A MULA SEM CABEÇA
Eu tinha apenas cinco anos.
Estávamos em pleno verão e naquele lugar a estação toma uma conotação real. No nordeste, as estações do ano são apenas duas. Inverno e verão. A maioria dos nordestinos, especialmente aqueles que vivem na lida do campo, conhecem apenas estas.
O tempo deles é delimitado como época de chuva (inverno) e época de seca (verão). O conceito de primavera ou outono se perdeu e as próprias estações se confundem.
Eu nasci numa casa de taipa que ficava a uns três quilômetros dali. Meu pai tinha construído a nova casa à beira da estrada, o que vinha facilitar nossa ida à cidade, já que precisávamos estudar e como sempre teríamos que ir a pé. A cidade mais perto de nossa casa era, naquela época, Vitória. Hoje se chama Marcelino Vieira. Havia outras pequenas cidades e vilas nas redondezas, mas eu não as conhecia. Ainda era bem pequeno.
Nos anos cinqüenta, pensar em ônibus escolar ou outro tipo de veículo naquela região seria o mesmo que imaginar estarmos viajando todos os dias num disco voador. Hoje tudo é mais fácil, a maioria das cidades do interior do Brasil possuem ônibus escolar que buscam os alunos do campo para levá-los à escola.
Embora estivéssemos morando à beira da estrada, muito raramente víamos algum veículo passar por aquela estrada. Carro de passeio era raríssimo. Vez por outra um caminhão de carga passava por ali.Quando ouvíamos o som de motor, corríamos para a beira da estrada e ficávamos esperando o veículo passar. A poeira que este fazia não nos incomodava. Com todas as dificuldades e por não conhecer outra realidade, éramos felizes.
A época mais emocionante era da páscoa, quando o padeiro da cidade vinha nos trazer pão. Mesmo recebendo o pão ainda cedo, somente comíamos depois do jejum que era mantido até o meio-dia. Era um modo de purgar nossos pecados. Não havia relógio. Nosso tempo era marcado pelo sol ou pela fome. Aquela era a única época do ano em que víamos e comíamos pão de trigo. Nosso café da manhã era quase sempre composto de tapioca, bolo de fubá, cuscuz ou mugunzá. Leite era também muito difícil, as cabras da família eram poucas e o leite era minguado para tantas bocas. No verão era ainda mais difícil. Meu pai possuía apenas quatro vacas e o leite delas apenas alimentava seus bezerros.
O imaginário do sertanejo era povoado por vários tipos de seres que conseguiam manter-nos quietos. Fugíamos de pessoas por pensar que elas fossem os monstros dos quais ouvíamos falar. Era comum sairmos da estrada e nos embrenharmos pela caatinga, para fugir de pessoas que vinham em sentido contrário pela estrada. Tínhamos medo de quase tudo. Isso acontecia quando íamos sozinhos para a escola, na cidade.
Entre as estórias que nos falavam, existia a da mula-sem-cabeça, do lobisomem, do papa-fígado ,de fantasmas e das visagens.Todos os mitos e lendas povoavam nossa cabeça de menino que era preenchida por outros tantos medos devido às estórias que nossos pais nos contavam, as quais eles ouviram de seus pais e avós.
Este encadeamento de superstições conseguia, no entanto, nos manter reunidos à noite, quando nosso pai se dispunha a nos contar estórias que, segundo ele, havia escutado do avô. Depois das estórias de monstros ou fantasmas, rezávamos e íamos dormir.
Nós, ainda pequenos, tínhamos nosso pai como um deus. Além do respeito, tudo que ele nos falava era verdade. Isso não quer dizer que ele mentisse. Ninguém contestava o que o pai dizia. Ainda existia respeito pelos mais velhos.
Naquela época, o respeito filial era muito maior do que se vê hoje. Com a modernidade, os conceitos mudaram muito e com isso a família. A falta de conhecimento e de cultura era a grande aliada que alimentava os mitos e os nossos medos.
Meu primeiro contato com a caixa que falava ocorrera dias antes. Em visita à cidade, ao passarmos em frente a uma casa, vimos dezenas de pessoas postadas à porta, ouvindo o som difuso e confuso que saía de uma pequena caixa de madeira, que se encontrava em cima de uma mesa, no canto da pequena sala. Não dava para entrar, havia muita gente. Meu pai me colocou sobre os ombros e eu vi. Estavam todos de olhos arregalados, quietos e mudos diante daquilo que lhes chamava toda a atenção.O rádio, embora ainda muito rudimentar, criava na mente do povo idéias estranhas.
Aquela cena era corriqueira. O proprietário da casa parecia sentir-se orgulhoso em ter um rádio e que tantas pessoas viessem ali para ouvir. Naquele dia, quando passamos e olhamos rapidamente aquela caixa “mágica,” ainda me lembro, ouvi sair dela uma música de Luiz Gonzaga.
Depois fomos à feira comprar o que não produzíamos em nosso sítio. Durante o percurso de volta, íamos todos andando praticamente em silêncio, quando um irmão mais velho chegou até mim e disse que era até possível o Lampião sair do rádio. Ao ouvir aquilo, senti medo. Eu imaginava ver o Lampião e seus seguidores saindo pelo rádio e invadindo toda a cidade para pilhá-la. Nossa imaginação é pródiga em criar situações muitas vezes irreais.Eu ainda era uma criança, porém minha imaginação já ia longe.
Embora o cangaceiro houvesse morrido há tempos, dentro do imaginário do sertanejo ele continuava vivo, como se pudesse aparecer a qualquer momento. Além do medo, havia o respeito e até certa admiração pelo cangaceiro.
Talvez meu irmão houvesse ouvido aquilo de alguém que estava em frente à casa enquanto o rádio tocava um baião de Luiz Gonzaga. Naquela época, eram transmitidas via rádio algumas dramatizações. Eram chamadas de rádio-novelas. Isso eu pude comprovar quando fui morar em São Paulo, ainda na década de 50.
Andávamos um ao lado do outro, cada um levando sua parte das compras que meu pai havia feito. Quando já estávamos bem perto de nossa casa, uma enorme cascavel atravessou em nossa frente, na poeirenta estrada. Eu e o outro irmão imediatamente pegamos um pedaço de pau e logo ela fazia parte do passado. Não tínhamos medo de cobra. Era comum matarmos-las em qualquer lugar, sem o menor receio. Às vezes com uma pequena vara, nós a provocávamos e íamos fazendo com que mordesse o pedaço de pau e somente depois de algum tempo é que a matávamos.
Quando eu ainda não era nascido, meu pai foi mordido por uma cascavel e depois de vários dias, entre a vida e a morte, conseguiu sobreviver. Os remédios contra mordida de cobra naquela época eram caseiros. Dizia minha mãe que, durante sete dias, ele urinou praticamente sangue e somente com simpatias conseguiu escapar. Outros não tinham a mesma sorte. Meu pai dizia que meu avô costumava colocar cobras para mordê-lo e nada acontecia com ele.Depois da mordida, ele cuspia na boca da cobra e a soltava. Minutos depois esta morria. Eu imaginava meu avô mais poderoso que as cobras.
Assim sendo, a cobra era nossa inimiga maior. Não escapava uma. Não sabíamos qual era venenosa ou não. Todas eram serpentes e, segundo nosso conhecimento, eram perigosas.
Quando chegamos em casa, deveria ser mais ou menos onze horas. Nossa fome ainda não era grande. Meu pai nos havia dado alguns bolos que comprou na feira. Não podíamos comer muitos, porque minha mãe estaria com o almoço pronto quando chegássemos.
E foi assim.
Em cima do fogão caipira, as panelas de ferro fumegavam, aumentando ainda mais nossa fome. O cheiro do frango cozido estava ativo. Minha irmã mais velha colocou a mesa e em poucos minutos estávamos reunidos em torno dela para nos deliciarmos com o mugunzá, o feijão-de-corda, o arroz, farofa e, num prato coberto por um pano, estava a sobremesa. Pedaços de rapadura. Comíamos rapadura quase todos os dias.
Depois do banquete, naquele dia de folga da lida do campo, apenas tínhamos que ficar por ali. Alguns armavam sua rede e iam deitar-se e sonhar. Nossos sonhos eram poucos. Nosso conhecimento era menor. O sonho do homem é do tamanho do seu conhecimento.
Meu pai era viajado. Tinha ido várias vezes a São Paulo e nos contava novidades que a maioria dos moradores da região não imaginavam. Ele conhecia coisas que eu ainda não sabia se um dia poderia conhecer. Eu ainda não pensava nisso. Minha preocupação deveria ser como a da maioria das crianças da minha idade. Elas se resumiam em suas brincadeiras e obrigações e, especialmente, aprender a ler e escrever. Eu ainda era muito pequeno. Nem mesmo sabia o que era o “a” ou “z”. Apenas via meus irmãos mais velhos, quando podiam, irem à escola que ficava na cidade. Quatro quilômetros vencidos sob sol ou chuva e sempre a pé.Nossos calçados eram alpargatas de couro cru, com solado também de couro. Só calcei meu primeiro sapato aos 12 anos, já em São Paulo.
Estávamos naquela madorna quando ouvimos um som aterrador. Meu pai e meus irmãos mais velhos levantaram-se e foram à porta para descobrir o que poderia estar provocando aquele estranho ronco.
Enquanto estávamos naquela expectativa, tentando descobrir o causador de tamanho barulho que nos provocava medo, ouvi meu irmão mais velho dizer:
- Papai, deve ser a mula-sem-cabeça.
Naquele momento foi o maior alvoroço dentro de casa. Minha mãe, imediatamente, pegou os filhos pequenos e colocou-os perto de si, como se pudesse protegê-los de algo tão assustador. Corria a estória que a mula-sem-cabeça era um besta fera que mordia todos que dela se aproximassem e a vítima estaria irremediavelmente perdida.
Meu pai foi até o quarto e momentos depois trazia nas mãos sua espingarda que logo começou a municiá-la. Era carregada pela boca e ele não poderia errar o tiro. Tinha que defender a família de monstro tão assustador. Ainda, por várias vezes, o vi sair com aquela arma para suas caçadas. Eu, na minha inocência, sonhava ter uma igual, quando crescesse.
Enquanto a confusão se estabelecia dentro de casa, meu pai e meus irmãos mais velhos se armavam do jeito que podiam para enfrentar a fera. Cada um deles com suas armas, ficava por detrás da porta que havido sido fechada. Esperavam a fera que deveria estar aproximando-se. O som aumentava a cada momento. O medo ia aumentando também na mesma proporção.
Minha mãe, de joelhos, cercada dos filhos menores, estava em orações, pedindo e rogando à Virgem Maria pela família. Pedia que os salvasse da tentação do demônio etc.etc.etc. O rosário de orações era inesgotável e os rogos se multiplicavam.
Eu e outro irmão menor estávamos escondidos num canto debaixo da mesa que servia de suporte ao pote, onde se armazenava água. Talvez quiséssemos ser os últimos a ser mordidos ou devorados pela mula .
Diziam que a besta-fera era perigosíssima e deveríamos evitar sua mordida. Alguns diziam que ela soltava fogo pelas ventas. Nosso medo era tanto que nem mesmo pensávamos ou ousávamos perguntar como uma mula que não tem cabeça pudesse morder, ou soltar fogo pelas ventas. No mundo dos sonhos e dos medos tudo é possível.
O mais velho dos irmãos, depois de meu pai, parecia ser o mais corajoso. Afiava numa pedra em cima da mesa, sua peixeira de doze polegadas. Dos guerreiros que iriam enfrentar a fera, apenas meu pai tinha arma de fogo e na sua cinta reluzia o punhal. Eram cinco os guerreiros e o mais novo tremia.
O animal se aproximava, o barulho aumentava e o medo nos consumia. A irmã mais velha, ao lado de minha mãe, ajudava no coro de rezas e esconjurações, tentando proteger a prole de tão trágico destino que se anunciava. Eu continuava escondido debaixo do pote, o outro pequeno se juntara a minha mãe.
Papai estava com a arma em punho e tinha na bainha o punhal, arma que trouxera da vida militar. Enquanto se ajeitava atrás da porta, ia traçando as estratégias de combate.
“Depois que eu der o tiro no bicho, nós furamos ele. Tomem cuidado com a mordida dela”, dizia meu pai.
Aquele que fosse mordido pela mula estaria irremediavelmente perdido, as partes afetadas iam apodrecendo até a vítima morrer. O quadro pintado sobre uma mordida da mula era algo dantesco. Hoje ainda não consigo imaginar de onde surgiu tal idéia. Deve ter sido criação de algum brincalhão. Ali, naquela região, o mito encontrava solo fértil para crescer e sobreviver.
Enquanto mamãe rodava seu rosário, com olhos fixos em Nossa Senhora de Fátima, ficava ajoelhada no piso de chão batido. Os homens da casa estavam se ajeitando para a batalha. As crianças arrebanhadas pela mãe choramingavam. Eu, escondido também, rezava.
E a “mula” se aproximava.
Ninguém teve coragem de sair de casa para enfrentar a fera. Os grunhidos iam criando nos medrosos mais pavor. O mais novo dos guerreiros saiu correndo para os fundos da casa, chorando. Havia-se mijado de medo.
Quando correu, não queria que meu pai visse e pudesse repreendê-lo. Homem tinha que ser macho e quem sente medo é covarde, não merece respeito de ninguém. Minutos depois ele voltou. Havia trocado de calças, mas sentiu-se envergonhado quando, olhando para minha mãe, esta o repreendeu com o olhar, enquanto balançava a cabeça, sem esquecer, no entanto, de sua ladainha.
Quando o guerreiro mijão se juntou ao grupo, meu pai incitou-os a saírem da casa e esperarem o “ inimigo” que deveria já estar bem perto, uma vez que o barulho rouco de seu urro indicava que em questão de segundos haveria o enfrentamento.
Prontos, armados, cheios de coragem e com medo, ficaram em frente à casa aguardando o monstro que deveria pagar caro, para conseguir morder ou matar qualquer um deles. Todos se sacrificariam em prol da família. O monstro não assustaria mais ninguém. Enquanto os guerreiros aguardavam o monstro, meu pai gritou lá de fora:
-Fechem a porta e fiquem quietos!
Enquanto minha irmã se levantava da penitência de orações contínuas e fechava a porta, nós, os pequenos iamos amargando o medo de sermos comidos por mostro tão aterrador. Meu maior medo era pelo fogo que ela soltava pelas ventas.
Do lado de fora da casa, apenas se ouviam, as ordens de meu pai e o urro da fera. Ela se aproximava. Nosso medo aumentava, as rezas se sucediam.
Dentro da casa, o pavor reinava e, do lado de fora, palavras de ordem traçavam a estratégia de como enfrentar o bicho.
Em certo momento, um dos que estava lá fora gritou:
-Vejam, lá vem ela!
Naquele momento aumentaram as rezas e nossos choros. A hora final se aproximava. Eu, criança, comecei a pedir perdão por pecados que eu imaginava ter cometido.
Eu já via meu braço estraçalhado pelos vorazes dentes da mula. Ouvimos, naquele momento, de meu pai, uma sonora gargalhada. Não conseguíamos entender aquela mudança brusca, entre a estratégia de combate e o riso.
Bateram na porta e minha irmã foi abrir.
Depois de entrarem, cada um falava mais alto e grosso. Todos, ao mesmo tempo, diziam que não havia sentido medo em nenhum momento.
Mamãe, que já se levantara de sua penitência, tinha os joelhos roxos e marcados pela longa permanência naquela posição, então perguntou:
-O que aconteceu, afinal? Mataram a besta?
Meu pai aproximou-se rindo e quase não conseguia falar. Respirou fundo e então disse:
-Não era mula nenhuma. Era apenas o velho jumento preto do compadre Zeca Barros, o qual estava engasgado com um caroço de manga e vinha pela estrada, tentando se livrar dele. Nós conseguimos fazer o coitado se livrar do caroço.
Enquanto as explicações eram dadas, o pobre jumento continuava seguindo pela estrada com seu verdadeiro zurro e ia com isso povoando nossa imaginação de pessoas simples que, a partir daquele dia, iria ter medo apenas de outros seres imaginários e nunca mais de uma mula-sem-cabeça.
Minha mãe, depois de entender as explicações dadas, disse:
-Nazaré, passe o café e traga a goma, vamos preparar tapiocas para nossos heróis.
Aquela foi a melhor parte da estória. A manteiga de garrafa já se encontrava em cima do fogão a lenha, derretendo bem devagar com o calor deste.
Minutos depois, todos estavam novamente em volta da mesa, comentando o fato e comendo tapioca e o que mais se destacava era o sabor e o cheiro da manteiga.
Agora, quando acabo de escrever este fato real, acontecido em minha vida, lembro-me também do dia em que o mundo ia acabar. Bem, mais este caso é uma outra estória.
01/09/06-VEM.