• MEDO DE ESCURO •
Capítulo Antepenúltimo
Apesar de meus valentes esforços para enxergar escuridão adentro usando como única fonte de luz a chama fraca de meia vela a derreter por sobre um antigo castiçal poirento que eu carregava numa das mãos, eu podia ouví-la lamuriando-se em um dos cantos da sala.
Casas antigas tinham desses problemas, eu pensava comigo usando a razão companheira como consolo e rota de fuga dos medos que assolavam-me, naquele momento, até os ossos da espinha. De hora para outra desfazia-se a luz. Coisa de ajustar os dejuntores carcomidos e pronto, a luz estava lá de novo, clareando os cômodos, diluindo as sombras horrendas que os móveis projetavam nas paredes. Mas o fato era que em pouco mais de um mês residindo ali, nunca me havia ocorrido tal inconveniência, e, como todo cidadão que carrega enterrado à alma seus pecados sujos, acovardado de se confessar, mais ainda assim temendo o inferno e o demônio como se teme a própria morte, fui pego desprevinido pelo apagão repentino e depois de gritar, corri a trancar-me no banheiro, me escondendo dentro da banheira vazia por minutos a fio.
Passado o susto inicial que antecede a volta completa da lucidez e, consequentemente, a sensação de estar sendo, além de um grande maricas, um total idiota, levantei tropegando e destranquei a porta, passando para o corredor do segundo andar de minha nova casa. Enquanto ria de minha atuação patética e vasculhava gavetas e armários tateando a mobília a esmo, encontrei o tal castiçal com a meia vela e o acendi com o isqueiro que trazia no bolso de imediato, porque desafiar o escuro, eu tinha que admitir, para minha humilhação pessoal, nunca me fora discutível. Passei, então, o castiçal para a mão esquerda e alisando as paredes caminhei em direção as escadas, tendo em mente as palavras do antigo senhorio: 'Os dejuntores e todo a fiação principal fica numa caixa junto da parede no porão, perto do velho aquecedor à carvão. É só dá um tapinha e pronto, o senhor terá luz de novo'.
O escuro é coisa engraçada, considero particularmente. Basta enegrecer tudo pra mente da gente começar a trabalhar. No meu caso, contra mim, é claro. A visão dobra de intensidade, a audição e o olfato ficam mais apurados, mas quem ganha essa competição é a imaginação. Numa batalha entre visão e imaginação, minha imaginação ganha a luta com facilidade e condecorações pelo excelente trabalho. Imagino mais do que realmente vejo, e somando isso ao meu medo fóbico de escuro, resulto num grande saco de bosta. Onde já se viu um homem de trinta e cinco anos, divorciado há dois, com uma carreira brilhante no ramo da contabilidade e mulheres a beijar-lhe o chão que pisa e suspirar pela beleza singular que tem temer a escuridão? Inadmissível, você diria. E eu também o digo. Mas vergonhosamente, eu temia o escuro, e como me odiava por isso. COMO ME ODIAVA!
Abandonei meus devaneios quando começei a descer as escadas. Faltava poucos degraus para alcançar o patamar, na sala de visitas, e a negritude só fazia adensar, com a transição da noite para o início da madrugada.
'É o horário preferido deles', um pensamento me veio à mente, e na hora mais inoportuna, tenho que ressaltar. Lembrei do comentário vago e deveras intrigante do antigo senhorio na tarde em que eu havia mudado.
'Desculpe, Seu Pedro, de quem o senhor está falando?', recordei de ter perguntado sem interesse real na resposta.
'A madrugada... É a hora deles, doutor. Ouça o conselho de um velho, doutor, não saia da cama de madrugada. Fique lá até acabar', disse Seu Pedro incoerentemente, antes de seguir seu rumo, fosse pra onde fosse.
Quando pisei no soalho da sala e ouvi algo mais que o ranger das tábuas velhas naquele cômodo, eu soube imediatamente sobre o que falava Seu Pedro. E era tão nítido quanto o som da minha própria respiração descompassada. Correu de um canto ao outro da sala pequena, ainda lamentando num chorinho irritante.
'Q-QUEM ESTÁ AÍ!!?', eu bradei mais alto do que desejava, empunhando a vela na altura do rosto, o corpo todo tremendo, os dentes tilintando incessantemente.
Continua.