O UNGIDO

A tarde está bem fria e o vento é morno para quem caminha sob os pálidos raios de sol, um dia daqueles que dentro dos recintos fica um frio de doer, mas ao ar livre, o vento calorento aquece o corpo, produzindo o efeito cebola nas pessoas. A pequena cidade no mês de junho se enfeita. Nas Festas Juninas, as famílias rezam o terço, acendem fogueira nas portas das casas, servem pipoca, quentão, e erguem um alto mastro enfeitado com uma bandeira na ponta com a estampa de São João, ou de Santo Antonio ou de São Pedro. Foi nesse dia dedicado a Santo Antonio, que Paulo Antonio veio ao mundo. A mãe jura que ele sorriu quando nasceu não tem lembrança de ouvi- lo chorar. Sua chegada, o pai e as quatro irmãzinhas comeram felizes. E ele talvez por nascer nesse dia desde a mais tenra idade demonstra vontade de ser padre. Na missa, ele pede o Pão de “Quisto”. A mãe explica que quando ele souber ler e escrever o Padre lhe dará o Pão de Cristo (Hóstia Consagrada). O menino decidido, com cinco anos de idade lê, escreve e quer comungar. Em casa, ele encena Missas com as irmãs e as crianças da vizinhança, alguns meninos fazem chacota, mas o pequeno padre não se abala. Veste um vestido da mãe, ajeita uns paramentos, dá sermão e abençoa os presentes. Poderia ser engraçado, mas acaba sendo comovente. Paulo aguarda o tempo de entrar para o seminário. Seu confessor, um padre octogenário, austero e piedoso, certa vez, tomou suas mãos com autoridade e lhe disse: - Filho você tem a alma sacerdotal, tem o carisma de perdoar as pessoas, de curar males do corpo e da alma, pelo dom de cura libertará do pecado e da doença aqueles que se confessarem com você. Profetizo pelo Espírito Santo de Deus. E com o Óleo Santo, ungiu o jovem. O idoso sacerdote de batina branca, encerra o ritual:

- Paulo Antonio, transfiro a você segundo a Ordem de Melquisedec , o meu Sacerdócio Régio por excelência, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Disse também:

- Este será o nosso segredo. Naquele tempo ele estava com dezesseis anos de idade e aquelas palavras ficaram gravadas na sua memória e no seu coração. O tempo passou, aquele menino agora é Padre Paulo Antonio. O povo faz fila na Igreja para se confessar, se aconselhar e pedir ao bondoso padre que lhes ministre orações de cura. Dizem que opera Milagres, que é um Santo. Ele atende toda comunidade com desvelo, e celebra a Santa Missa no pequeno distrito que faz parte de sua paróquia. É com apreço que alguns sábados dirige-se para a roça, revezando com o Diácono, alternando as semanas, assim cada quinze dias ele atende confissões e celebra a Missa no povoado de nome Vereda; depois se desloca até as fazendas vizinhas para conversar e jantar com alguma família, mas retorna no mesmo dia, pois domingo celebra a Missa da Paróquia. Padre Paulo, dirige o carro que ganhou dos paroquianos, antes ele dirigia um fusquinha que emperrava no caminho e encravava no barro quando chovia. Os fazendeiros da região que o socorriam, encontravam o padre sempre tranqüilo esperando por ajuda. Alguns perguntavam: - Seu padre, o senhor não fica nervoso com esse carro não? Ele respondia: - Para que ficar nervoso meu filho? Tudo sempre se ajeita, graças a Deus!

Um dia lhe perguntaram se pelo menos quando martelava o dedo ele xingava. E a resposta é serena:

- Xingar alivia a dor, filho? Quando machuco o dedo, ou acontece alguma coisa desagradável eu digo: Glória a Deus! Pois quando alguém usa palavras ofensivas ou de baixo calão, abrem-se dez portas no inferno e fecha- se uma no Céu. Mas quando diz ‘ Glória a Deus’, abrem- se dez portas no Céu e fecham- se mil no inferno. Lembre- se disso.

O fim de semana chega nebuloso, um céu bonito para chover. O Padre se prepara para pegar a estrada. O Ministro que o auxilia não pode ir, mas isso não é empecilho. Vai sozinho louvando a Deus pelo caminho. Canta alegremente e recita salmos, o percurso de duas horas e meia torna- se prazeroso, dizem que ele fala com seu Anjo da Guarda e ninguém das redondezas duvida disso. No povoado ouviu confissões antes de celebrar a Missa, após despediu-se dos fiéis, e costumeiramente dirigiu- se para a Fazenda do Mané Pedro, cuja família lhe recorda a sua própria. Moram o Mané, sua esposa e filhos, quatro moças e o menino que gosta de ouvir as historias do padre. Havia muita lama na estrada teve que deixar o carro estacionado num desvio e prosseguiu a pé, escurecia. Com o sapato sujo de lama foi desviando das poças d’água, a chuva torrencial transbordou o rio, e a ponte estava quase totalmente encoberta pela água, ele viu vagamente as laterais de madeira, e assobiando “Com Minha Mãe estarei”, atravessou a ponte. Por volta das 19 horas o padre adentrou pela porteira da Fazenda. Ele convicto de que era esperado, não compreendeu a expressão de surpresa estampada no rosto de todos quando o receberam na porta. Conversaram, rezaram, jantaram, e foram tomar o cafezinho; o filho caçula do dono da casa, que gosta de ouvir historia, senta- se, no chão aos pés do padre que se instalou confortavelmente no enorme sofá da sala de visitas e pergunta:

- Padre Paulo, como foi que o senhor chegou até aqui em casa? A pergunta surpreende o vigário, mas ele responde tranquilamente:

- Vim do mesmo jeito que venho todo sábado, uai! Caminhando com minhas pernas, pelo trajeto de sempre. Deixei o carro bem antes da ponte porque estava patinando muito por causa da lama, assim não havia como seguir pela estrada, então cheguei à ponte que estava parcialmente coberta pela água, vi apenas o vulto das colunas laterais, me apoiei num lado delas e atravessei a pé. E agora estou aqui de barriga cheia, sem entender a pergunta. E riu da indagação sem sentido e inocente feita pelo menino, pois ele visita a família toda semana. Mas para seu espanto, eles se encaram boquiabertos, mudos, olhando para ele como se olha para um fantasma. - Meus filhos o que há com vocês? Ressabiado ele pergunta.

Então o fazendeiro lhe responde:

- Padre Antonio é absurda sua afirmação, porque é absolutamente impossível o senhor ter feito o mesmo trajeto de sempre. O padre retruca:

- Como assim, filho? É o único caminho que existe, o único que conheço pelo menos.

A esposa do Mané Pedro explica: - Justamente, padre, é o único trajeto, pela ponte. Então, o senhor viu que ta chovendo, não viu?

- Sim, eu vi filha, cheguei aqui todo enlameado. Mas continuo sem entender... Respondeu, com mão alisando o queixo, aguardando uma explicação plausível para todo aquele questionamento. Atônita ela explica:

- Padre é impossível o senhor ter chegado aqui desse lado do rio pela ponte. Entenda bem, não há como o senhor ter passado pela ponte, estamos ilhados aqui, ninguém chega ninguém sai, a tempestade de sexta feira foi tão violenta que a ponte foi destruída, rodou na corredeira daquele rio caudaloso. Desapareceu! Não sobrou nada no lugar dela.