NOITES DE CHUVA E VENTO - O. P. Silva

Capítulo 4

Já a última badalada anunciando as oito horas da noite havia soado há muito, no relógio da torre da igreja, quando o Emílio e o Francisco bateram à porta do Tio António.

Bem chegadinhos ao lume da lareira – estava muito fria aquela noite e chovia muito – os rapazes, instalados nos seus bancos, esperavam que o velhote se acomodasse à vontade na velha cadeira de carvalho, relíquia da família.

- Ora bem, amigos – começou o Tio António – esta noite vou contar algumas histórias sobre Diabretes, que são demónios que vivem seis meses no mar e seis no mato. Os Diabretes saem do mar no dia da Senhora das Candeias (2 de Fevereiro) entre as onze horas e a meia-noite e regressam no dia de São Bartolomeu (23 de Agosto) com algumas diferenças em algumas freguesias. Se os diabretes saem do mar quando está manso, ele ficará bravo. Há várias versões, variando conforme a freguesia. Diz-se que o diabrete se assemelha, no trajo, a um homem do povo (pescador ou camponês) que calça botas de cano e veste roupas de lã grossas. Os diabretes saem do mar e seguem por canadas ou ribeiras, arrastando correntes de ferro que ferem lume e soltam um barulho infernal. No dia a seguir ao das Candeias, as mulheres que iam de manhã lavar roupa para a ribeira encontravam galhos de árvores, partidos. Sinal que os diabretes tinham passado por ali. Até há um lugar muito conhecido, é a Canada dos Diabretes, curato da freguesia de São Pedro, Angra do Heroísmo. Esta Canada, sem acesso numa das extremidades, é uma ramificação da Canada dos Folhadais, e confronta a Sul com a Quinta de Ezequiel Barcelos. Segundo a tradição, os diabretes saíam do mar, no lugar da Aberta (Caminho de Baixo), seguiam pela Canada da Luz e do Celes até São Carlos, onde atravessavam a Quinta do Ezequiel, saindo na Canada dos Diabretes. O nome desta Canada, tem origem num roubo de animais, ocorrido numa das noites da passagem dos Diabretes, o qual nunca foi descoberto, tendo alguém dito por graça: “Ah! Isso foi os diabretes.” (freguesia de Terra-Chã). Quem não soubesse ler, tocar viola ou rezar, se fosse, na noite dos diabretes, entre as onze e a meia-noite, a uma ribeira com um livro, uma viola ou um catecismo, aprendia na mesma ocasião. (Doze Ribeiras). Na Noite das Candeias, os pescadores não iam ao mar, porque os diabretes punham os corninhos fora da água e comiam o peixe que vinha preso no anzol. Ninguém saía de casa nessa noite, com medo. As pessoas trancavam as portas e as janelas, pendurando atrás destas, objectos mágicos, como ferraduras, facas com cabo de veado, chaves machos, etc.

- Ò Tio António – interrompeu Emílio. – Conta-nos alguns casos.

- Está bem! Vou contar um, sobre um pescador. “Duma vez, um homem foi, de noite, pescar para o calhau do mar, mas nunca se lembrou que era a noite da Senhora das Candeias. Estava a pescar e viu um leitão a nadar. Ele deitou-lhe a mão e foi o pôr em cima da rocha, pensando que ele tivesse caído ao mar. Olha para trás e vê muitos leitões a nadar junto ao calhau. Foi então que se lembrou que era a noite dos fariseus saírem ao mar. E não quis saber de pescar mais, agarrou nas canas e foi para casa.”

- Ò Tio António, o que o senhor acaba de contar é verdade? – Duvidou Emílio.

- É verdade. É contado pelos antigos, na freguesia da Agualva. Mas, vamos ao segundo caso.” Uma velhota estava à porta da sua casa a fiar linho à luz da lua, na noite das Candeias. Passou um homem e pediu-lhe para ela guardar as suas botas, que à volta para baixo ia lá buscá-las. A mulher pegou nas botas e arrumou-as. Passou-se um mês, passou-se dois, e nada do homem aparecer. E ela pega nelas e calçou-as. Ao fim de meses, o homem foi buscar as botas. E ela disse assim: - Ò senhor, eu tenho andado com elas calçadas, porque pensei que o senhor se tivesse esquecido delas… Ele disse: - Pois, então, a senhora andou com as botas do diabo!...” Este caso, diz-se que passou-se nos Altares. Vou contar outra que se passou também nessa freguesia. “No Dia da Senhora das Candeias, uma velhota saiu de casa para ir a uma missa que havia de madrugada nalgum tempo. Mas como ela não tinha relógio, foi muito cedo e sentou-se à porta da Igreja à espera da hora. Às tantas, passa um homem com um cesto de abóboras às costas e perguntou-lhe: - A senhora quer comprar abóboras? – Responde ela: - Ai que lindas abóboras que o senhor tem aí. - A mulher vai e compra uma. E, quando o homem virou as costas, a abóbora tornou-se uma caveira. Ela contou ao senhor padre e ele disse assim: - A senhora tem que voltar cá para o ano, no mesmo dia, mas traga consigo uma criança de peito para poder entregar a caveira e não lhe acontecer nada.” A mulher assim fez. Nesse dia, levou a criança ao colo e sentou-se à porta da Igreja. Nisto, passa o homem com os cestos das abóboras e torna a dizer: “A senhora quer comprar abóboras?” – Ela diz assim: “Eu não quero comprar. O que eu quero é dar-te com esta, pela cara fora, grande atrevido.” – Ela diz: “Pois a tua salvação é teres essa criança contigo, senão ias agora comigo, para o mar,” O homem era um fariseu disfarçado de vendedor.

- Ò Tio António, parece histórias de terror.

- Sim, pois vou-te contar a última. Presta atenção a esta: “Ao pé de uma ribeira, havia uma casa que tinha uma mulher a fiar à lua, na noite das Candeias. Ela estava ali entretida e, às tantas, sentiu muito barulho de correntes a arrastar por ali abaixo. Nisto, sai um homem da ribeira e disse-lhe: - A senhora guarda-me estas botas, que eu à volta para baixo pego nelas. – O homem meteu-se na ribeira e desapareceu. Ela dá em reparar para as botas e viu que eram umas canelas dum defunto. No outro dia, foi-se confessar e o senhor padre disse: - Olha, quando for o tal dia que eles passarem para baixo para levar as botas, assim que ele entrar em tua casa, pegas na criança ao colo (essa mulher tinha uma criança de peito) que eles vão-se logo embora. – Nesse dia, o homem bateu à porta e a mulher foi abrir, mas ele não queria as canelas, queria era levá-la consigo. Ela foi depressa ao berço, pegou na criança ao colo e ele disse: - O que te valeu foi essa criança que tens aí ao peito. Senão ias já comigo.” Aconteceu na freguesia dos Biscoitos. E pronto, meninos. Toca a enfiar os gabões e a agasalharem-se bem, que a noite está fria. E até amanhã!

- Até amanhã se Deus quiser, Tio António – despediram-se ambos os rapazes ao saírem.

OP Silva
Enviado por OP Silva em 30/06/2010
Código do texto: T2350223