ABANTESMA

O milharal rescendia seu aroma por toda a casa. A plantação começa desde a porta da cozinha, é uma cerca viva que impede a visão da porteira da fazenda, que fica a alguns metros de distancia da casa. Ali corre uma água fresca vinda da mina, a bica d’água tem som de paz. O liquido abençoado é canalizado naturalmente e represado num tronco de madeira escavada, que serve para lavar as louças e utensílios da cozinha. Tudo muito rudimentar.

Meu tio Alfredo, mora só. Tem má reputação nas redondezas, por causa de sua fama de matador de aluguel. É o único irmão de meu avô e quando os pais morreram, ficou morando na propriedade rural da família. Nunca se casou, tinha o costume de passar uns tempos longe de casa, e corria o boato que se afastava para realizar outro tipo de serviço encomendado por alguém ansioso em se desfazer de algum desafeto. Diziam as más línguas que ele havia silenciado dezenas de homens e com o dinheiro angariado comprou ouro e enterrou em algum lugar da fazenda. Diziam também que se aposentara porque matou um homem por engano, outros diziam que é porque já estava velho e muito rico.

Alfredo acorda bem cedo, coa o café forte, que toma puro, sela o cavalo e vai bater pasto.

Por volta das 10 horas, ele retorna, vai ao quintal buscar uns paus de lenha, ouve um barulho, mas o milharal está quieto, pensa que deve ser o cachorro, que de tão velho e manso não late mais. Acende o fogo, pega água na bica, enche a panela e deixa sobre a chapa, em seguida apanha algumas espigas de milho, retira as folhas, o milho verde dá água na boca.

Quando está adentrando a porta da cozinha, ouve alguém chama- lo pelo nome e ao virar- se o pistoleiro descarrega a arma sem piedade.

Na cozinha a panela ferve no fogão sobre a lenha crepitante, no quintal as espigas se esparramam misturadas na poça de sangue.

Meu pai é o único herdeiro, recebe a noticia da morte e da herança. Quando saiu o formal de partilha, ele resolveu que iríamos passar uns dias na fazenda. Eu e meu irmão ficamos extasiados com a idéia, pois ouvíamos muitas histórias sobre tio Alfredo, ainda mais que não o conhecemos pessoalmente, isso fazia dele uma figura lendária para nós crianças cheias de imaginação.

Porém, quando chegamos, ficamos muito decepcionados, pois o mato tomava conta de tudo, um peão que sempre trabalhara para tio Alfredo, ia para cuidar dos animais e da plantação de milho, mas o resto estava uma lástima.

Ao entrar na casa, o ambiente pareceu- nos bastante sinistro, o piso da cozinha era de chão batido, muito liso, as paredes negras da fumaça do fogão a lenha, que era enorme, muito antigo, ocupando grande parte da parede. Havia uma mesa muito antiga de madeira, que muito nos interessava, pois corria o boato de que tio Alfredo guardava na gaveta que estava trancada, as orelhas secas de suas vítimas. Pedimos, eu e meu irmão, que meu pai abrisse a tal gaveta, mas ele ignorou nossos pedidos. Depois da cozinha ficava a sala que deu- nos impressão de um dia ter sido aconchegante; o piso de tábuas corridas, paredes gastas com teias de aranha. Havia uma cristaleira que se restaurada, disse mamãe, valerá uma fortuna. Sobre ela, repousa uma imagem de Santo Antonio e um rádio de madeira, de válvulas, mas que funciona perfeitamente, pois de repente começou a tocar umas modas de viola, meus pais pensaram que eu ou Miguel, meu irmão caçula tivéssemos mexido nele.

Protestamos em uníssono:

- Não mexemos em nada. E em nossas mentes infantis pensávamos;

- O que é que tem mexer? Pois agora é nosso!

Havia também um par de sofás de couro, que estavam bem surrados, deviam ser da época de meus bisavós. Em sentido oposto à cristaleira, em pé, está um relógio de pêndulo, que segundo minha mãe, também vale uma fortuna, mas na calada da noite, o TIC TAC e as badaladas causam certo desconforto na gente. O que havia de mais novo por ali era um cofre que fora encaixado no buraco da parede, ficando visível apenas a fechadura de segredo, objeto que destoava do resto da sala. Havia apenas um quarto na casa, guarnecido por umas camas estranhas, pobres e toscas, na verdade são duas, uma de casal e outra de solteiro, mas são muito altas, minha mãe levantou um dos colchões e o estrado parecia ser de couro, achei tudo sinistro, ela explicou que não são camas são catres.

O primeiro dia na nova propriedade da família transcorreu normal, assim como o segundo e o terceiro. Meu pai contratou mais peões para auxilia- lo, e pensava em comprar umas cabeças de gado e aumentar a plantação. Estávamos nos acostumando com a velha fazenda. Aconteciam umas coisas estranhas, tínhamos levado a TV e a antena parabólica e foi instalado um grande gerador, mas depois das 22 horas, cai a energia, não havendo cristão que consiga religá-lo. É o prazo de papai ligar ele se auto desliga como se tivesse vida e comandos próprios, qualquer outro horário ele funciona perfeitamente. Várias outras coisas acontecem, uma hora é a panela que aparece com água fumegante sobre o fogão, às vezes até com espigas de milho cozinhando, outra hora é o cheiro de café forte que inunda o recinto, o radio toca moda de viola em alto volume, sem ninguém ter mexido nele mas essas coisas não nos incomodam, porque meus pais acreditam e nos ensinaram assim, que tudo no mundo tem uma explicação racional.

Chove na quarta noite de nossa estadia, o vento forte assovia lá fora, relâmpagos fazem reflexos na janela que contem alguns vãos, e os trovões ribombam ao longe. Nós dormíamos na cama de solteiro, ou melhor, no catre menor, eu com a cabeça voltada para os pés, e meu irmão para a cabeceira. Miguel, por ser o mais novo, é o preferido dos meus pais, eu acho. E meu pai apesar de ser bondoso às vezes é bastante severo e não tolera desobediência. E acontece que, bem em cima da minha cabeça, tem uma goteira, meus pais deitaram-se há pouco, e como o gerador desligara, papai leva um lampião para o nosso quarto e antes de ir para a cama o apaga . Estava escuro, eu reclamei:

-Papai tem uma goteira em cima de mim, na minha cabeça.

Ele me respondeu asperamente:

- Menino, estou muito cansado, não me amole, chegue para o canto.

Assim que me mexi, meu irmão fez um muxoxo e reclamou:

- Papai, o Mateus bateu com o pé na minha cara.

Eu me defendi:

- Mas, papai é por causa da goteira. Ta me molhando.

O Miguel de novo:

-Mateus para de me bater, ai meu nariz.

Meu pai já irado perdeu a compostura:

- Mateus pare de bater em seu irmão, ou vou lhe dar um castigo.

Fiquei magoado, como meu pai não via que o Miguel era chato e estava implicando comigo?

Mamãe interferiu:

-Meninos, tivemos um dia cheio, aproveitem o barulho da chuva para dormir.

Para ela a chuva era uma canção, eu achava que era um problemão, meus cabelos estavam molhados.

Meu irmão volta a reclamar:

-Mamãe fala pro Mateus parar de me dar pesada.

Eu quase chorando retruquei:

-Mamãe é a goteira. Choraminguei.

Meu pai apelou e disse que eu iria dormir no sofá da sala, sozinho. Eu teria medo em outra ocasião, somente a luz do lampião alumiando, eu não confiava que ficasse acesa por longo tempo. Devia ser umas onze e meia da noite, pois o gerador pifara há um par de horas. Mas, eu estava muito magoado com meus pais e meu irmão, pois nenhum deles foi compreensivo comigo. Senti- me excluído daquela família. Por conta própria resolvi ir dormir na sala, afinal meu tio Alfredo morou quase quarenta anos ali sozinho. O catre é bem mais alto que uma cama normal, eu tenho que balançar as pernas, dar um impulso no corpo para descer, pois meus pés ficam a certa altura do piso.

Quando impulsionei o corpo para baixo, meus pés não se encostam ao chão, pisam com força em cima de uma pessoa.

Eu soltei um tremendo berro de pavor e gritei:

- Papai tem alguém aqui. Está debaixo da minha cama, socorro, paiiii.

Eu pisei no ombro de alguém, senti o calor de uma pessoa sob meus pés, senti perfeitamente a curva de um pescoço, o toque no rosto,na orelha, pisei um maxilar, e era de um homem, mas eu não podia vê-lo, estávamos na mais completa escuridão.

Meu pai pulou da cama imediatamente, pegou o lampião, eu tremia de pavor, de susto, de medo. Ainda sentia a sensação de calor transmitida pelo corpo de um estranho.

Não havia no quarto, ninguém além de nós, nem sinal de alguém ter entrado e saído sem ser notado, a porta estava fechada a chave por dentro. Papai olhou o resto da casa, mas não havia nada errado. O cachorro velho dormia nos pés do fogão de lenha.

Passado tantos anos, fico ainda sem entender em “quem” ou no “que” eu pisei.