Porcelana
Era tudo muito simples. Estava então cansada de ter tais expectativas, pois ela sabia que ele não viria mais. Seu olhar foi de dúvida a contemplação e no fim atingiu em cheio o homem que tomava seu depoimento.
O delegado, interessado no que ouvia procurou manter seu olhar firme na depoente.
– E depois daquela conversa, a senhora nunca mais o viu?
– Não. Não achei conveniente. – Respondeu ela sem mostrar dúvida alguma desta vez.
– A senhora sabe se seu ex-marido tinha algum inimigo ou desafeto?
– Além de mim? – Riu-se ela. – Não. Não que eu soubesse. – Completou ao ver o rosto sério do delegado.
O delegado apoiou os braços sobre a mesa e uniu as mãos em atitude apaziguadora.
– Espero que a senhora possa entender a razão de estar aqui...
– Entendi sim, delegado. – Interrompeu-lhe brusca e inadvertidamente. Meu ex-marido está desaparecido e não é segredo para ninguém que não nos dávamos bem, apesar de eu querer uma reconciliação, mas ele insistiu com aquela vagabunda! Destruiu minha vida, meu amor próprio desfilando com ela em frente à nossa casa para todos verem! A casa que nós dois construímos juntos! O senhor é que não pode entender a razão de eu estar aqui... – Neste momento, as lágrimas rolaram densas, enevoando os olhos amendoados.
O que se podia fazer? Ele, um homem da lei, só podia solicitar um copo d’água com açúcar e esperar que a dona se acalmasse. Até ali não tinha olhado bem para ela. A bem da verdade, nela não tinha muito que se olhar. Uma dona de casa chegando aos quarenta não muito conservada, daquelas com cheiro de alho e cebola nas mãos e nas roupas, manchas brancas de desinfetante. As dela, até que estavam bem manchadas, como se ela tivesse compulsão por limpeza. Muitas mulheres desenvolviam diversos transtornos mentais depois de serem abandonadas pelo companheiro de décadas, a quem eram devotadas toda a vida...
– O senhor sabe que tipo de bodas íamos fazer ano passado? – Perguntou ela de repente. – É claro que não sabe... eram bodas de porcelana... vinte anos... vinte anos da minha vida dediquei a ele... vinte anos. A porcelana quebra tão fácil, não é delegado? Eu tinha comprado um jogo de jantar de porcelana para comemorarmos... mas aquela lambisgóia estragou tudo! O senhor vê o que ela fez? Vê o que aconteceu comigo?
– Senhora, eu sinto muito pelo seu sofrimento, mas precisamos esclarecer este mistério! Seu marido está desaparecido há um mês e estamos sem pista alguma do paradeiro dele... a polícia...
– Por que não pergunta a vagabunda que vive com ele? Por que me atazanam com esse assunto? O senhor não entende? ELE NÃO É MAIS MEU... ELE É DELA AGORA!
– A senhora não sabe que ela também está desaparecida? – A mulher pareceu voltar à realidade.
– Ela também... oh! Eu não sabia! Por tantas vezes desejei a morte dela... e agora isso...
– É, senhora. Se o seu desejo se realizou, não sabemos, mas é fato que com ela sumiu todo o dinheiro do seu marido... já faz uma semana.
– Deus! Mas, então... – A mulher enfim, estava compreendendo porque estava ali. O delegado suspirou aliviado.
– Se a senhora puder ajudar com qualquer informação sobre a foragida...
– Eu... eu não posso... desculpe... – E foi levantando-se, tropeçando nas pernas, chegando à porta balbuciando que não podia mais e sem mais partira. O delegado ainda pensou em detê-la, mas desistiu de atormentar ainda mais a pobre diaba.
A pobre diaba, agora, na rua, tentava enxugar as lágrimas, tentava se acalmar. Jurou não mais chorar. Afinal de contas não tinha com o que se preocupar. Ele não estava desaparecido. Não! Ele havia voltado para ela! E mesmo que dissessem que ela estava louca, ela voltava para casa agora, para ele!
Aquela vagabunda não ia destruir seu casamento de novo, não mesmo! Ela sumira! Estava longe, bem longe deles e agora ela iria finalmente pôr a louça nova para o jantar...
Ah! Sua casa! A mais bonita da rua, mas o jardim estava tão descuidado... um ano sem que ela cuidasse dele. Passou a mão pelos cabelos despenteados. Ela estava tão mal quanto o jardim. Um ano.
Atravessou o portão, com coragem para derrubar um muro. Abriu a porta e deparou com a casa... vazia. Sorriu, pois mesmo vazia, era a sua casa. Mesmo vazia, era ela mesma. Subiu as escadas, tomou um bom banho, vestiu-se a contento, arrumou os cabelos. Era hora de esvaziar-se mais ainda das lembranças. Ele não a esperava na sala, mas ele iria chegar, ela sabia! A outra não existia mais, sumira! E agora, ele ia precisar dela, ah sim, ia!
Desceu, preparou o jantar, mas não encontrou o seu jogo de porcelana. Uma pena; ele se quebrara. Era tão bonito. Mas ela não estava falando de seu casamento... era da louça. Uma febre começou a queimá-la intensamente, dirigiu-se às escadas, mas não tinha nada a fazer lá em cima. De súbito, lembrou-se do jogo de louça. Ah, como poderia esquecer? Ela o havia guardado no closet embaixo da escada. Pegou a chave e abriu a porta. A principio não entendeu muito bem a bagunça que via. Entrou, acendeu a luz e sorriu para a tétrica figura jogada a um canto, encolhida.
– Oi, amor! Desculpe se me atrasei, foram muitas perguntas que o delegado fez... oh... não se assuste! Já vou limpar este sangue do seu rosto. Não devia ter batido tão forte, mas você não queria ficar quieto... e mais um pouco e o policial ia acabar te escutando, não é?
O homem gemia desesperadamente, mas a fita grudada em seus lábios não ajudava muito o seu pedido de socorro. Nem as mãos e pés atados. Como sobrevivera tanto tempo assim?
– Sabe que estão te procurando? Pois é! Eles não acreditam que você voltou pra mim... acham que estou louca, mas não estou... não estou... – A febre aumentava e quando ia saindo, lembrou-se de algo importante.
– Já ia me esquecendo... ela te incomodou muito? Não se preocupe, amanhã me livro dela e aí seremos só nós dois de novo... pena ela ter feito eu quebrar nosso jogo novo de porcelana, não é?
A mulher deu um leve chute no cadáver que jazia aos seus pés, dilacerado por cortes finos e profundos e, em algumas partes daquele corpo sem vida, jaziam pequenos pedaços de porcelana cravados, como se fossem lápides em túmulos.