O SOBRADO
Adalberto está cansado da viagem, ele e a família param para lanchar na Padaria na entrada da cidade. É prazeroso ver o nascer do sol na sua terra natal. Embora longo, o percurso foi bem confortável, o automóvel da família estava muito bem equipado, ar condicionado para o calor, e aquecedor para o frio. A mulher e a filhinha de quatro anos, que esfregava os olhinhos recém saídos de um belo sono, festejavam felizes a chegada ao destino. Cidade nova, vida nova, esse agora era o lema da família. O homem de 35 anos, famoso advogado previdenciário, era filho de advogados, e vivera naquele pedaço do sudeste boa parte da infância e mudou- se dali às vésperas de seu oitavo aniversário, porque o pai passara no concurso para Procurador e fora chamado para Trabalhar na capital. O sonho da família inicialmente seria voltar para a provinciana cidade no interior mineiro, mas o tempo passou acostumaram- se ao lugar movimentado e deixaram de lado a idéia. Adalberto terminara a faculdade muito jovem e antes da formatura já se empenhava no Escritório da mãe, primeiro como estagiário depois como sócio. Os pais se aposentaram e foram morar num bairro residencial tranquilo. Um dia estando sozinho no escritório percebeu quão atribulada era a vida na cidade grande, pois quase não tinha tempo para a sua família. Tomou a firme decisão de voltar às suas origens, lembrou- se do velho ditado: “O BOM FILHO À CASA TORNA!”, e agora estava pisando o solo onde nascera. Depois de tomar o delicioso cafezinho mineiro com pão de queijo, regado a elogios pela esposa e a filhinha, se dirigem eufóricos para o endereço da nova residência da família. Adalberto fechara o negocio do imóvel com uma conceituada imobiliária da cidade e toda a transação fora “on line” e o compromisso de compra e venda fora celebrado no vai e vem do correio, deixando apenas o Registro do Imóvel pendente. Encontrara as fotos do imóvel no site da empresa e foi amor à primeira vista, ele e a esposa decidiram juntos que aquele seria seu lar. Ambos se apaixonaram pelo jardinzinho da frente da casa, e pela melancolia que assombreava o lindo sobrado. Era nítido o tom de mistério que envolvia a entrada da casa, talvez a ansiedade para fugir da agitação da metrópole os reportassem para essa sensação de isolamento. Finalmente, depois de alguns minutos chegam ao sonhado lugar. Estão felizes com a chave na mão, mas parecia que na fotografia a casa era menos lúgubre e mais convidativa, agora olhando-a de frente, ambos sentiram um leve mal estar. Mas talvez fosse apenas cansaço. Teriam que esperar por duas horas a chegada do caminhão da transportadora com sua mudança, enquanto isso foram conhecendo os cômodos da casa, as salas, os quartos, a área de serviço e o quintal. A menininha ficou maluca quando viu a quantidade de árvores frutíferas que abundavam o imenso terreno no fundo da casa, havia até um velho balanço feito de corda e de madeira, pendurado solitário no galho de uma mangueira. Era uma construção antiga, mas planejavam aos poucos reforma- la para deixá-la a seu gosto. O casal não compreendeu porque o quarto que será o deles possuía uma temperatura tão baixa, como se um vento canalizado passasse apenas por ele, interessante, pois dispensava o uso de ar condicionado. Adalberto deixou a esposa e a filha aguardando em casa, e foi para o centro da cidade conhecer o prédio onde iria trabalhar, por enquanto fizera sociedade com alguns colegas e depois de angariar clientela teria seu próprio escritório de advocacia. Sabia que seria um árduo trabalho, mas estava feliz, passaria mais tempo com a família e a mudança de hábitos faria bem para a saúde, pois naquela pacata cidade não havia poluição ambiental. Riu sozinho, feliz, de suas conclusões. Imaginava como seria ótimo também para a esposa que decidira não exercer a profissão de psicóloga para de dedicar à sua carreira de escritora que era realmente o que a fazia sentir- se realizada. A filhinha estudará em uma ótima escola, enfim fizeram a escolha certa. Além do mais não havia como voltar atrás. O caminhão da mudança atrasou- se quase uma hora. Mas a expectativa de começar vida nova não deixou que isso fosse um estorvo. O bairro onde estavam morando era muito antigo, bem como as casas e seus moradores, mas o estranho é que nenhum vizinho veio dar às boas vindas ao jovem casal, o que na cabeça de ambos era uma metáfora de uma cidade pequena. A primeira noite no sobrado transcorreu quase tranqüila, o novo morador embora cansado deitou-se por ultimo, ficara cuidando da agenda dos prazos recursais, o acompanhamento dos processos não poderia ser feito pela internet que ainda não estava instalada. O casal dormia profundamente quando foram acordados pelos gritos da filha que dormia no quarto ao lado. A mãe fora a primeira a sair correndo, tropeçando nos móveis que ainda não estavam em seus devidos lugares, tateando o pai encontra o interruptor da lâmpada que clareia os aposentos e parte do corredor. Quando entram no quarto da menina, ficam estáticos olhando para a criança dormindo profundamente na cama sem mesmo desfazer o edredom que a cobria. Não havia sido um sonho pois foram os gritos que os despertaram, pois ambos tinham certeza absoluta de te- los ouvido eram berros de criança presa em algum pesadelo. Depois do ocorrido não conseguiram voltar a dormir, desceram para a cozinha para tomar um café. O dia amanheceu cinzento, a cidade ventava muito o que acentuava o frio daquele mês de junho. A mulher abriu a porta da sala disposta a por em prática seus dotes de jardineira, havia obtido em alguns sites várias sugestões para embelezá-lo, mas mudou de idéia, pois a menininha queria brincar no fundo do quintal. A área de serviço era bem antiga, os tanques e o piso seriam trocados em breve, ela não via a hora de transformar a casa para dar mais aconchego. Era uma casa muito fria. A criança se entusiasma brincando no antigo balanço, ri feliz enquanto a mãe colhe as amoras que carregam o pé. A mãe estranha o comportamento da filha, a criança não parece brincar sozinha, o seu coração se aperta, deduz que é por falta de atenção que a menininha tem amigos imaginários. Com a mão cheia de frutas, ela pára o balanço e pergunta:
- Com quem você brincava amorzinho?
A resposta inocente a deixa um pouco confusa:
- Eu brinco com a menina que mora nessa casa.
- Mas a menina que mora aqui é você, florzinha.
- Não mamãe, tem a outra amiguinha que mora no meu quarto.
Um arrepio percorre a sua espinha dorsal, sempre fora cética nessas coisas de almas do outro mundo, descendia de família católica nem em Reencarnação acredita que dirá em espíritos que aparecem e falam com os vivos. Bobagem, ela é uma psicóloga e sabe que isso faz parte da infância e pode ser também carência por falta de outras crianças para brincar. As duas ficaram um bom tempo entre as árvores do pomar, elas e a amiguinha imaginária da filha, estava se acostumando com isso, mas às vezes era estranho ver a filha brigar com alguém invisível por causa de um brinquedo ou de uma fruta. O resto do dia transcorreu tranquilamente. Seu primeiro dia como dona de casa, estava sendo gratificante. Adalberto trouxe para casa processos correndo prazo substabelecido para ele por outro colega, ajuda mútua é o caminho do sucesso de um bom escritório. Logo após o jantar, os três reunidos na sala de TV, a menorzinha brincando sonolenta com alguns bonecos de pelúcia, desses que se pega nas maquinas de shopping, a mulher escrevendo sem prestar atenção na novela que passa, e o advogado lendo um manual de direito previdenciário, quando ouvem no andar de cima barulho de algo pesado caindo no chão. Não compreendem e vão ver se algo estava espatifado em um dos quartos. Mas tudo está no lugar. Quando voltam para a sala a menina está conversando com alguém. Ela diz que a outra criança quer ficar junto com os pais.
Adalberto e a mulher pela primeira vez sentem que estão convivendo com algo sobrenatural, porque ao olhar para a filha não vêem apenas a sombra dela que se projeta na parede, da mesma altura da menina bem junto dela, vêem algo disforme que desaparece logo em seguida. Nessa noite decidem que a filhinha dormirá no mesmo quarto que eles, até descobrirem o que está acontecendo permanecerão juntos.
O sono de ambos foi bem leve, às vezes os sonhos eram entrecortados por estranhos barulhos.
A mulher decide usar seu dom de pesquisar o comportamento das pessoas para especular quem foram os antigos moradores. Depois de muito conversar com as vizinhas que pela manhã tinham o costume de ficar nas portas das casas fofocando, ela chegara à conclusão de que realmente negócios são negócios. De tanto ligar na Imobiliária, sentia- se até amiga dos corretores, mas nenhum deles deu a informação que os confrontantes do imóvel lhe deram.
Ligou para o marido e pediu que ele não se atrasasse porque ela tinha novidades sobre o casarão e os antigos moradores. Ele veio correndo não só pela curiosidade, mas porque seu faro de detetive que usava lendo os livros de suspense se aflorara. As pessoas da vizinhança disseram que o sobrado estava fechado há mais de 15 anos. Que pertencia a um casal que tinha somente uma filha eram pessoas comuns que pouco se comunicavam com os vizinhos. O homem trabalhava como carcereiro no presídio da cidade vizinha ou como detetive da policia civil, não sabiam informar com certeza, e a mulher ficava em casa com a filha. Foram morar nesse bairro depois que ele recebeu uma herança que possibilitou que ele comprasse o imóvel naquele bairro nobre, pelo menos essa é a história que se contava há anos. Tudo transcorria tranquilamente, até que um dia desapareceram misteriosamente do lugar. Quando os vizinhos deram pela falta, notaram que um estranho costumava ser visto no jardim da frente, mas isso raramente, até que um dia ninguém mais foi visto. A casa ficou assim fechada por cinco anos, muitas pessoas diziam ouvir choro de criança, gemidos e gritos ora de homem, ora de mulher, mas tudo isso foi sendo encarado como uma lenda porque ninguém nunca viu a mudança sair daquela casa. Depois do tempo que ficou fechada, um dia um parente distante do carcereiro ou talvez detetive, apareceu e levou a mobília embora, e deixou a cargo da imobiliária a venda. Ficou uns tempos para alugar, mas as pessoas não ficavam nem um mês na casa e partiam. Para vender ficou outro bom tempo até que o corajoso advogado de fora comprou, era assim que Adalberto era chamado na vizinhança. Depois de ouvir o relato, ele usando o bom senso olha bem para a mulher e conclui:
- Gostamos da casa vamos continuar morando aqui e prestando atenção nos fatos. Talvez tenhamos sido contaminados por essas historias típicas de cidade provinciana, que corre a boca pequena. Vou tomar um banho, enquanto você prepara algo para... Não termina a frase e mudando de idéia, abraça afetuosamente a esposa e diz:
Vamos jantar fora, arejar as idéias, será bom até para a nossa “bebezinha” deixar um pouco de lado essa amiga imaginária que ela arranjou.
O passeio foi ótimo, a menininha dormira no caminho, quando chegam a casa, a mãe a toma delicadamente no colo para não acordá- la, enquanto o pai vai à frente abrir a porta. Recordam-se que haviam deixado a luz da sala ligada, mas agora estavam na mais completa escuridão. Adalberto sente algo passar perto dele, como uma corrente de vento, liga o celular para encontrar o interruptor, a mulher chama por ele:
- amor, você está ouvindo?
Ela aperta a filhinha contra o peito, e encosta-se ao marido. Sim ele está ouvindo são gemidos altos, de dor, de angustia, horripilantes.
Quando as luzes se acendem o silencio volta a reinar. Mas os corações de ambos podiam ser ouvidos de longe. Eles se abraçam e sobem as escadas assim unidos e preocupados com o sobrenatural que os envolve. Os três dormem juntos com a luz do abajur ligada. Quando amanhece o advogado toma uma decisão vai descobrir de onde vêm os gemidos, e porque alguém está fazendo isso com eles. Eles procuravam um lugar tranqüilo para viver e criar seus filhos, e não tem intenção de voltar atrás. O dia está lindo lá fora, ela finalmente decide mexer no jardim, quando começa a remexer um canteiro onde plantará as mudas de tulipa a menina segura seu braço e diz:
- Aí não mamãe, a minha amiguinha disse que se você mexer ai ela não vai mais ver o papai e a mamãe dela. Ela espera por eles bem aqui nesse lugar.
A mulher se desconcerta por um instante e perde completamente a vontade de continuar a jardinagem. Mais uma noite chega e o casal tenta se descontrair, o marido conta como foi seu dia de trabalho, ela fala de amenidades evitando tocar no assunto, não fez nenhuma menção aos canteiros de flores. Foram dormir tarde, mesmo precisando repor o sono, não encontravam jeito de subir para o quarto. Ficaram os três na sala, a filhinha deitada em forma de concha enrolada nos pés de ambos que estavam sentados com os pés erguidos. Cochilavam, quando ouviram o choro desesperado novamente, o mesmo da primeira noite na casa. Abraçaram-se e um podia sentir o coração do outro em sobressalto. Quando o choro cessou o que levou cerca de poucos minutos, eles ouvem o gemido na sala, um lamento de dor, e não pertencem a uma só pessoa. Adalberto se levanta e diz para a mulher:
- Esses gemidos estão se dirigindo para algum lugar e hoje vou descobrir aonde vão dar.
A mulher agarrou a filha no colo e foi andando atrás do marido, acontecesse o que acontecesse ficariam unidos. Foram acompanhando a triste lamentação, passaram pelas salas, chegando até a cozinha onde desapareceu. Inconformado o homem abre a porta da cozinha e sai na área de serviço e tenta ouvir algum som, e olhando pasmo para a mulher ouvem novamente os gemidos e eles vêem do fundo do quintal, ele tira o celular do bolso e liga a função da lanterna, a esposa segura seu braço com força, enquanto traz a filhinha segura com o outro braço. Eles continuam andando até chegar ao lugar onde está o velho balanço, ali os sons aumentam e de repente desaparecem dando lugar ao silencio. Agora o casal não sente mais medo. Querem saber o que há naquele lugar. Quando o dia amanhece Adalberto procura um pedreiro e pede que vá a sua casa e faça um buraco debaixo do balanço. Quando o homem começa a cavar, bate em alguma coisa dura, é uma chapa de aço, ele e o ajudante removem a folha, e assustados chamam a dona da casa que imediatamente liga para a policia. Debaixo da lâmina de metal estão os restos de dois corpos em pé, um do lado outro. Desvendado o crime a família pensa que tudo agora poderá voltar ao normal, pelo menos até encontrarem outra casa, pois não conseguiriam mais morar ali. A filhinha chega correndo e chorando diz para a mãe, que a amiguinha está triste porque levaram seus pais e ela ficou no meio das flores. A mulher sai correndo para o jardim e começa a cavar onde seria o canteiro de tulipas, o marido sem entender a segura firme e pergunta o que está acontecendo, ela chorando diz:
- a filha deles deve estar aqui.
E conta para o marido o que a filha falou sobre o canteiro de tulipas. Quando chegam com a pá e tiram a terra aos montes, bem fundo encontram um esqueleto pequeno, poucos fragmentos de tecidos de pano. A compulsão é geral. Não ficaram mais nem um dia na casa. O sobrado talvez um dia volte a ter outros moradores. Quanto aos antigos proprietários, Adalberto deduz que agora enterrados em solo sagrado, finalmente encontraram a paz, mas a justiça terrena, essa infelizmente depois de tantos anos jamais será feita.