• MEDO DE ESCURO 2 •

A coisa calou, enfim. Também aquietei, controlando meu pavor mordendo o lábio com força. Silêncio absoluto. Senti em mim que ela estava aguardando. Aguardando eu falar? Não. Avancei um passo para a direção de onde sabia estar o sofá. A coisa grunhiu como um leitão, no que solavanquei pra trás, assustado, afastando da cabeça a vontade de abrir a porta e sair correndo pela rua. Ela voltou a lamuriar, agora mais audivelmente, como se me desafiasse, de alguma forma estranha e anormal, a me aproximar e saber o que acontecia.

'P-por favor, e-eu moro sozinho, e-eu... eu acabei de mudar pra cá...', eu supliquei, tendo a pretensão de imaginar que, fosse aquilo o que fosse, talvez pudesse ler meus pensamentos e saber que eu a queria fora de minhas dependências.

Arrisquei-me a mais um passo. O vento frio da região adentrava pelas frestas de portas, janelas e por entre o soalho empoeirado, fazendo minha única luz bruxulear hora e outra. Porém, ainda que fraca, a chama foi suficiente para mostrar-me o que se escondia num vão apertado entre a parede e a arca de carvalho, logo atrás do sofá. Uma silhueta pequena, curvada, metida ali no meio, de rosto escondido nas sombras. Ela não me viu aproximar. Ainda miava como uma gatinha com fome.

'Ei... Oi?', eu chamei cuidadosamente dando a volta no sofá para parar diante dela, 'Oi, você pode me dizer seu nome?'

Ela mergulhou num silêncio imutável, não atreveu-se a me olhar.

'C-como.. Como você entrou aqui?', Insisti, determinado a descobrir o meio de entrada e saída da criança e decidindo naquele instante lacrar tal rota, a fim de impedir maiores incômodos.

'Você veio sozinha?'

Vi a cabeça dela fazer levemente que não, ainda que não quisesse se virar para me olhar nos olhos.

'E vocês vêm sempre aqui?'

Ela meneou positivamente.

'Você fugiu de casa, é isso?', deduzi, lembrando de meus tempos de moleque e de meu hobbie preferido: Enlouquecer minha mãe, fazendo-na pensar que eu havia fugido de casa, com o mero e cruel intuito de me vingar quando estava furioso.

Mas minha convidada fez que não.

'Me diga onde você mora, eu posso levá-la em casa. Seus pais devem estar preocupados com você', comentei com ar falsamente paternal. Nunca tive vocação para pai de família.

O que ela fez em seguida me surpreendeu de tal forma que caí sentado, quase deixando a vela apagar com meu descuido. A criança elevou um dos braços, muito magro, dobrou o pulso e apontou o dedo indicador para baixo. Ela não me mostrava o soalho ou o quanto ele precisava de uma limpeza emergencial. O que ela quis dizer, e foi exatamente isso que me assombrou, era que ela morava ali, na minha casa.

Permaneci atônito por um tempo, até lembrar de minha voz, presa na garganta.

'Onde está sua mãe?', perguntei, sentindo calafrios correrem a espinha.

'Perto da porta', ela respondeu muito baixo.

'E... sssss-seu pai?', eu já estava de pé, à passos de distância dela, a vela tremeluzindo nas mãos.

'Atrás de você', ela disse.

Fez-se silêncio.

Yamiel Delacour
Enviado por Yamiel Delacour em 15/08/2010
Reeditado em 15/08/2010
Código do texto: T2438706
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