Jardim Filosofico - parte 2
A pele de quem estava agora a sua frente era branca ao ponto de quase enxergar as pequenas veias sob ela. O cabelo negro, extremamente longo era preso em uma trança linearmente bem feita que pendia para o ombro direito propositalmente. Fios esvoaçantes de uma franja bem cortada delineavam o rosto delicado e margeavam uma sobrancelha arqueada e bem desenhada. Os lábios finos permaneciam em um sorriso de Monalisa abaixo do nariz empinado e imperial.
A memória de Nisa se ativou como que reforçada pelo aroma doce que estava no ar. Ela pousa as mãos fechadas nos próprios joelhos e inclina o rosto para a pessoa alta vestida impecavelmente que estava a sua frente
- Boa noite Duolon. Meu caçador de seres das trevas favorito.– os lábios dela esboçaram um amistoso sorriso.
O homem a sua frente era um ser que assumia a forma humana de semblante sexualmente indefinível. Trajava um longo sobretudo entrecortado godê, de cor escura que refletia uma luminosidade arroxeada quando tocado por alguma luz. Dragões dourados enfeitavam as laterais da roupa. Se não fosse o seu timbre vocal de um barítono, qualquer um diria que era uma mulher a frente de Nisa.
- Boa noite pequena menina... – a voz controlada, séria e forte ricocheteou no hall e ecoou pelas profundezas da escuridão da casa atrás dela.
- É assim que você surge para a pessoa que não o vê há anos? Aparece igual fantasma? - a garota fala em tom divertido
O som de uma risada baixa sai da boca dele.
- Senti sua presença , vim aqui instintivamente seguindo seu rasto. Sua energia pode ser seguida em muitas dimensões, sabia?
- Quer dizer que sou farejavel? – pisca sorrindo ao retomar o contato visual com aquele ser andrógeno
- Não... você é um reflexo do que muitos não serão em mil existências.
- Espero não quebrar o espelho de ninguém! Ainda mais os seus que são tão maravilhosos e grandes! – a garota já havia visitado a casa dele em uma ocasião séria, havia tocado violoncello e jantado juntos.
Inesperadamente o homem de semblante duro, embarca na brincadeira de palavras e modifica o tom de voz:
- Provavelmente o meu não há de quebrar, embora seja estranho imaginar seu reflexo no meu espelho, se isso ocorresse eu não conseguiria sequer sair de casa e ficaria admirando.
- Não tenho o dom de ser algo que possa ser emoldurado, sou mal educada demais com muitas coisas pra ficar parada sendo admirada.
As palavras soaram um tanto amargas e ele logo percebeu batendo no ombro dela delicadamente com uma das mãos de unhas finas e longas.
Ele dobra os joelhos se abaixando graciosamente para se igualar a altura da garota sentada na soleira.
– Este é uma conversa que não tenho com muitos seres. – ele arruma a franja da garota com as costas das mãos e vira o rosto para a esquerda - Como você esta?
Nisa pousa o olhar no gesto dele, por algum motivo sente o rosto queimar levemente. Ela respira profundamente como quem procura uma resposta no mais fundo de sua mente, solta o ar pela boca fazendo um bico sem olhar na direção de seu interlocutor. A falta de palavras diz muito a ele.
O olhar dela se desvia por instinto e pousa na grama que havia sido molhada ha pouco.
Após alguns segundos, em um gesto dúbio ela levanta uma das sobrancelhas indagando:
- Você esta bem? Faz muito tempo que não nos vemos.. achei que tivesse.... bem...– as palavras eram difíceis de escolher – Achei que tivesse ido embora para caçadas de seres sobrenaturais.
O semblante calmo e introspectivo dele era inabalável.
- Não tinha ido, jamais irei assim sem avisar, apenas precisei de tempo para resolver questões de suma importância, infelizmente não consegui encontrá-la mais cedo para avisar. Você não é algo assim tão fácil de encontrar quando resolve desaparecer, não? – um sorriso de meio lábio persistia em seu rosto.
Seria cinismo? Sarcasmo? Ou apenas uma tentativa aterrorizante de ser amável?
Um calafrio fino percorria a espinha da ruiva cada vez que o frio olhar negro daquele assassino de seres sobrenaturais cruzava com o dela.
- Duolon, você é telepata também?
- Na verdade, não. - uma sobrancelha dele se arqueou inquisidoramente.- Por que a pergunta?
De rabo de olho ela vê o diário depositado ao chão.
- Um dia desses me perguntaram de você .... Senti saudades de falar contigo. E assim, como se fosse avisado, você me surge literalmente das cinzas, em pleno jardim. – aponta o local escuro de onde ele surgiu e sacode a cabeça como quem quer espantar pensamentos.
Como quem pensa rapidamente as palavras saem fluidas de sua boca:
- Ao menos não demorei tanto para relembrá-la da sensação diferente que minha presença lhe causa. – um segundo de pausa e ele da um toque na face de Nisa com uma das unhas - Talvez não deva chamar isso de telepatia, prefiro chamar de ligação especial.
Ela encosta a cabeça novamente no batente de madeira lustroso, como se estivesse cansada.
- Fico lisonjeada em saber que ainda existe uma ligação especial entre você e eu. Estou feliz de verdade em ter alguém aqui para conversar. – fecha os olhos por uns segundos e molha os lábios com a ponta da língua.
- Isso é ótimo, mas você parece afetada por algo incômodo... – deixando toda a pompa que sua presença causava, ele se senta ao lado dela, recostando-a em seu peito vagarosamente.
Sem pensar muito as palavras saíram da boca de Nisa em forma de suspiro:
- Sinto cansaço mental, físico e espiritual.
Como quem ouve o silencio de cada palavra não dita e analisa cada pensamento, Duolon fala em tom baixo com os lábios próximos aos cabelos vermelhos da garota:
- Se algo de negativo em sua alma a incomoda, posso absorver.
Como quem espera uma reação de espanto ele para por um breve período de tempo antes de retomar a palavra:
– Bem, afinal meu poder vem dessa energia negativa, seria bom para ti, tanto quanto para o mim. Mas até então, é uma decisão sua estritamente.
(continua...)