NOITES DE CHUVA E VENTO - O. P. Silva
Capítulo 5
O silêncio ainda não tinha sido quebrado, depois da barulhenta chegada do Emílio e do Francisco a casa do Tio António.
Os três personagens aqueciam-se junto ao crepitante fogo da lareira, estendendo as mãos sobre o lume, tentando acelerar a circulação do sangue, quase paralisada pelo frio cortante.
- Ora, amigos, estamos no último serão em que vos explicarei certas crenças sobre histórias de fantasmas, etc. É claro que muita coisa fica por dizer, mas também, se Deus quiser, não há-de ser esta a derradeira vez que nos encontraremos aqui a conversar: “Nalgumas localidades aqui na ilha, - começou o Tio António a contar – como Juncal, Porto Judeu, Porto Martins, São Mateus, Terra-Chã e Vale Linhares, acreditam que o diabo aparece altas horas da noite nos caminhos e encruzilhadas, transformado em cão ou em gato preto. Houve, nesta ilha, um culto bastante intenso a São Bartolomeu, praticado especialmente pelos que se achavam possuídos do demónio, porque, segundo a lenda, Deus conferiu-lhe o poder de afastar o diabo das pessoas. São Bartolomeu é o padroeiro da freguesia do mesmo nome, cuja imagem representa segura numa das mãos, uma faca – símbolo do seu martírio – e tem, junto aos pés, o diabo acorrentado. De acordo com as “benzedeiras” iam às terças e sextas-feiras à Igreja de São Bartolomeu vender o diabo, e colocavam moedas de vintém, aos pés do santo. Depois vinham para o Adro e andavam em círculos com as mãos atrás das costas, para que o inimigo os abandonasse. Esta prática não desapareceu totalmente dos nossos hábitos, porque ainda hoje, quando um espírito ruim ou diabólico pertuba a casa ou a vida duma pessoa, as mulheres de virtude, mandam o paciente à Igreja de São Bartolomeu vender o espírito maligno ou diabólico. Leva-se trinta dinheiros pequenos (número de moedas correspondentes às que Judas vendeu Jesus Cristo) e colocam-se no altar-mor, aos pés da imagem, dizendo – Aqui te venho entregar, / Senhor São Bartolomeu, / Trinta dinheiros, /Para eu vender e revender o diabo, / Para ele não ter parte em mim, / Nem em nada que me pertença.
- Ò Tio António, isto é assustador! – exclamou Emílio.
-È sim. – Continuou o Tio António. – Já ouviram falar dos redemoinhos, não é verdade? Pois quando aparece um redemoinho de vento, a que o povo chama roda-de-vento, acredita-se que nele anda o diabo ou qualquer coisa ruim. Há inúmeros ditos e objectos relacionados com o diabo, sendo estes os mais conhecidos e divulgados entre nós: o espelho tem parte com o diabo, por isso não é bom ninguém ver-se ao espelho à noite, principalmente entre as onze horas e a meia-noite, porque aparece outra cara junto de quem se vê; quem fala sozinho, fala com o diabo; assobiar das onze horas para a meia-noite é chamar pelo demónio; não se deve olhar para trás numa encruzilhada, à meia-noite, porque aparece um cão ou gato disfarçado de diabo; diz-se que o dedo mindinho adivinha; não deve ir um homem entre um casal porque é o demónio que vai no meio; quem joga às cartas só, joga com o diabo; o diabo tem mais medo dos homens do que das mulheres; para afastar qualquer azar ou mau agouro, diz-se “cruzes, canhotos” e bate-se três vezes com a mão fechada sobre qualquer coisa; quem passar entre as onze horas e o meio-dia ou das onze para a meia-noite debaixo duma figueira fica possesso do diabo; ninguém deve olhar de noite para a própria sombra porque vê o diabo.
- Ò Tio António, mas isto é incrível!
- Sim, mas continuemos. Vamos falar agora de “Pesadelos”. É segundo alguns, é atribuído a um ser invisível (demónio) que se senta sobre o peito de quem dorme e tapa-lhe a respiração naquele momento. Outros creêm que é causado pela alma duma criança que morreu sem ter sido baptizada, a qual tem um furo na palma da mão. A pessoa que for atacada pelo pesadelo grita que esfalfa, mas não acorda nem ninguém a ouve gritar. No continente, diz-se que o pesadelo é o diabo que vem com uma carapuça e com uma mão muito pesada. Quando a gente dorme com a barriga para o ar, o pesadelo põe a mão no peito de quem dorme e não deixa gritar. Quem conseguir agarrar no pesadelo e o meter no talhão da água ficará rico. Esta crença relaciona-se com outra Valongo que diz: “Se alguém lhe pudesse agarrar na carapuça, ele fugia para o telhado, e era obrigado a dar quanto dinheiro lhe pedissem, enquanto lhe não restituíssem a carapuça! Nalgumas localidades, como na Casa da Ribeira, Fontinhas, Cabo da Praia e Ribeirinha, dizem que se o pesadelo não tivesse um buraco na da mão, o dorminhoco morria asfixiado.”
- Agora vamos descansar, que já é tarde. Boa noite e até amanhã.
- Boa noite, Tio António.
- Até amanhã se Deus quiser.
FIM