"OBSESSÃO..." - Capítulo V

Capítulo V

“Amor maternal”

O corredor é extenso, com muitos leitos, todos com crianças à beira da morte. Nele se encontra Catharine, debruçada sobre a maca da filha, de três anos. Alana está muito doente, tem leucemia há poucos meses, mas, definhada como está, aparenta padecer há anos. A menina respira com o auxílio de uma máquina; não come mais pela via natural, é preciso injetar a alimentação por uma sonda. Não raro, regurgita e chora, pedindo o colo da mãe.

Catharine se faz de forte, responde a todos os apelos da filha, ainda que sejam meros caprichos. Passa dias e noites acordada ao lado daquela menina - a sua razão de viver. Não importava o tamanho do sofrimento, ela sempre estava preparada para a guerra. Uma guerra que não tinha trégua. Que lhe custou a perda da única filha.

Algumas horas antes de falecer, Alana pediu o pai. Onde ele estava? Por que não a visitava? Não gostava dela? O que tinha feito de tão grave para que ele a punisse com sua ausência? A mãe que não mais se agüentava em pé, tentava, a todo custo, persuadi-la de que ele chegaria logo, como se isso fosse possível.

Com olhos semicerrados, a menina esperava, esperava... E esse papai nunca chegava. A dor que sentia se parece com a da ferida que não cicatriza. E não tinha mesmo como cicatrizar, o pai nunca se importou em saber como ela estava. E mesmo quando dava o ar de sua graça, era frio, indiferente, como se ela não pertencesse à família. Como se não fosse sua FILHA! Não havia quem não notasse! E George também, em momento algum, fazia questão de esconder a sua repulsa.

Isso revoltava Catharine.

Aliás, não havia uma única vez que ele fosse ao hospital e não despertasse uma desavença familiar. Certa vez, inebriada pelo ódio, ela esqueceu-se de que estava dentro de um quatro de hospital, partiu para cima do marido e lhe deu um tapa. Foi a primeira e única vez que nele tocara. Para nunca mais! O revide, de uma violência quase letal, foi de uma covardia ímpar. Uma enfermeira teve de ajudá-la a se levantar e a esconder o rosto do médico, quando este a visitou naquela tarde.

Quando George partia, Alana queria sempre o colo da mãe, porque nele sentia o amor que lhe era negado pelo próprio pai. Dengosa, com a chupeta na boca, ela pedia que a mãe lhe molhasse os lábios, estranhamente, sempre secos. A cada dia que passava, a cada hora, a cada minuto, uma parte dela se desprendia, assim como fazem as pétalas de rosa em tempos de ventania, e voava para bem longe... Até se perder na imensidão!

No dia em que ela deixou este mundo, Catharine cochilava na poltrona ao lado de sua caminha. Quando ouviu o aparelho que monitora os batimentos cardíacos apitar, saltou em direção à pequena. E ela, por mais incrível que pareça aos olhos dos céticos, estava à sua espera. Só partiu quando a viu! Morreu sorrindo por saber que ao menos a mãe estava ao seu lado.

_ALLLLLLLLLLLAAAAAAAAAAAAAAAANAAAAAAAAAAAAAAAANAAA!!! – gritava, sacudindo-a, como se o seu desespero lhe fosse devolver a vida dela._ AJUDEEMMM-ME, POR FAVOR! – suplicava pelos corredores.

Mas não havia mais ninguém ali disposto a lhe estender a mão. Não por maldade... Por pena! Todos sabiam, o inverno – o espaço de tempo em que às flores murcham - chegara, pelo menos para Alana.

_ Acalme-se, Dona Catharine! – pede Ernestina, vendo-a agitada na cama. _Acalme-se! Está tudo bem! Olhe, está em casa... Estou aqui! Nada irá lhe acontecer! – diz a empregada, embaraçada com o próprio choro._ Está tudo bem!

_ Alana se foi mesmo, Ernestina? – pergunta aos berros, ao perceber que havia rememorado as tristezas de outrora. _Diga para mim que é mentira! Por favor! Ela não morreu, não é? Morreu?

_ Infeliz mente!!! – confirma a criada, cabisbaixa, em soluços.

_ Por que, Ernestina? Por quê?

_ Há coisas para as quais não há respostas e essa é uma delas. Infelizmente, nossa pequenininha partira. Até hoje me pergunto também o porquê de tão curta passagem por essa vida; as respostas que encontro sempre terminam onde se iniciam as perguntas: no por que!? Deus poderia ter levado qualquer um de nós, até mesmo aquele salafrário do seu marido, mas, por algum motivo, a escolheu. Talvez porque ela fosse ainda um anjinho, daqueles que se coloca em cima da penteadeira e se admira por longo tempo. Certamente, Deus a pôs em sua penteadeira, de onde a admira agora. Que autor deixaria de apreciar sua própria obra?

_ Oh, Ernestina! Como és bela! Tens um coração maior que o peito, do tamanho do mundo. Suas palavras me consolam...

_São apenas muletas de quem não tem o que dizer. Você, querida, que é bela. O que passou naquele hospital eu não desejaria para o meu pior inimigo. Mas você foi forte, uma guerreira de fibra! – limpa as lágrimas. _ Perdeu a guerra, mas perdeu com honra! E isso é o que importa! Tenha certeza, a MORTE não lhe visitará tão cedo, teme enfrentá-la novamente.

Catharine abraça-a bem forte. Os corpos estão incendiados pela dor. Se alguém as visse, deduziria ser mãe e filha, não patroa e empregada. Uma sintonia espiritual pouco vista em figuras sem qualquer laço de parentesco.

_ Agora saia dessa cama, vamos, levante-se! O que pensa fazer na cama até essa hora? Preguiçosa! Veja – abre as cortinas para que os raios de sol espantem a escuridão daquele quarto, o dia está quase se despedindo e a senhora ainda está de pijama. Que vergonha!

Um sorriso tímido ressurge na face da única herdeira dos Dumont.

_ Venha, coma uma maçã... Trouxe-lhe de tudo! Iogurtes, frutas, pães. Farte esse corpo, muitos obstáculos virão e a senhora deve estar forte. Acha que Alana ficaria feliz ao saber que sua mãe, aquela onça em forma de gente, desistira de viver, e justo por ela? Que decepção, diria acanhada, com aquele olhar angelical.

Os lábios de Ernestina estão empolgados, querem expulsar a tristeza daquele lugar.

_ De onde estão brotando essas palavras, Ernestina...?

_ ...do amor que tenho pela senhora! – completa a sexagenária. Um amor incomensurável.

_ Incomensurável? És uma poetisa!

_ Sou fruto de seus esforços. Lembra-se do dia em que me neguei a assinar uma encomenda de meu ex-marido, e a senhora, com espanto, me perguntou o porquê daquele gesto? Ali me conhecera de verdade... Eu era analfabeta e tinha vergonha de assumir. Mas ao invés da senhora me depreciar – como muitos fizeram, optou por me ensinar! Quantos livros li? Perdi as contas. Às vezes me acho parecida com a Hanna, de O Leitor2, isso não quer dizer que eu seja nazista...Longe disso, pelo amor de Deus!

_ Será? – brinca, pela primeira vez, após meses de dor intensa. _Do jeito como tratou aquele carteiro... Coitado! Estava diante de um Hitler de saia!

_ Boba! – beija-lhe a fronte. _ Vá comer! Ah, antes que me esqueça, seu digníssimo esposo pediu para recepcioná-lo, à noite, com aquele Valentino rosa que lhe deu...

_ ... Só? - debocha.

_ Não se esqueça das taças de vinho do Porto, hein? Hum! Acho que nada aconteceu nessa casa! Para ele não aconteceu mesmo - certifica-se a mucama._ Ô bicho ruim! Se eu fosse a senhora...

_...o colocaria para correr! – completa Catharine. _ Já me disse isso, Ernestina.

_ Pois repito!

As horas se passam...

A lua se nega a dançar no céu anuviado. É o prenúncio da chegada do vereador à mansão.

A porta da limusine se abre, George atravessa o hall de entrada e chega à sala de jantar.

_ Boa noite, George! – saúda a mulher.

O vereador a fulmina com os olhos.

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2 Romance de Bernhard Schlink que deu origem ao filme estrelado por Kate Winslet e Ralph Fiennes. O adolescente alemão Michael tem 15 anos quando começa a relacionar-se com Hanna, uma mulher 21 anos mais velha. Ambos vivem uma delicada e intensa relação amorosa, até que Hanna desaparece subitamente sem deixar pistas. Sete anos depois, Michael, agora estudante de direito, é convidado a tomar parte de um julgamento contra os criminosos do regime nazista. Ele descobre, para seu terror, que sua antiga amante é uma das acusadas pelos crimes.

* Aguarde o capítulo VI.