pervertida por alguma doença mental severa ou pura misantropia. Seu corpo nutre-se de sua mentalidade deturpada.
A essa altura da noite, caminha a passos largos, prestando atenção a todo movimento da desconhecida cidade. Vem de longe, de muito longe. Desconhece o próprio nome. Enquanto caminha, seus pensamentos sem nexo flutuam sem passado e sem futuro, o fato de não ter um nome em nada lhe afeta, é até bom passar incógnito pela vida das pessoas, não é preciso apresentar- se, expor-se, as próprias pessoas o chamam por qualquer nome quando se torna inconveniente, ou sua presença é inoportuna, então aparece alguém que esbraveja
: - Ou Zé o que você perdeu por aqui? Circulando, vaza...
Ou então:
-Some daqui Mané, vai trabalhar vagabundo! Em várias situações assim, ele levanta a cabeça, e sai muitas vezes assoviando.
De forma alguma isso o afeta. Ele sente-se superior, acima da opinião das pessoas, é um ser mundano, um forasteiro onde quer que vá.
Precisa descansar, está andando horas e horas a fio. É forte, mas não é de ferro. Vive numa fuga sem trégua, sem saber do que foge, sem ter para onde ir. Seus pés estão cansados, doloridos de tanto andar, não sabe precisar quantas horas ou quantos quilômetros andara até chegar à pequena cidade.
Sua mente não trabalha com números, e seus pensamentos são confusos, não sabe exprimir com palavras os seus sentimentos, não sabe o que é sentir frustração, tristeza ou alegria, nem imagina o que é ter esperança, fé, amor, ódio, mágoa. Ele não sente nada! Não tem alma!
A pequena cidade exibe ruas limpas, algumas cobertas com o asfalto negro e liso, outras calçadas de pedra. A cidade está em paz. Suas casas de portas abertas, embora com grades para defendê-las, não aparentam medo da violência como ocorre nas cidades grandes. Talvez por conhecerem-se uns aos outros, sabem como defender- se de suas próprias concupiscências e justamente por isso não estão preparados para enfrentar o mau que chega com o desconhecido.
As pessoas olham de soslaio para o andarilho, os cabelos negros cacheados, desgrenhados, lhe cobrem a nuca, observando de longe tem- se a impressão que carrega um ninho de passarinho na cabeça, então desviam dele.
Assim como não tinha o costume de lavar o cabelo, também não o penteava. O reflexo avermelhado sobre a cabeça era formado pela poeira da estrada, seu aspecto é realmente asqueroso e hostil.
Enquanto caminha a passos lentos, observando tudo a sua volta, sente um buraco abrir-se em sua barriga, um aviso de que precisa comer.
Pedir ou roubar, só havia essas duas alternativas. As casas fechadas, escondidas atrás de fortes grades, lhe olham com cara de poucos amigos, parecendo saber de seu intento. Sabe que é persona non grata, em qualquer lugar que aparece; já está acostumado com sua sina, isso não lhe afeta mais. Parou num bar perto da rodoviária da cidade, entrou e fez seu pedido: - um copo d’água, disse com voz forte, que unida à sua aparência, não agradara a ninguém que está no local. Teve a impressão que todos ouviam o ronco estrondoso de seu estomago.
- Me dá alguma coisa pra comer e vou embora; sua voz soou estrondosa no recinto.
O senhor de meia idade, atrás do balcão, fez um muxoxo, mas pegou um saco de papel e guardou lá dentro, quatro salgados que estavam expostos na estufa em cima do balcão, entregou juntamente com uma lata de refrigerante e um copo d’água e ordenou:
-Ta aqui, vá embora.
Estava acostumado com a indiferença e o asco que era tratado. No inicio estranhou, mas com o passar do tempo descobriu que tinha o poder de ser superior, dotado de uma força descomunal, e de falta de sentimentos, em certos momentos seu demônio interior despertava, e toda a sua maldade e sua força, voltavam- se contra aqueles que eram inferiores, em força e tamanho.
Nessas horas, não sentia prazer propriamente, apenas certa satisfação por ter seu instinto animalesco saciado.
Andou um pouco, se distanciando do boteco que o serviu, saindo assim do alcance dos olhares indiscretos e desconfiados, próprios de moradores de cidades provincianas.
Sentou-se no meio fio, à beira da calçada, comeu e bebeu. Passavam das 20 horas, saiu caminhando, sentia- se satisfeito, pois tapara o buraco do estomago, por hora está com outro tipo de fome.
Andou sem rumo por várias quadras, até vislumbrar uma rua arborizada. Reparou os jardins bem cuidados na frente das casas com arvores sombreando os passeios, ele sentiu o cheiro doce das flores cujo perfume inebriava-o, mas sua atenção está voltada interessadamente para a linda menina de lindos cabelos castanhos. Os belos cachos iam até quase a cintura, soltos ao sabor do vento.
Seu rostinho de bochechas rosadas e lindos olhos cor de mel a fazem semelhante a um anjo em figura de gente. Animada e cheia de vida, brinca solitária na frente de casa. Canta uma musica infantil enquanto pedala a pequena bicicleta vermelha, de rodas prateadas, com um cestinho na frente, onde estão acomodados um ursinho marrom e uma boneca pequena e magra, de roupas coloridas.
Ouvem- se vozes no alpendre da casa, enquanto a menina brinca, ele, precavido parou a alguns metros de distancia e passou a observar a cena que se desenrolava frente a seus olhos cobiçosos.
Foi chegando devagar, e ninguém viu nada, nem mesmo houve tempo para que a pequena gritasse.
O brinquedo da criança queda inerte junto ao meio fio. Horas mais tarde o andarilho toma o caminho oposto à placa de Boas Vindas. Prossegue sem remorso pelas estradas, segue sujo, solitário, vazio; enquanto a linda menina morta segue em paz, posto que seja anjo e mártir. Vai unir-se a outras pequeninas almas vítimas do mesmo algoz. O forasteiro socialmente insignificante torna-se quase invisível, é rapidamente esquecido e se esquiva impunemente.
Agora o forasteiro visita mais uma cidade. Só Deus sabe, quando cessará a procissão de Mães que se consomem na dor e na saudade. Só Deus sabe qual será o fim dessa história.