ECOS DA IMPUNIDADE

Podia se ouvir o piado da coruja pousada em cima do poste da esquina. A lua cheia encoberta por uma fina camada de nuvem, enfeitava o pedaço do céu que cobria a provinciana cidade do interior mineiro.

O homem que trabalhava como bóia fria, se levantava antes das 3 horas para se arrumar, ouvia baixinho um antigo radinho de pilhas sintonizado numa frequencia AM que tocava moda de viola e a cada 5 minutos informava a hora. Ele esquentava a comida que seria seu almoço. Fazem 15 dias que se mudara para a cidade, antes morava num pequeno sitio arrendado que tivera que abandonar por causa dos prejuízos com a plantação de tomates. Agora trabalhava como empregado numa fazenda de café, que é o forte na região. O salário não é compensador, mas pelo menos consegue pagar o aluguel e comer. Mora só. Desde que a última companheira morreu, Herculano decidiu seguir a vida sozinho. A primeira noite que passara na nova residência não lhe causara boa impressão. Por volta das 3 horas, ele ouvira um grito horrível, que ecoou pelos ares, seu corpo se ouriçou com os pelos arrepiados, com o coração quase saindo pela boca, embora muito assustado timidamente ele abrira o vitrô da frente, mas não viu uma alma viva na rua, tudo calmo, nem um som. De repente ouve novamente o grito, que se repete uma terceira vez bem mais fraco e ofegante. Têm sido assim quase todos os dias no mesmo horário, o que acaba fazendo parte da sua rotina. No caminho para o trabalho, numa estrada de terra ele repara num cruzeiro antigo de madeira, bastante corroído pelo tempo. Ele não sabe por que, mas associa os gritos àquela cruz, sente o mesmo arrepio da madrugada levantando os cabelos de sua nuca. É como se ele tivesse misteriosamente recebido uma revelação do além. Especulando pela vizinhança ficou sabendo que muitos moradores também ouviam, mas se acostumaram com isso e não tinham o menor interesse de saber a sua origem. Depois de meses ouvindo o pavoroso grito, Herculano decide não trabalhar naquela sexta feira, se levantaria mais cedo e esperaria às 3 horas sentado debaixo do cruzeiro. Ansioso, nem dormiu direito, pegou uma lanterna para iluminar a estrada porque a cruz se encontrava num local ermo, fincada debaixo de uma frondosa árvore, passou a mão num cobertor que ajeitou nos ombros e seguiu decididamente. Sentiu vontade de assobiar enquanto caminhava, mas o silencio parecia ser melhor companheiro para que ficasse sempre em alerta. Pensou em rezar, as orações que sabia eram simples e logo o repertório acabou. Ao longe vislumbrou a grande árvore, convidativa durante o dia, mas na escuridão da noite parecia solitária e fantasmagórica abrigando a cruz de madeira velha meio retorcida. Herculano olhou para o relógio, faltavam 40 minutos para as 2 horas, estava frio, especialmente ali naquele lugar, um vento gélido batia em seu rosto. Ele apertou o cobertor junto ao corpo. Ajeitou- se o melhor que pode, procurando manter certa distância da cruz, porque a proximidade dela causava- lhe certo mal estar. Teve a impressão de não estar sozinho ali, o que aumentou suas expectativas. Dez minutos de isolamento na friagem da madrugada pareciam horas. O homem sente seu coração disparar quando ouve o trotar de cavalos e um vozerio se aproximando da paineira. Nitidamente ele escuta vários homens conversando em tom de discussão. Ele força as vistas, aguça os ouvidos, mas nada vê. Alguém geme baixo, e pelos sons secos está apanhando dos demais. À medida que se aproximam da árvore onde ele se encontra, mais apavorado o homem fica. Uma imagem nítida se forma à sua frente, estarrecido ele vê os agressores a cavalo arrastando uma pessoa que está a pé com as mãos amarradas. O estranho é que ninguém se importa com a sua presença. Um dos homens grita com os demais:

- Aqui tá bão gente!

Todos param inclusive o que está preso, que usa uma batina marrom.

Herculano pensa: - Um padre.

O que dá ordens, fala em nome de todos:

- Sô padre nóis qué que o sinhô antes de morrê, dê a absorvição pra nóis, porque matá padre vai levar nóis pro inferno, e nóis num qué. A curpa nem é nossa do sinhô tá aqui. O coroné Belarmino Cunha, mandô arrancá a língua do sinhô, porque o sinhô fala dimais. (Ao ouvir o nome do mandante daquela atrocidade, o homem que a tudo assistia sem poder interferir, sente náuseas porque se lembra que aquele é nome da rua onde ele reside.)

O padre ofegante e debilitado retruca: - Vocês acham certo o que o coronel faz na cidade? Ele é um assassino. E com suas atitudes ele impede o progresso quando obriga a todos votarem em quem ele manda. Ele comete desvarios e injustiças. Vocês não pensam em suas próprias famílias? Os seus filhos jamais terão educação ou um lugar melhor para viver se isso não mudar. Eu preciso conscientizar os fiéis da minha igreja, pois sofro vendo a miséria que o povo de Deus vive numa época que outros lugares já se livraram desses coronéis latifundiários.

Um dos homens fala:

- Ó sô padre nóis ta aqui a mando do coroné, e nóis vai fazê o serviço. Absorve nóis logo, que vamu arranca sua língua fora e matá o sinhô.

- Vocês não podem matar o que já está morto, responde o reverendo citando a Sagrada Escritura.

Rindo sarcástico, o chefe do bando retruca:

- Uai, sô padre, tá doido? Pois tâmo veno o sinhô vivim aqui, num tá morto nada, mais vai ficá difunto logo, porque o coroné qué vê sua carcaça e sem a língua que o sinhô difamô ele.

O Coronel é assim chamado não por ter patente de oficial, mas por ser um grande fazendeiro e importante cafeicultor daquela rica região de Minas Gerais, era o mandachuva do lugar dominando a política local. Ele tinha mais poderes do que qualquer outra autoridade, uma figura importante daquela época de coronéis e mantinha sob seu comando vários empregados armados que eram chamados de capangas e aqueles que estavam ali para dar fim ao padre dão gargalhadas da resposta do pobre pároco. Agarram o infeliz sacerdote, jogam no chão e violentamente arrebentam sua face com chutes e ponta pés e a socos quebram todos os seus dentes e, nessa hora o bóia fria que estaticamente a tudo assistia ouve o terrível berro que há meses o atormentava, simultaneamente puxam a língua da vítima e com um canivete afiado um dos jagunços do coronel a corta sem dó nem piedade. Nessa hora, Herculano ouve o outro grito, e sangrando o padre solta o grito derradeiro. O grupo de pau mandado do Coronel se afasta em silêncio, e diante do roceiro aterrorizado, o padre agonizante se segura na árvore e desaparece ficando apenas a velha cruz no seu lugar.