O Duelo (Entre Vida e Morte)

Fim de tarde principia-se a noite, as estrelas salpicando o infinito tapete azul, um olhar perdido, parado no tempo, perambula no passado os pensamentos do solitário Afrânio, jovem, viúvo e único herdeiro de uma das maiores fortunas do interior do Brasil. Voltado para seus devaneios, sorri e chora ao relembrar o dia em que conhecera Alice, sua finada esposa.

Era manhã de primavera, flores cobriam o jardim da praça defronte a igrejinha, até parecia que os anjos tocavam suas liras numa belíssima trilha sonora em dueto, com os sinos da igreja. A mesma que dali a pouco menos de seis viradas de mês e dois velórios, do pai e da mãe, o enlace matrimonial se sucederia.

“Ah! Que alegria aquele dia” pensava ele periodizando as doces lembranças, daqueles acontecimentos, não conseguindo divisar o mais importante momento. Naquela manhã de inicio de estação, como sempre fazia nos corriqueiros dias de domingo, acompanhava a mãe que não faltava às missas dominicais e foi entre o final do credo e o começo do pai nosso, onde se desvendariam os mistérios do rosário.

Ele a viu, majestosa, bela e formosa, confiando-lhe um sorriso, na meiguice de um olhar e baixando as vistas toda ruborizada, tentando esconder o desespero do seu coração, que batia igual às badaladas do sino da capela, compassadas, altas e com a força da paixão. Para ele o mundo tingiu-se de anil, contrastando com os belos olhos azuis da moça. O tempo parou naquela troca de olhar, com as bênçãos de Afrodite a Deusa do amor. Suas almas atenderam o desejo de amar.

Sem entender muito de deuses, mais fiéis aos dogmáticos santos católicos, eles disseram sim, jurando amor até que as mortes os separassem. Viveram felizes, dormia atrelado um no outro, feito uma só carne, uma única alma. Dividindo a vida maviosa, que consolidou com o anuncio do primeiro varão, foram prometidos por Afrânio: sacrifícios de sete leitões, uma novilha, cinco galinhas e farofa para tirar gosto, a fim de ser grandiosa a comemoração, mandaram trazer dos melhores alambiques da região, aguardente suficiente pra encher a lagoa dos patos o maior de sua estância.

Só parentes próximos foram chamados, sogro, sogra e alguns cunhados também apareceram no dia em que se daria o parto, Afrânio eufórico andava de um lado para o outro numa inquietação sem fim. Três parteiras debruçavam com zelo e destrezas, para tão esperado nascimento. Corre, corre água fervente, pano branco, “força, força! uma gritava,” “você consegue, outra dizia,” a mais experiente falou em voz alta: “esse menino ta é virado.”

As horas foram avançando, a madrugada engolindo o tempo, aumentando mais ainda o desespero de todos, e nada de nascimento, berros, suores e pranto, a alegria de outrora se transformou em pânico, na sala o clima já não era de festa e sim de velório o recinto tornou-se num salão de oratória. Onde poucos convidados se agarravam, cada um na sua crença, Nossa Senhora do Bom Parto teve quinze intercessões. Depois de três terços tirados, várias promessa a cumprir junto com o sol do novo dia ouve-se o choro de criança ecoar por todos os cantos da casa grande.

Todos gritaram viva a vida, sete vezes e brindaram à felicidade de Afrânio, Alice e do pequeno recém chegado à família, deu-se então a festança, e o que se faz com fé se desmancha com os pés já diziam os antigos. As parteiras correram para chamar o pai a uma nova e cruel realidade. Devido aos esforços para dar a luz, uma forte hemorragia levou a vida da bela, jovem e agora pálida Alice, golpeando impiedosamente a alma de Afrânio estrangulando sua alegria.

Correu a boca miúda no casarão, o luto trazido pelo anjo da morte, desolado, o viúvo, atirou toda sua revolta aos deuses e santos culpando-os pela morte da querida esposa. Uma das parteiras veio com o menino chorando nos braços tentando chamar-lhe a atenção dos fatos. “A vida dela continua nas mãos do senhor, através do filho de vocês,” disse consolando-o.

Num ato de fúria, revolto e amargo, naquela hora a insanidade assumiu o controle da situação; feito um gavião Afrânio voou nos braços dela, pegando o menino e num gesto de crueldade, arremessou o indefeso contra a parede, cegado pelo ódio viu aterrissar sem vida, no chão do quarto, seu primogênito. Alimentando mais uma vez o anjo negro da morte com mais uma alma.

“Demônio, sua alma vai para o inferno” ao ouvirem o grito, todos os olhares seguiram uma única direção, a suíte do casal. Que se abril bruscamente surgindo à figura funesta de Afrânio, despachando todos os parentes e amigos exigindo solidão, providenciando junto aos empregados o sepultamento de Alice e do pequeno, exigiu que não fossem velados, que fossem enterrados de imediato.

A mulher ao lado dos pais, a criança longe do túmulo da mãe, dado as ordens foi sentar-se na rede da varanda, onde muitas das noites contemplavam a paisagem com sua finada mulher. O casarão ficou sem nenhum convidado todos seguiram seu destino, após dois quarto e meio de horas, o capataz veio avisar que estava feito, os defuntos jaziam em paz, “peguem as comidas, as bebidas, despachem para os demônios da mata, dê para os porcos mais sumam com tudo daqui.” Falou com mágoa e rancor, levantando em seguida indo para seu escritório trancando-se lá.

Dentro do cômodo, jogou-se na cadeira, assinou alguns papeis entre pranto e dor, reviveu as cenas dantescas, que acabara de passar. Andou até o cofre combinou os números da senha, abriu, pegou um vidrinho com líquido cinza banzé, com cheiro de morte, saiu da cabine indo direto a cozinha, meou um copo de água completando com veneno. O mundo girou sob seus pés, enquanto ele virou sobre os calcanhares, voltando a sentar na varanda com o copo na mão.

Acomodado na espreguiçadeira, Afrânio, começa mais um dilema, beber ou não? Viver na solidão, com estigmas nas mãos, sendo o carrasco do filho. Ou morrer? Caindo no purgatório, quem sabe indo direto para os quintos dos infernos. Até quitar os debito com os seus. Por várias vezes, fechou e abriu os olhos, fixados no copo, que por conta da aproximação do breu noturno, somente sentia o utensílio em tuas mãos.

Acompanhando a escuridão os espectros malditos, vieram atormentá-lo a alma enfraquecida, os demônios enfeitaram seus pensamentos com imagens tenebrosas, com o que lhe poderia acontecer na prisão, incentivando-o ingerir o licor macabro. Duas ou três vezes chegou levá-lo a boca, desistindo da consumação do coquetel maligno.

“Beba miserável” gritava a criatura infernal, gesticulando e dançando a sua volta. “Veja a desgraça que sua vida se tornou” repetia a besta negra, “pai, mãe, esposa e um infanticídio contra o filho inocente pela suas próprias mãos”

“Beba maldito!” “Do que vale uma vida de luxúria e riqueza” com a dor e culpa “na consciência?” Era outro ser demoníaco em investida aos seus pensamentos, mostrando todas as dores de sua alma.

As doces lembranças de outrora foram uma a uma sendo limadas de sua mente, deixando somente a negritude malévola dos anjos da morte, sequiosas por sua impura alma. Cada entidade mais horripilante que a outra, seres animalizados, rodopiavam a sua volta numa frenética dança mortuária. Imitando-o no arremesso do bebê, simulando a virado do copo na boca.

Porém como as trevas são apenas a ausência de luz, com o pontilhado das estrelas no céu e o brilho do luar, outros seres do além começaram a chegar. Era o socorro vindo do alto, a favor daquele pobre sofredor. A providência divina tarda mais não falha, os mensageiros de Deus na forma de anjos iluminados, começaram a tentativa de demovê-lo da idéia do suicídio.

As vozes se confundiam na cabeça de Afrânio, anjos e demônios, travando uma batalha em seu subconsciente. “Ouça Afrânio!” Não se mate na lei de Deus. O réu, sempre tem “nova chance.” Entre a demência e a sanidade, há um vácuo onde a mente humana fica vagando, sem saber o que é real ou fantasia, e os seguidores do cordeiro projetavam na sua tela mental os momentos bons de sua vida, as alegrias, também as possíveis felicidades. Que com sua fortuna poderia alcançar, ajudando seus semelhantes. Construir um novo lar, com uma nova esposa e encher a casa de filhos.

A batalha foi árdua entre os seres do além, como que num jogo de xadrez; estratégias foram armadas, o bem e o mal, o lado branco e o lado negro no tabuleiro da vida, a alma de Afrânio fora disputada peça a peça. Foi uma noite inteira de luta, mais novamente com o nascer de outro dia veio o xeque-mate! E a última imagem gravada na retina dos olhos de Afrânio é a chegada de uma moça, que por de trás da aparência suja e maltrapilha de mendiga era linda feito uma flor com um casal gêmeo nos braços suplicando-lhe amparo.

E seu espírito sendo levado pelo seres do além.

valdison compositor
Enviado por valdison compositor em 03/08/2010
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