ALÉM DA VIDA

Dezembro de 1970. Maria Tereza acordou naquela manhã de sábado com uma estranha sensação tomando conta de seu espírito. Abriu a enorme janela que dava para a sacada, ficou uns instantes se espreguiçando molengamente e olhando para o jardim da frente da casa. Sentiu o perfume das flores penetrando suavemente em suas narinas. Os pardais faziam festa e podia se ouvir o zumbido de abelhas em uma colméia próxima. A inquietação fazia seu coração palpitar acelerado. Desceu para tomar café, a mãe fizera bolo de cenoura, o seu preferido. Conversaram um pouco e ela avisa que ira visitar uma amiga. A mãe ficou tranqüila e feliz, pois tem certeza que a filha terminou o namoro que incomoda todos naquela casa. Maria Tereza sempre fora uma filha exemplar, estuda em um tradicional Colégio de freiras, o melhor da cidade, está com dezesseis anos de idade e namorando pela primeira vez. Conhecera o namorado na porta da escola, onde era costume naquela época a rapaziada “fazer soca” para paquerar as estudantes. Mês de fevereiro inicio das aulas, tudo era novidade, Maria Tereza conversava alegremente com as amigas quando pressentiu que alguém a olhava. Ao virar-se ficou frente a frente com um jovem sedutor, de olhos e sorrisos que lhe atraíram como um imã. Ele tomou a iniciativa de se apresentar, desde então se encontravam todos os dias, iam ao cinema; tomavam sorvete; reuniam-se com os amigos num lugar chamado Vereda, local cheio de trilhas e de lindas quedas d’água, assim cada dia mais apaixonados o amor que os unia se fortalecia. Quando Maria Tereza tomou a decisão de apresentá-lo aos pais, julgou que seria aceito e amado também pela família. Ledo engano, o namorado tornou- se persona non grata em sua casa. A pressão para o término do namoro tornou- se insuportável, Maria Tereza sofria muito, em casa ficava triste e calada. Mas nada comovia seus pais que não aceitavam de maneira alguma o relacionamento da filha. Ela mentira dizendo que terminara o namoro. Em contrapartida o namorado é extremamente passional e do seu jeito faz enorme pressão psicológica em Maria Tereza, o ódio pela família dela tornou-se tão grande quanto seu amor pela namorada. Ele lhe pedia provas de seu amor, e Maria Tereza sempre lhe dava demonstrações de que o amava incondicionalmente. Mas naquela manhã de sábado, Maria Tereza lhe daria a maior prova de todas. Eles combinaram de se encontrar às 10h, fariam um passeio sem volta até uma cachoeira afastada da cidade. Ela não contou a ninguém aonde iam, era um segredo dos dois. Ela amarrou os cabelos num grande rabo de cavalo, vestiu seu jeans, calçou o tênis e foi ao encontro do namorado que a esperava no automóvel do pai. No chão do veículo dentro de um saco plástico estavam duas facas de açougueiro muito afiadas. Seguiram calados, ela sentia que não havia como voltar atrás. Desceram do carro, caminharam mato adentro, o namorado segurava o invólucro com as facas, se dirigiram para o lugar mais ermo que encontraram. Ao longe se ouvia o som da água e o canto de vários pássaros, o resto era um silencio mortal. Sentaram-se num tronco, ele calmamente retirou as facas e as dispôs lado a lado. O sol estava a pino. Segurou as mãos de Maria Tereza entre as suas, disse que a amava mais que tudo no mundo, e pediu que ela lhe declarasse seu amor. Da mesma forma ela repetiu suas palavras, selando assim o pacto de sangue entre ambos. Então calmamente ele pegou a faca e disse com voz rouca e emocionada que nada no mundo separaria os dois, nem mesmo a morte, ficariam juntos eternamente, e aquele que vacilasse não seria perdoado. Segurou firmemente a mão da namorada com sua mão esquerda, com a outra segurava a faca junto ao próprio pescoço, a namorada imitava seus gestos como num ritual macabro, estavam de frente um para o outro, ele apertou com mais força a mão dela, como um sinal de que era hora de se juntarem na eternidade. Com força ele desliza a faca, dilacerando a garganta; engasgando em seu próprio sangue ele cai agonizante e a ultima cena que seus olhos ainda com vida registram é a imagem de Maria Tereza apavorada olhando para ele, ele não pode dizer mais nada, mas seus olhos frente à morte iminente demonstram incredulidade diante da fraqueza da amada, o lampejo da morte se mistura ao ódio e a decepção.

Maria Tereza não sabe há quanto tempo está ali, escureceu, mas ela não tem ânimo e nem coragem de abandonar o corpo sem vida do namorado, ela só quer chorar, mas até suas lágrimas secaram. Esgotada ela dorme, acorda com os primeiros raios de sol sobre ela, não tem mais consciência de nada, está em estado de choque. Ao longe ouve- se os cães latindo, mas a jovem semi - inconsciente não escuta mais nada, desmaia perdendo totalmente os sentidos. Quando ela acorda, está em casa, no seu quarto, se esforçando para esquecer as horas de horror que viveu. A mãe trás um copo de chá calmante. Ela pergunta há quanto tempo está ali, a mãe lhe responde que faz dois dias que ela dorme sob efeito de remédios. O tempo passa e ela sonha amiúde com o namorado suicida, fato que a desencoraja a ter novos relacionamentos, até que passado quase três anos da tragédia ela conhece um rapaz na festa de aniversário de uma amiga. Depois de oito meses de namoro marcam a data do casamento. Recomeça o pesadelo na vida de Maria Tereza. Desde o jantar de noivado, além de sonhar com o ex namorado, no silencio da noite, sempre por volta da zero hora, ela acorda sentindo o peso de um corpo sobre o seu, ela tem medo de contar o ocorrido para os pais e ao noivo, pois podem achar que ela está louca. Não deseja passar por toda aquela maratona outra vez, pois foram meses de terapia com psicólogos, de remédios e consultas com psiquiatras, e agora que sua vida voltara ao normal, não quer dar desgosto às pessoas tão queridas. E assim, sem mencionar o que acontece com ela nas madrugadas, prossegue com os preparativos para o casamento, durante o dia ela leva uma vida feliz, até se esquece dos pesadelos que mergulham sua alma nas trevas.

Faz um ano que a jovem Maria Tereza se casou. Mora em uma linda casa, tem um ótimo e devotado marido, mas sua paz termina sempre depois da meia noite, quando sofre ao ver o marido ressonando ao seu lado, sem poder gritar para lhe pedir ajuda, pois sobre seu próprio corpo, todas as madrugadas, ela sente o peso de um homem comprimindo seu peito, o perfume que ele exala lhe revela identidade da pessoa que a aflige, mas o pior de tudo é sentir em sua boca, o gosto do beijo da morte, o gosto acre do sangue descendo pela garganta, o gosto da vingança daquele que um dia lhe roubara o coração.