Lapso
O recado no celular estava péssimo, todo cortado, não conseguiu entender metade do que ela dizia em voz aflita. Pescou apenas algumas palavras: “me perdoa”, “espero”, “possa me entender”, “preciso impedir”, “não pode acontecer”. No final, o “amo você”, com a voz mais grave, que ainda o arrepiava sempre, mesmo depois de tanto tempo juntos. Tentou retornar a ligação, sem sucesso. Deixou recado, ela ignorou.
Pensou que, mais tarde, após a estréia da peça, se encontrariam e ela esclareceria tudo. Ela não apareceu. Nem naquela noite, nem nas que se seguiram. A certeza de que algo estava muito errado chegou com uma ligação da mãe dela, angustiada, sem notícias da filha. Na delegacia, foram atendidos por um agente meio truculento que lhe fez uma série de perguntas. Logo, percebeu-se na condição de suspeito. O carro dela foi encontrado uma semana depois, no Instituto de Pesquisas da universidade onde ela dava aulas. Segundo testemunhas, estava lá desde o dia de seu desaparecimento. A bolsa, com documentos, dinheiro, óculos e maquiagem estava sob o banco do passageiro. Dentro, o celular, desligado. Aparentemente, ela o desligara logo depois de ter deixado o recado para ele, pois não havia mais registros de chamadas. Dentre os que havia, nenhum número estranho.
Ao mesmo tempo em que era freqüentemente perturbado para prestar depoimentos ou por agentes com mandados de busca e apreensão em sua casa, trabalho e até automóvel, Henrique começou a perceber que, se desejasse encontrá-la, precisaria agir por conta própria. Decidiu iniciar sua investigação pelo trabalho dela, mas, quanto mais perguntava, mais confuso ficava. Ninguém a conhecia, professores, funcionários, serventes, nenhum dos estudantes perguntados era seu aluno ou sabia de alguém que fosse. Começou a perceber que ela não era quem dizia ser. Não podia acreditar que ela mentira para ele durante tanto tempo. Estavam juntos há quase um ano, desde que foram apresentados numa festa na própria universidade onde ambos lecionavam. Ele apaixonou-se de imediato. Ela tinha um ar circunspeto e era calada. Mas quando sorria, aquecia tudo ao seu redor. Pelo menos, ao redor dele. E ele a fazia sorrir com freqüência o que parecia fazer bem a ela também.
Falavam muito do trabalho dele, das apresentações, dos alunos do curso de teatro onde ele lecionava direção e cenografia. Raramente, falavam do dela e, sempre que ele tentava, ela desconversava, dizendo que ele ficaria entediado com as fórmulas e outras minúcias. Agora, começava a perceber porquê.
Mas, por que ela mentiria para ele? E, ainda mais urgente saber: o que ela realmente fazia? Milhões de idéias mirabolantes passavam por sua cabeça. Pode mesmo imaginá-la fazendo strip tease em alguma boate barra pesada. Ela era linda, estava sempre maquiada, bronzeada. O mundo que se acabasse, ela não abria mão da corrida matinal, do salão onde cuidava das unhas, dos lindos cabelos ruivos, longos e ondulados. Usava roupas provocantes, discretamente ocultas pelos eternos jalecos brancos... Agora ele se dava conta! Tudo armação! Magoado e ferido em seu orgulho de macho, começava mesmo a imaginar-se traído não por um, mas por vários homens diferentes, nas noites em que ela não aparecia, mensagens lacônicas deixadas no celular dele explicando a ausência: “reunião”, “coordenação”, “banca”.
Sentado no Café do Campus, remoía-se em escabrosas teorias, quando uma mão pequenina tocou seu ombro. Era Ivani, a amiga que estava com ela, na noite em que a conhecera. Estava preocupada com o desaparecimento da amiga.
- Nunca mais quero ouvir falar nessa mulher! - respondeu, irritado.
- Por favor. Você tem que me ouvir. - pediu Ivani, visivelmente angustiada.
- Ela mentiu para mim! Mentiu para mim todo esse tempo...
- Foi para o seu bem.
- Para o meu bem? Era só o que me faltava! Eu a amava! Queria me casar com ela! Queria ter filhos com ela! Como viver uma vida de mentiras pode ser para o meu bem?
- Por favor, Henrique, escute-me. Yolanda, eu e outros pesquisadores da Universidade trabalhamos para o governo, num projeto científico. Para sua própria segurança, não posso lhe dizer muito mais sobre isso. Só sei que Yolanda descobriu alguma coisa que a deixou apavorada. Ela também não quis me contar o que era. Apenas insistia que não poderia deixar isso acontecer...
- Ela disse algo assim também, no meu celular... - ele a interrompeu, intrigado e lhe contou sobre a mensagem.
- Acho que eles a pegaram... - Ivani ponderou, chocada com a idéia.
- Eles? Quem são eles?
- Ela descobriu algo sobre o projeto. Tentou dizer a eles, mas... Oh! Meu Deus! Não posso contar mais...
Esta conversa ainda estendeu-se um pouco, mas Henrique não conseguiu arrancar nada mais de Ivani. A moça queria sua ajuda para encontrar a amiga, mas recusava-se a fornecer quaisquer outros detalhes. Desse dia em diante, tornou-se uma obsessão conseguir informações sobre a vida real da mulher que amava.
Sua investigação reiniciou-se nos pertences dela. Agendas, papeizinhos com anotações, o celular. Conseguiu muito pouca coisa ali, mas encontrou alguns nomes, dois deles igualmente ligados ao projeto. Aldair Peixoto e Adméia Silveira Borges. Lembrou-se que, durante as investigações pelo desaparecimento de Yolanda, Adméia teria lhe telefonado algumas vezes pedindo notícias. Sempre se sentira meio incomodado com a forma como ela falava, comedida e inquisitiva. Diante da visível desinformação dele, ela aumentou o intervalo entre as ligações até parar completamente. Ele resolveu procurá-la, pareceu-lhe um bom ponto de partida. A senhora já grisalha tinha uma fisionomia respeitável e até simpática, mas transparecia algo que o incomodava. Seus gestos e palavras demonstravam uma raiva intensa, que ela tentava disfarçar em pesar pela moça e que ele, por sua experiência em interpretação teatral, conseguia perceber nos sinais corporais que ela não ocultava. Entendeu infrutífera sua busca e, igualmente desalentadora foi a conversa com Aldair e outros pesquisadores do Instituto. Porém, conseguiu pescar um evento importante que teria coincidido com o desaparecimento dela: uma explosão que destruíra parte do laboratório onde suas pesquisas ocorriam. Por mais que buscasse, não havia qualquer referência ao incidente na mídia. Novas esperanças surgiram quando um de seus alunos, militar do corpo de bombeiros, confirmou a ocorrência de um incidente no prédio naquele dia. Sem vítimas, apenas perdas materiais e a instrução de abafarem o caso. Depois disso, Henrique não conseguiu mais nada. Ninguém que participou da extinção do incêndio lembrava-se do episódio ou mostrava-se disposto a falar sobre ele. A polícia deixou-o em paz, mas também não trouxe qualquer luz sobre o assunto. Ivani, do nada, ganhou uma bolsa para estudar fora do país e nunca mais o procurou. Aldair e Adméia também não quiseram mais recebê-lo. Somente a mãe de Yolanda ainda tinha esperanças em encontrar a filha viva e, vez por outra, reaparecia como um fantasma. Henrique e ela freqüentaram por um tempo um grupo de apoio a familiares de pessoas desaparecidas, mas a falta de objetividade com que as ações eram tomadas lhes desestimulou e desvincularam-se em seguida. Até mesmo a relação entre eles começou a parecer estranha e sem motivos e ela parou de procurá-lo.
Henrique foi, aos poucos, retomando sua vida. Conheceu outras mulheres com as quais se envolveu, mas nunca se casou. Pouco mais de doze anos haviam se passado então, quando Yolanda reapareceu, tão linda quanto naquele dia. Henrique pensou que estivesse sonhando, ao abrir-lhe a porta, entre emocionado e incrédulo. Ela entrou e entregou-lhe o jornal do dia. Em manchete de capa, a morte de Adméia, Aldair e outros dois pesquisadores num acidente de automóvel.
- Programei minha chegada para hoje, por causa disso. - ela disse, apontando o jornal.
Ele desistiu de tentar entender. Sabia que ela finalmente lhe daria algumas respostas. E foi o que ela fez, em voz pausada e terna, como explicasse a uma criança. Ao conhecê-lo, ela já trabalhava no Instituto há mais de dez anos. Fora convidada por Aldair, mas havia a determinação de manter todas as pesquisas e experiências em sigilo, por questão de segurança nacional. Em 2010, finalmente, conseguiram realizar as primeiras viagens.
- Viagens? - ele interrompeu.
- Sim. Viagens. No tempo.
- Ora, Yolanda! Não me venha...
- Por favor, Henrique, deixe-me prosseguir.
Ele assentiu e ela continuou sua narrativa.
- Um dia, acidentalmente, avancei até 2030.
- 2030? - perguntou ele, incrédulo.
Ela ignorou a interrupção:
- Fiquei horrorizada com o que vi. Nosso planeta! Estava completamente... destruído. - concluiu.
- Então nós, os ecologistas, temos razão?
- Não ironize, por favor.
- Desculpe, não era a intenção. Como você soube que o planeta estava destruído?
- A máquina não se move no espaço. Só no tempo. Quando “desembarquei” em 2030, não havia mais onde “pousar”. Fiquei flutuando no vácuo.
Ele mostrou-se mais interessado. Ela prosseguiu contando como, chocada por sua descoberta, voltou de ano em ano até 2023, quando conseguiu compreender que a máquina do tempo fora a principal causa de toda a destruição. Seu funcionamento, corriqueiro a partir de 2020 quando passou a ser produzida comercialmente, provocou um total desequilíbrio no campo magnético da Terra que desapareceu no espaço, engolida por si mesma, como um buraco negro. Soube tudo isso pelos jornais e outros periódicos dos dias que antecederam o fim do planeta. Voltou a 2010 amargurada e, imediatamente, alertou os chefes sobre o perigo. Adméia mostrou sincera preocupação com o fato e Aldair pediu a ela que retomasse seus estudos, visando reduzir os efeitos do uso da máquina sobre o planeta. Mas uma troca de olhares entre eles a alarmou.
- Senti que não podia confiar neles e fiz nova viagem, apenas dois anos à frente. Como esperava, diante da impossibilidade de resolver em curto prazo a questão do dano ao planeta eles me afastariam do projeto e continuariam na mesma linha de pesquisa. Foi quando tomei a decisão de destruir o laboratório e desaparecer no tempo, levando comigo todo o conhecimento que lhes permitiria retomar as experiências.
- E eu? E sua mãe? - ele quis saber.
- Eu só pensava em vocês! Não consegui falar com nenhum dos dois. Talvez tenha sido melhor assim. Se vocês soubessem de tudo isso antes, poderiam correr perigo.
- E a explosão? Foi você?
- Sim! Com ela, eliminei todas as anotações, toda a pesquisa. Voltei para 2030 e, chegando lá, o mundo estava salvo. Pelos jornais, descobri que o laboratório foi fechado por falta de verbas e consegui localizar esta notícia do jornal de hoje. Então programei a máquina para voltar.
- E agora? Onde está a máquina?
- Escondida. - olhou-o com perturbadora intensidade - Você ainda me ama?
- Eu não sei! - respondeu, angustiado - esperei tanto por este dia e, agora, não faço idéia... Foram doze anos!
- Para mim, apenas seis horas... - ela respondeu tristemente.
Ele a olhou. Toda aquela história era inacreditável, mas ela definitivamente não havia envelhecido nada desde a última vez que a vira, exatamente com aquelas roupas há tanto tempo. Sua vida melhorara muito, financeira e profissionalmente, conquistara o espaço almejado por quase todos que fazem teatro. Seu nome num cartaz era a certeza de casas lotadas, seu curso era dos mais concorridos na Universidade. Ainda assim, o vazio deixado por Yolanda sempre o impedira de ser completamente feliz, sentia-se incapaz de amar novamente. Era como se ele ainda a esperasse voltar. Por outro lado, não sentia mais dentro de si todo aquele amor por ela que o fizera dedicar parte de sua vida a procurá-la. Só o vazio.
Ela o observava ansiosa por uma resposta. Mas o conhecia bem o bastante para saber que seu amor por ele já não encontraria mais eco em seu coração. Sorriu forçosamente.
- Não se preocupe. Farei minha última viagem na máquina. Gostei do futuro. Vou ficar em algum lugar por lá e destruo a máquina, para não vir mais perturbá-lo.
Encaminhou-se para a porta, em silêncio. Voltou a olhar para ele:
- Amo você. - disse, a voz mais grave. Abriu a porta.
- Espere! - gritou antes que ela saísse, dominado pelo arrepio. O mesmo arrepio, depois de tanto tempo.
Imagem daqui.