ESPINHO NA CARNE
Remexendo o baú de suas lembranças, Bethina, melancolicamente recorda- se de certa vez que acordara muito contente, adorava fins de semana, principalmente o sábado. O domingo ela achava um dia triste. Lembra que ao abrir a janela do seu quarto sentia o cheiro gostoso de flores entrar carinhosamente pelas suas narinas. Estavam no mês de maio do ano de 1977, dia 14, seu aniversário de 16 anos. Seus pais são de família abastada de rica região de Minas Gerais, sua mãe chama-se Antonia, e seu pai Leopoldo, casaram- se no ano de 1959, no mesmo mês que a filha nasceu dois anos depois. Filha única,sua mãe sofreu um grave problema durante o seu parto e foi obrigada a ser histerectomizada. Mulher delicada estudou em colégio interno, cuida com desvelo da casa e tem um amor desmedido por Bethina e pelo marido. Ela gosta muito de ler e passou esse costume para a filha e acabou virando mania. Leopoldo é produtor rural, passa a maior parte do tempo cuidando de plantações e animais, administra sozinho todas as propriedades rurais que são herança de família. Ele compra e vende gado, planta café, e é muito feliz no que faz. São uma família pequena, mas feliz. Ás vezes Bethina desejava ter outros irmãos, e sentia que seu pai compartilhava desse desejo, em várias ocasiões o ouviu dizer para sua mãe que seria ótimo ter outro homem na família para ajuda- lo na administração.
Sábado é sinônimo de festas, pelo menos na cidade onde moram, o Clube mais movimentado do lugar fica lotado nesse dia.
Foi lá que a linda jovem começou namorar Otávio, numa noite de luar com direito a estrela cadente.
Ficaram noivos e casaram- se em 1979, na Igreja linda e tradicional, uma cerimônia muito comentada.
Otávio passara no concurso do banco e posteriormente moraram em algumas cidades porque ele passou a exercer o cargo de gerente e precisava ser transferido.
Numa noite fria de junho de 1981 nasceu seu filho, seu amor, sua vida, Pedro, o bebê mais lindo que ela jamais vira igual, e também a criança mais solitária que conhecera. Muito inteligente e obediente, e também muito amoroso. Cresceu assim: falando pouco, estudando muito, sem dar qualquer preocupação aos pais. Otavio o amava e fazia tudo para que o acompanhasse por onde fosse, mas o que Pedro gostava era de ficar só, escrevendo, lendo ou desenhando. O avô nutria por ele verdadeira adoração e sofria quando partiam na época das férias. No mês de dezembro de 1984, perto do natal Bethina ganha um belo presente sua filha Mariana, o oposto de Pedro. Alegre, barulhenta, extrovertida. Estava sempre alegrando a todos em casa. A avó a cobria de mimos, existia mais intimidade entre as duas, do que entre Bethina e elas. Seus filhos cresceram, seu marido conseguiu uma promoção e voltou a gerenciar o banco em sua cidade natal. Pedro faz faculdade de Direito e estágio na promotoria, raramente se entretem com algum colega e não tem amigos, se tornara bastante depressivo, faziam tudo para agrada- lo. Completara 23 anos de idade e não namorava, não tinha vontade de sair para se divertir, estava sempre em casa estudando ou ouvindo músicas de rock. Leopoldo estava idoso e depositava toda a sua esperança naquele neto. Mariana tem um jeito de menina, nem parece que está com 20 anos, há nela um quê de rebeldia, ciumenta do irmão, porque pensa que as atenções são todas voltadas para ele, passara no vestibular para agronomia, faz tudo para agradar os avós maternos. Em 2004 compraram uma linda casa no condomínio de luxo dos seus sonhos, lugar tranqüilo e seguro, rodeados de pessoas amigas, não poderia existir ambiente melhor para se viver. Os quartos ficavam no andar superior, e inevitavelmente Bethina passava pelas suítes dos seus filhos para chegar até a escada que dava acesso para as salas e a cozinha. Era muito gostoso sentir a presença deles todos os dias, ela não se imaginava sem eles, evitava até mesmo os pensamentos de que um dia eles morariam em outra cidade ou estado ou país. Mariana frequentava uma universidade em outro município mais vai e volta todos os dias e Pedro estava sempre em casa. Seu filho estava se arrumando para sair, teria uma audiência pela manhã, ela parou no quarto dele, deu um beijo e um abraço e falou:
- Meu filho, eu te amo tanto que chega doer. Suspirou e esperou uma resposta que não veio.
Então disse a ele que traria um copo de suco, pois ele mal tomara café da manhã. Ele lhe agradeceu ela então desceu para buscar na cozinha.
Quando retornava, pisando o primeiro degrau da escada com o copo na mão, ouviu um barulho e na hora não definiu que tipo de som era aquele. Ela continuou subindo as escadas e comentou:
-Filho, você ouviu o barulho? O que será que pode ser? Pedro?
Quando adentrou no quarto, ela soltou o copo que se espatifou no chão. Seu filho estava caído na cama, inerte. Ela vê o sangue no lençol, e do lado de Pedro o revolver que parecia ser da coleção de Otávio. Ela se desesperou, gritou, urrou, e sem poder fazer nada, discou 192 pedindo socorro. Perdeu a noção de quanto tempo esperou, pareceu- lhe uma eternidade e quando o resgate chegou não havia mais nada a fazer. Seu filho morreu.
Otavio chegou desesperado, quando já haviam levado o menino. Ele abraça a mulher e diz entre soluços que a culpa era dele porque gostava de colecionar armas, todas novas e intactas, aos seus olhos eram itens de uma coleção, e agora ele odiava cada uma delas. Mariana,fez tudo para os consolar. O pai de Bethina nunca mais foi o mesmo, Pedro era o homem que ele desejara como filho. Fazia três meses que Pedro partira. A casa ficou vazia, nenhum filho deveria morrer antes dos pais. Bethina estava na sala lendo um romance tentando afastar de seu pensamento aquele fatídico dia, quando ouve o mesmo barulho se repetindo. Sentiu meu sangue gelar nas veias. O que era aquilo, meu Deus? Ela sobe as escadas correndo, a porta do quarto de Pedro estava entreaberta, e ela vê a mesma cena dantesca diante dos seus olhos. Caído na cama, sangrando com arma ao lado, estava Otávio. Ela ligou para a ambulância que outra vez chegou tarde demais. Perdeu seu chão, os dois homens que mais amou na vida estavam mortos. Perdera a vontade de viver, de comer, de dormir, virou um zumbi, uma morta viva ambulante, sem desejos, sem coragem . Mariana se desdobrava, mas de nada adiantava, seus carinhos, seus agrados apenas a deixavam mais depressiva. O tempo passava e Bethina continuava estagnada, parada no tempo, vivendo de lembranças. Mariana desistiu de amar a mãe e também de mendigar seu amor. Numa tarde mansa de outono, com o jardim da linda residência coberto de folhas douradas ela se foi. Antes de sair levando seus pertences, sem tocar ou dizer adeus para a mãe ela lhe disse:
- Você nunca me amou. Você ama pessoas que abandonaram você, que a deixaram espontaneamente, sem dar um motivo ou explicação. Você me rejeitou, me abandonou, me baniu da sua vida. Você agora não tem mais filha, e eu nunca tive uma mãe. Mariana se foi, sem olhar para trás. Um raio de sol pálido entrava pela janela.
Bethina que outrora era pessoa crente e altruísta tornou- se cética. Não admite a existência de céu ou inferno, porque se ela aceita que existem ela condena as pessoas que mais amou na sua vida, porque aprendera na sua religião que suicídio não tem perdão.
Ela também não acredita no perdão, portanto não se perdoa não ter amado o bastante os filhos e o marido, e em sua mente obtusa imagina que mesmo sem dizer palavras seu pai não a perdoa culpando-a pela retirada do útero da mãe e pela morte prematura do neto. Deduz que sua filha não a perdoa, porque embora tenha nascido sente- se abortada e o peso dessa culpa é a que mais lhe pesa. Não acredita no amor, porque amar é doar- se e ninguém nunca se doa completamente. A exemplo daquele que combateu o bom combate, tem um espinho na carne, que a emudece e a mantém presa na solidão, mas queria muito ter a coragem de sair aos brados pelo mundo expondo os fatos que desnortearam sua vida, para que sirva não de lição mas de alerta.
Hoje é sábado, e da janela do seu quarto Bethina vê o mundo lá fora que para ela perdeu o encantamento.Dali ouve a algazarra das crianças brincando no parquinho do condomínio. Num passado remoto seria seu dia preferido da semana, mas hoje é o dia que mais lhe angustia. Refém da solidão e com a alma corroída pelo remorso, sente seu coração bater descompassado, desde que soube que tornou-se avó, todo final de semana espera ansiosamente ouvir o telefone tocar, consumindo-se de aflição aguarda ouvir a voz da filha lhe dizendo que esperam por ela, porque sem a anuencia de Mariana, Bethina está proibida de ter contato com os próprios netos, ela deseja muito vê- los, senti- los, mas precisa da autorização da mãe deles para que possam conviver ao menos algumas horas em sua companhia.