Zayt al-Zaj
10 de Março de 2010, quarta-feira, 23h30.
A cidade de São José dos Campos, interior de São Paulo, segue sua rotina. Trabalho, bebidas, orações, drogas, prostitutas... Com pouco mais de seiscentos e quinze mil habitantes, é um marco industrial e tecnológico no país que movimenta dinheiro e traz pessoas de todas as partes.
Na ultima semana, a cidade ganhou um novo habitante para contar em seu censo, um homem que pretende seguir seu legado onde quer que esteja.
Observando a saída de uma casa de jogos clandestina no subúrbio da cidade, Cristiano aguarda sozinho dentro do carro que acabara de “emprestar” sem o consentimento do dono.
No auge de sua juventude, Cristiano, com seus vinte e três anos, é um amante da literatura. Em sua biblioteca particular é possível encontrar os mais variados títulos, desde A Divina Comédia de Dante Alighieri até O Silencio dos Inocentes de Thomas Harris. Musico por prazer, passa seu tempo livre improvisando acordes e solos em sua guitarra ou se deliciando ao som de Pink Floyd, Tchaikovsky, The Doors, Chopin... Formado em primeiro lugar em química numa faculdade pública, foi chamado à cidade por uma multinacional que se interessou pelo jovem promissor. Porém, nesta noite, não está a trabalho de uma empresa e sim de sua necessidade.
Havia estudado por duas semanas, os hábitos de seu alvo e agora, olhando pelo retrovisor, aguardava o homem sair pelo portão de madeira quando ouviu a voz ao seu lado.
– Outra vez com seus jogos, Cristiano? – disse a voz de súbito.
Sem mesmo olhar para o banco vazio do carona, Cristiano respondeu:
– Foi você quem criou tudo, Isaac! Agora suma! Eu nem te encontrei ainda!
– Eu não crio perdedores! Você não vai me achar antes de ser pego!
Então Cristiano viu o que queria, através do reflexo em seu retrovisor, viu um homem alto, por volta de seus trinta e cinco anos sair pelo portão do cassino ilegal. Tateou no bolso pelo pequeno objeto que carregava e se virou para o banco vazio do carona.
– Desculpe-me pai, mas antes de te encontrar, eu tenho muito a fazer. – disse isso e saiu do carro.
Mais uma noite de jogos de azar se passou para Luiz. Funcionário exemplar de uma grande multinacional, vizinho exemplar, irmão exemplar, sem ficha na policia, nem mesmo uma multa de transito, além de freqüentar a igreja em encontros semanais, com exceção das quartas, é claro. O que quase ninguém sabe é o que dentro de casa sua família vive um inferno com um marido viciado em jogos que os oprime e desconta todas as suas perdas em forma de violência.
Hoje foi um dia no qual não deveria ter feito apostas, pois outra vez perdeu muito dinheiro e saiu as pressas, quase expulso da mesa. Provavelmente iria chegar em casa e espancar os filhos como sempre faz, mas esta noite será diferente. Esta noite suas duas crianças serão libertadas da dor causada por aquele que deveria cuidá-los. Esta noite, Cristiano será o libertador.
Ao caminhar apressadamente pela calçada rumo ao seu carro que estava parado em outro quarteirão, foi abordado de surpresa.
– Ei amigo, pode me dar uma mãozinha? – um homem parado em frente a um carro com o capô aberto o estava encarando – Ah, sim! Me desculpe, é que meu carro parou e eu não sei o que aconteceu. – disse o homem se desculpando.
– Não tenho muito tempo agora. – disse Luiz antes de continuar a andar.
– Luiz? É você?
Por um momento Luiz estacou e pensou antes de falar. – Eu te conheço de algum lugar?
– Claro! Assisti sua pregação religiosa na ultima semana! Mas, o que faz deste lado da cidade a esas hora? – perguntou Cristiano.
“Alguém da igreja era tudo que eu não precisava me vendo neste lugar.” Pensou Luiz
– Acho que me lembro de você. – tentou parecer mais amigável – Mas diga o que aconteceu com seu carro? – disse Luiz tentando mudar de assunto.
– Não sei o que pode ter acontecido, ele parou de repente e eu não sei nada de mecânica. – disse apontando para o motor sabendo que Luiz tem conhecimento sobre o assunto
– Talvez eu possa dar uma olhada, mas está muito escuro aqui.
Enquanto Luiz falava, Cristiano sacou o celular do bolso e atendeu uma ligação que não recebeu.
– Está tudo bem querida, o carro quebrou, mas um bom samaritano está me ajudando. Só um momento. – voltou a atenção para Luiz – Tem uma lanterna no porta-malas, se importa em pegá-la? – logo em seguida voltou a falar ao telefone.
Sem ter muita escolha, Luiz foi ao porta-malas procurar pela lanterna. Ao abrir a tampa, viu que não havia nada além das lâmpadas acesas, levantou a cabeça para falar, mas antes de conseguir encher o pulmão, um objeto foi encostado em suas costas. Um clarão súbito passou por seus olhos e seus músculos pararam de responder antes de ficar inconsciente.
Parado atrás do carro, Cristiano guardou sua arma de choque, usou uma demorada carga de 1.800 volts que deixou seu alvo inconsciente, logo em seguida jogou o corpo inerte dentro do porta-malas e o fechou. Ligou o carro e saiu como se nada tivesse acontecido.
Depois de dirigir por quinze minutos, Cristiano chegou a um lugar afastado e com pouca iluminação onde achara há poucas horas o carro utilizado. Parou o veículo minuciosamente onde o encontrou, sabendo que o dono não se preocupava com o veículo durante a noite devido ao trabalho, fechou a porta e saiu andando.
Em pouco menos de cinco minutos, voltou com o próprio carro e parou bem perto do veículo a pouco utilizado. Olhou ao redor a procura de sinais de vida. “Perfeito! Bairro afastado, sem pessoas na rua!” Abriu o porta-malas e olhou fixamente para o corpo encolhido de seu passageiro da noite. Percebeu que a vitima abria os olhos vagarosamente tentando recobrar a consciência, então se certificou de presenteá-lo com mais uma descarga elétrica. Logo em seguida, retirou o corpo inerte do compartimento e o colocou no porta-malas de seu próprio carro. “Vamos dar outra volta!” Trancou o carro com suas ferramentas e olhou bem para o veiculo que acabara de devolver. “Ninguém vai perceber que você esteve fora por duas horas!”
Entrou em seu carro outra vez, apertou o cinto e se olhou no espelho retrovisor, ao fitar os próprios olhos deu um sorriso. Dirigiu rumo ao sul da cidade. Em breve chegará em casa.
Durante o tempo em que dirigiu seu carro, Cristiano não parou de ouvir a melodia que vinha do som, se sentiu em transe ao som de The Trial do Pink Floyd, acompanhando as vozes que cantavam.
“Your own way, have you broken any homes up lately? Just Five minutes, worm your honor, him and me, alone…”
Parou o carro em frente a sua casa, desceu do veículo para abrir o portão de chapa que tampa toda a visão de quem está na rua. Ao entrar no carro novamente se deparou com Isaac no banco do carona outra vez.
– Aonde quer chegar com tudo isso?
– Não enche pai, eu ainda vou te pegar pelo que fez com Pedro! – respondeu Cristiano antes de Isaac sumir de sua vista outra vez.
“Finalmente no templo!”
Sua casa se compara a uma pequena fortaleza domiciliar, com telhado cobrindo o quintal em toda sua extensão fazendo com que nenhum raio de luz externo atinja o interior da residência diretamente, grades que impedem a passagem pelas laterais e um portão reforçado separando a garagem do restante do terreno lhe garantem a segurança que necessita.
“E finalmente o ritual vai se iniciar!”
Com um pouco de dificuldade para andar devido ao peso de Luiz em seu ombro, Cristiano abriu a porta a acendeu a luz de sua sala, Isaac estava sentado em seu sofá com os braços atrás da cabeça como fazia antigamente ao chegar do trabalho.
– Por que este homem, Cristiano? – perguntou Isaac.
– Vou impedi-lo de cometer o mesmo erro que você. – disse Cristiano levando sua vitima inconsciente para os fundos, passando pelo corredor onde guardava seu diploma em uma moldura na parede.
Ao entrar na cozinha, Isaac estava sentado na cadeira da ponta da mesa de quatro lugares.
– E você acha que é melhor do que eu?
– Você é um dejeto no meio de um solo cheio de lixo, e eu sou aquele que vai limpar toda a sujeira. O que você fez com Pedro não pode ser repetido por ninguém! – Cristiano abriu a porta que leva para os fundos. – Onde quer que você esteja se escondendo, eu vou te achar Isaac, e não vai ser bonito. Agora suma do meu santuário!
– Não me culpe pelo que fiz com seu irmão... – foi o que Cristiano ouviu antes de bater a porta atrás de si.
Atordoado e confuso, Luiz tentou abrir os olhos, mas a luz do ambiente queimou sua vista fazendo-o cerrar os olhos até acostumar-se com a claridade. Tentou mexer as mãos e os pés e percebeu que já recobrara o controle dos membros, porém, um súbito desespero cortou a realidade quando viu que estava de pé com os braços e pernas esticados e presos.
Aos poucos, a adrenalina tomou conta de seu corpo e fez com que seus olhos vissem o ambiente bizarro em que estava. “Meu Deus!” A sala era retangular, com aproximadamente sete por três metros, as paredes eram todas revestidas por algo parecido a caixas de ovo, a sua direita, se encontrava uma velha vitrola sobre um suporte, a sua frente havia uma mesa na qual reconheceu algumas ferramentas como uma picareta, um martelo, um pedaço de madeira que parecia ser o cabo de uma pá ou de uma inchada e uma chave de fenda, atrás das ferramentas havia algo que ressaltava a incoerência do local, havia um pequeno gorila de pelúcia, Luiz lembrou-se de ter um brinquedo igual na infância. Quando olhou para sua esquerda, se deparou com outra mudança drástica no cenário. Havia uma espécie de barril feito de metal que tinha “Zayt al-Zaj” gravado em sua lateral ao lado de um grande recipiente sobre rodas descansando próximo a uma mesa repleta de objetos que lembravam um laboratório e, encostado na mesa, estava o doutor macabro com seu jaleco a fitá-lo.
– Pensei que não fosse acordar a tempo! – disse Cristiano olhando para o relógio no pulso – Já são 3h da manhã, a sorte é que eu só começo a trabalhar na segunda!
– Onde eu estou? Quem é você? O que quer de mim? – disparou a perguntar Luiz
– Vá com calma, Luiz, você não está sozinho com sua família para agir como um animal! – Luiz calou-se ao ouvir – Onde você está? Bom... Bem vindo ao meu pequeno estúdio! Quando comprei esta casa há alguns dias, esta era uma lavanderia, mas mandei revestir as paredes para que nenhum som feito aqui possa ser ouvido de fora enquanto toco meus instrumentos. – Cristiano falava com uma frieza inumana enquanto caminhava até Luiz – Fiz deste lugar um templo de meditação e de paz interior, as vezes medito com minha guitarra, mas como deve ter percebido, não há nenhum instrumento musical aqui. Pois hoje vou encontrar a paz de outra forma.
– Eu te devo dinheiro? Diga-me! Eu arrumo a quantia que quiser!
– Cale a boca! – disse Cristiano batendo no roso de Luiz – Eu não quero seu dinheiro! – Cristiano teve uma súbita mudança de humor, mostrando raiva em seus olhos – Eu não ligo para os seus jogos, suas prostitutas e o que for! – se aproximou do rosto do homem – Hoje eu irei te impedir de se tornar algo abominável!
Cristiano percebeu que sua vitima não parava de olhar para o estranho barril com a inscrição “Zayt al-Zaj”, caminhou até lá.
– Zayt al-Zaj! Uma maravilha da alquimia medieval! Seu criador, Jabir ibn Hayyan, nos deu uma das melhores substancias já feitas. Também já foi chamada de óleo de vitríolo... Mas isso não deve importar para você, pois hoje conhecemos como ácido sulfúrico! – Luiz começou a chorar – Mas não se preocupe! Este só vai ser o gran finale!
– O que você vai fazer comigo? – perguntou Luiz chorando desesperadamente
– Você se tornou um demônio para aqueles que dependem de sua proteção. – Cristiano olhava nos olhos de Luiz – Diga-me, você se sente bem espancando suas crianças?
Os olhos de Luiz não conseguiram encarar os de Cristiano.
– Eu já suspeitava. – disse Cristiano levando a mão sobre a mesa com as ferramentas – Com essas ferramentas eu vou te espancar até seus ossos estarem fora da pele, depois vou arrancar seu olho esquerdo e colocá-lo naquela substancia – apontou para a mesa com componentes químicos – para que cristalize em acrílico e seja minha lembrança desta noite, depois vou te cortar em pedaços, derreter em óleo de vitríolo e enterrar todo o liquido resultante em meu quintal para que a terra absorva toda a prova de sua existência. – Cristiano pegou o pequeno gorila de brinquedo, o encarou, depois soltou no chão – Mas eu preciso reviver antes...
– Me solte, por favor! Eu não encostarei mais em meus filhos, eu juro! Eu irei embora... – Cristiano já não prestava mais atenção nas suplicas de Luiz, simplesmente se sentou no chão e sua vista se perdeu em memórias.
Aquela noite no inverno de 1991, Cristiano, com apenas cinco anos na ocasião, seguiu as ordens de sua mãe e correu para se esconder com Pedro, seu irmão mais novo. O único lugar onde sua mente infantil se achava seguro foi a velha garagem que era o lar das ferramentas de trabalho de Isaac, seu pai.
As lembranças são nítidas a ponto de serem revividas quando se lembra da velha vitrola no canto a direita que soava os acordes de Bob Dylan naquela noite. Pedro deixou seu velho gorila de brinquedo sobre a mesa onde estavam a picareta e o martelo que seu pai usara durante o dia. O garoto não entendia o que estava acontecendo quando Cristiano o puxou pelo braço e se agachou num canto sobre seu irmão. “Tenho que te proteger Pedro!”
Mesmo com o som da gaita, violão e voz ecoando da vitrola, ainda foi possível ouvir gritos abafados vindos da casa, mas não duraram muito. Abraçando forte seu irmão, Cristiano pode perceber quando os gritos acabaram.
O frio e o medo o faziam tremer enquanto o pesadelo vivido corria, até que uma sombra apareceu na porta que dá acesso a garagem.
Isaac entrou vagarosamente, tendo sua atenção chamada por sua antiga vitrola que deixara ligada minutos antes, mas algo mais lhe chamou a atenção. Caminhou até a mesa no centro, onde deixa suas ferramentas, e pegou o gorila que dera para seu filho mais novo em seu terceiro aniversário.
Inocente como uma criança é, Pedro não se conteve e gritou para o pai. Isaac ao ver o filho, esboçou um sorriso e soltou o gorila no chão, levou outra mão ao cabo de uma inchada.
Mesmo com seu irmão mais velho tentando segurá-lo, Pedro correu em direção ao pai que, mesmo sendo um homem violento, amava tanto.
O sorriso de alegria deu lugar a uma expressão de medo e dor na face de Pedro quando o golpe lhe atingiu o ombro e o jogou no chão violentamente. Cristiano correu em direção ao pai para impedi-lo, mas foi atingido na cabeça ficando assim atordoado e sem controle do corpo, mas consciente e lúcido o suficiente para ver o espetáculo de horror que se seguiria e lhe marcaria até o fim de seus dias.
Isaac foi para cima de seu indefeso filho, e com sua força, desceu golpes violentos no pequeno corpo. O som da madeira quebrando ossos ficou gravado de tal forma, que a cada golpe que relembrava, o corpo de Cristiano sofria espasmos em seu estúdio.
Havia sangue por todos os lados, cada vez que Isaac levantava os braços para golpear outra vez, respingos eram arremessados ao teto e Cristiano nada podia fazer. Não se contentando, Isaac pegou seu martelo e continuou, em seguida, pegou uma chave de fenda e se agachou sobre o corpo inerte da criança.
Em meio a uma torrente de sentimentos confusos, o Cristiano criança, se viu em outra realidade, como se no ultimo minuto acabara de envelhecer mil anos. A onda de choque em sua mente foi tamanha que as lagrimas cessaram. Sem mesmo piscar, viu seu pai se aproximar e lhe jogar algo antes de sair e desaparecer. Ao pegar o objeto, percebeu que era úmido e macio, quando pode focalizar o que era, percebeu que era a orbita de um olho. Enquanto Bob Dylan tocava sua gaita...
Com as memórias frescas em sua mente, finalmente Cristiano se sente pronto para iniciar seu trabalho. Lentamente caminha em direção a vitrola. A mesma vitrola... E posiciona a agulha na terceira faixa do velho vinil The times they are a-changin’ de Bob Dylan.
– Me solte pelo amor de Deus! – gritou Luiz, mas Cristiano parecia não ouvir.
Calmamente segurou o cabo da inchada e se aproximou.
– Então Isaac, como se sente no lugar da vitima? – perguntou Cristiano olhando fixamente para os olhos do homem preso.
– Eu não sou Isaac, eu não conheço nenhum Isaac, você pegou o cara errado! – Luiz se debatia, mas seus membros não se soltavam.
– Ele só tinha três anos! – Cristiano levantou o objeto
– Por favor, não! – suplicou Luiz, mas o golpe desceu com força atingindo seu joelho direito quebrando o osso e cortando a pele de modo que sua rótula ficasse a mostra e solta.
Cristiano levantou os braços outra vez e atingiu um golpe no mesmo lugar, com expressão de raiva, mudou para a outra perna e a golpeou inúmeras vezes a ponto de deixar marcas na madeira causadas pelos ossos fraturados e expostos de Luiz.
– Por favor, pare! Eu te imploro!
Cristiano levantou os olhos. – Com essas mãos você torturou meu irmão! – então com toda a sua força golpeou a mão direita de sua vítima varias vezes a ponto de seus dedos ficarem disformes e em posições impossíveis de se conceber.
Nunca em toda sua vida, Luiz se quer imaginou sentir uma dor tão absurda quanto a que estava sentindo nesse momento. Sua mente divagava e se arrependia de todo e qualquer erro que viera a cometer durante todo o percurso de sua vida. Tentava segurar seu peso através dos braços presos, pois o simples bater de seu coração fazia com que suas pernas doessem de tal forma que seus olhos mal conseguiam se manter abertos, mas ainda não tinha acabado, um golpe em seu cotovelo causou outra fratura e tirou todo o apoio que podia ter nos braços.
– Pai nosso que estais no céu... – Luiz se viu apelando para a única coisa na qual podia contar.
E a vitrola não parava. “With God on our side...”
– Você fala demais Isaac! – Cristiano moveu o cabo, já marcado de sangue, pela horizontal e atingiu um golpe certeiro no maxilar de Luiz fazendo com que se deslocasse e ficasse solto causando uma imagem surrealista de um rosto humano.
O sangue já escorria para o chão, mas como o estúdio era primeiramente uma lavanderia, havia um ralo no centro, bem onde Cristiano posicionou Luiz, que levava todo o vestígio do fluido rubro para as redes de esgoto.
Já ofegante de tanto espancar sua vítima, Cristiano respirou fundo e limpou o suor da testa, logo em seguida começou a bater nas costelas do homem. Apenas alguns sons ininteligíveis saiam de sua boca junto ao sangue. Então Cristiano jogou o cabo ensangüentado no chão e pegou o martelo. Seu método é simples, com uma mão segura a cabeça da vitima e, com o martelo de lado, golpeia os ossos esfenóide e zigomático que se situam na lateral do crânio em volta da órbita do olho, com esses ossos devidamente quebrados o olho fica praticamente solto e fácil de remover.
Devido ao estado de choque em que se encontrava, Luiz mal conseguiu ter um espasmo de dor quando as marteladas o atingiram. Mas quando seu agressor se virou com uma chave de fenda e a utilizou de alavanca para retirar seu olho, gastou suas ultimas energias que lhe mantinham acordado.
Segurando como se fosse uma pedra preciosa, Cristiano levou aquela esfera que lhe fascinava tanto em suas mãos até a mesa onde preparava uma mistura química. Minuciosamente com uma lâmina, retirou cada terminação nervosa que estragava a beleza da peça e em seguida limpou toda a impureza que a sujava e se perdeu em devaneios a observá-la. “Dizem que os olhos são a janela da alma! Eu não acredito que almas existam, mas se existirem, eu não tenho uma. Minhas janelas estão abertas e iluminando o vazio.” O som da respiração de Luiz lhe mostra que ainda tem trabalho a fazer, então coloca a órbita do olho em uma caixinha preta e vagarosamente despeja um liquido transparente até a borda. “Tenho que acabar logo com isso.”
Passa pela mesa no centro e empunha a picareta.
– Depois de ser um agressor covarde você pede para morrer logo, como uma lesma mergulhada em sal que desidrata e mergulha na dor, Isaac! – então Cristiano enterrou a picareta no peito do homem que teve como ultima reação, soltar o resto de sangue que tinha.
Cristiano caminhou para traz, olhando para o corpo sem vida de Luiz, sentou-se no chão e levou as mãos ao rosto. “Isaac, mesmo sendo meu pai, você não me deixou escolha!” E tudo ficou escuro enquanto Bob Dylan terminava sua canção. “With God on our side.”
11 de Março de 2010, quinta-feira, 13h00.
O despertador toca como um chamado a luz depois de vivenciar as trevas. Ao abrir os olhos, Cristiano se depara com aquele enorme par de olhos a fitá-lo diretamente vindos de uma praia deserta. Era o enorme pôster promocional do PULSE do Pink Floyd que conseguira num arremate pela internet. “Será que foi um sonho? Será que tudo não passou de uma ilusão em minha mente?”
Imediatamente levantou-se e caminhou até seu estúdio nos fundos, ao abrir a porta viu que estava tudo como deixou. Cada instrumento estava em seu lugar, os discos, tudo limpo e organizado. Sobre a mesa, estava a pequena caixinha preta, pegou-a e saiu. Fechou a porta e olhou para o espaço de terra no quintal, viu que havia um local com um pouco de terra batida. Esboçou um leve sorriso e caminhou para um quarto da casa. Abriu uma grande gaveta de um móvel antigo, retirou cuidadosamente cada peça de roupa que lá estava até visualizar uma caixa, retirou-a cuidadosamente e a abriu.
Dentro da caixa haviam quatro cubos de acrílico, Cristiano pegou cada um e observou fascinado cada olho que conseguira desde que obteve o conhecimento necessário para iniciar sua busca. Abriu a caixinha preta que pegou no estúdio e retirou mais um cubo para sua coleção. “Seja bem vindo ao seleto grupo! Ter vocês comigo me faz bem, até o dia em que terei a melhor peça da coleção!” Ao lado dos cubos havia um caderno encapado com couro negro e as inscrições em dourado: “Notas de Zayt al-Zaj”. Pegou este caderno a saiu. “Preciso documentar o que fiz noite passada.”
Depois de algumas horas, Cristiano terminou de preparar seu “café da manhã atrasado”, preparou um segundo lugar na mesa.
– Pedro, o café está pronto! – gritou ele para o vazio da casa.
Então posicionou um prato com torradas no lugar vazio e sentou-se na ponta da mesa, pegou uma caneta e começou a escrever em seu caderno. “10 de Março de 2010, quarta-feira, 23h30...”
Então parou por um instante. – Fiz as torradas que você gosta Pedro! – disse fitando o lugar vazio na mesa – Gostei desta cidade, acho que vamos ficar por um bom tempo aqui!