Redenção, Caminho Para o Paraíso (Capítulo 2)
Magnus estava esperando por Erakel havia mais de uma hora. Estava acostumado com os atrasos do amigo, e também gostava de ficar a sós, aguardando. Não havia pessoas na rua, a praça estava deserta. Preferia marcar encontros nesses horários, embora nem mesmo ele soubesse o real motivo, mas gostava de pensar que era porque os mortais estariam cansados demais para reparar no que acontecia nas ruas, nas estranhas conversas.
A Praça da Estação ficava ao lado do Museu da Estação Ferroviária, onde dormia a famosa Maria Fumaça. Tinha alguns bancos espalhados, canteiros de árvores, e uma banca de sorvetes. Era caminho para se chegar a uma das mais famosas Igrejas da cidade, senão a mais famosa, além de ter caminhos para outros pontos, como o cinema e a Santa Casa.
Distraidamente, Magnus começou a caminhar em torno da praça, parando hora de um lado, hora de outro, até que viu um jovem casal vindo pela rua. Aparentemente, elas estavam saindo da Rua do Teatro Municipal, um de seus locais prediletos desde que havia caído. Olhou ternamente para o casal, e os cumprimentou paternalmente quando passaram por ele, mas não pode deixar de notar o olhar desconfiado da garota, e os ciúmes mal escondidos de seu acompanhante.
_Como vai Magnus? _ ouviu Erakel dizer _ Me desculpe pelo atraso. Perdi-me novamente em meus pensamentos enquanto estava vindo para cá.
_Não se preocupe, já estou acostumado com os seus atrasos _disse, sem nem mesmo olhar para Erakel.
_Não sei se admiro ou odeio sua sinceridade exagerada, Magnus. Ainda não aprendeu que isso pode ser um tanto quanto inconveniente às vezes?
_Me perdoe, não era minha intenção lhe ofender, caro amigo _ disse, virando-se para Erakel e deixando-se pegar com uma lágrima de sangue no rosto. Era outra da marca dos caídos, suas lágrimas eram sempre de puro sangue.
Erakel já tinha presenciado cena parecida antes, e sabia o motivo da lágrima do amigo. Saudades. Sentimento que está, aos poucos, aprendendo a superar, mas que, de qualquer forma, dói mais do que qualquer outra ferida no mundo.
_Está tudo bem Magnus? _perguntou, mesmo já conhecendo a resposta que o amigo lhe daria.
_Claro, apenas me lembrei de Isabela... aquela garota me lembrou bastante ela...
_E você tem a visto ultimamente? _perguntou, mas se arrependeu logo em seguida, quando viu os olhos de seu amigo perder o brilho.
_Não, já faz quase três meses que não a vejo, nem mesmo sei por onde ela anda...
_Mas por que você não...
_Chega Erakel _ interrompeu Magnus _ não viemos aqui para falar dos meus problemas, mas sim dos seus.
_Claro, me perdoe por isso, não queria lhe causar mais sofrimento do que já tem...
Erakel olhava preocupado para o amigo. Sabia que ele já não era mais a criatura que costumava ser. A queda causou nele tanta dor e sofrimento que às vezes chegava a se perguntar se não estaria fazendo um favor para o amigo se o destruísse de vez.
Magnus era branco, bem branco, como se fosse pálido por alguma doença. Tinha curtos cabelos castanhos, que viviam espetados como espinhos, era alto, e, como lembranças das dores causadas por Isabela, tinha uma estranha marca na cabeça, de leve tom roxo, escondida na nuca, quase imperceptível. Podia facilmente usar seus poderes e regenerar aquela marca, mas preferia continuar com ela, para sempre se lembrar de seus erros e da traição da mulher que amava.
_Consegui achar informações sobre o seu assassino _ disse, interrompendo os pensamentos de Erakel.
_Mas tem certeza de que é ele mesmo? Não está enganado ou sendo enganado? _ perguntou, mal escondendo a excitação e a ansiedade. Acendeu um cigarro, para tentar disfarçar. Havia pegado o vício há não mais de um ano.
_Não sabia que você já tinha se entregado a tantos sentimentos humanos assim Erakel. Se pretende um dia voltar a cidade de Prata é melhor começar a abrir mão deles.
_Voltar a Cidade de Prata? Depois de tudo o que aconteceu? Você acha mesmo que vamos conseguir o perdão divino, Magnus? Nós abrimos mão de nossa fé para vivermos aqui. Fomos expulsos do céu, marcados como demônios. Como acha que poderemos voltar a Cidade de Prata?
_Você pode ter perdido a fé em Demiurgo, meu amigo, mas Ele não perdeu a fé em você. Eu posso estar sendo punido agora, mas sei que serei perdoado, e poderei voltar novamente à Cidade de Prata, me reencontrar com meus amigos, voltar a trabalhar como mensageiro de Demiurgo.
Erakel podia perceber uma esperança sincera nas palavras de Magnus. Uma esperança tão sincera que, por alguns instantes, conseguiu até mesmo tocar seu coração, reavivar uma chama que há tempos julgava morta. Não havia, na verdade, perdido a fé em Demiurgo, como o amigo acusava, mas sim em seus subordinados. Havia perdido sua fé e sua esperança em toda a Cidade de Prata.
_Magnus, você sempre foi um anjo virtuoso, um dos mais virtuosos que eu já conheci. Se você realmente acredita que pode voltar, siga em frente. Não abra mão disso. Mas eu garanto que eu não vou voltar, eu quero a minha vingança. O desgraçado que matou Amanda vai pagar caro pelo que ele fez, e prometo aos céus que não descansarei em paz enquanto não vingar o meu amor!
_Erakel, você realmente acha que é isso o que Amanda quer? Que ela deseja vingança? Se não me engano, você prometeu a ela que voltaria para o céu e pediria pessoalmente ao nosso Pai que protegesse essa cidade que ela tanto amava. Como espera fazer isso se deixando levar pelos caminhos do pecado dessa forma?
Erakel nem mesmo ousou responder. Magnus havia tocado em uma ferida aberta e muito dolorida, da qual fazia o possível para fugir. Sabia que as palavras do amigo eram sinceras, sabia que ele acreditava no que dizia. Mas sabia também que não poderia descansar em paz sabendo que o assassino da única criatura que ele amava, além de seu próprio criador, estava impune perante seus crimes. Não, isso era intolerável, era inadmissível. Não importa o que o amigo dissesse, descobriria a identidade do desgraçado e o faria pagar por isso. Mesmo que isso o afastasse cada vez mais da promessa que havia feito a Amanda.
_Já basta de sermões por hoje Magnus. Me diga o que descobriu, e vamos deixar o resto com o destino, como os humanos gostam de dizer.
_Tudo bem _ disse, com um suspiro, sabendo que estava deixando o amigo ir por um caminho sem volta. Mas não podia culpá-lo, sabia como se sentia, pois, às vezes, tinha o mesmo desejo de vingança.
_O nome do assassino eu não descobri ao certo, mas se trata de um demônio.
_Um demônio? _ Perguntou Erakel, surpreso com as palavras do amigo.
_Sim, um anjo caído, mas que se entregou totalmente ao inferno. Mas não é só isso. Você caiu porque matou um humano, não foi? Para proteger a sua amada?
_Sim, mas o que tem isso a ver com esse maldito?
_Bem, você o matou, pegou Amanda e saiu do lugar correto?
_Sim _ podia se lembrar com perfeição daquele dia, o dia em que se apresentou ao seu amor.
"Amanda estava andando tranqüilamente por uma rua estreita e deserta, em um dia de domingo. Ainda era cedo, pouco mais de nove horas da noite. Erakel estava lá, perto dela, a vigiando, observando, protegendo. Permanecia invisível perto de sua amaná, pois as leis da Cidade de Prata, seu antigo lar, impedia que se revelasse.
Percebeu quando aquele estranho se aproximou de Amanda, e a cercou. Usava pesadas roupas negras, uma touca e óculos escuros. Não dava para identificar quem era, ou mesmo o sexo que era. Erakel julgava ser um homem pela forma de se mover e agir. Sacou uma faca do bolso, mais parecida com um punhal, com alguns entalhes que Erakel pouco se preocupou em perceber.
Quando percebeu que o homem se aproximava de sua amada com intenções de lhe causar dor e sofrimento, talvez até mesmo a morte, Erakel saiu de sua invisibilidade, e atacou o agressor. Nesta hora, ainda usava as vestes comum a anjos da Cidade de Prata, uma espécie de túnica branca, ornada com bordados dourados e símbolos sagrados.
Estava tão tomado pela fúria da situação, que nem mesmo mediu a força de seus golpes, ou mesmo os pontos em que atingia. Conjurou sua espada sagrada, um de seus poderes naturais, e atacou o agressor. Só voltou a si novamente quando percebeu o sangue escorrendo pela sua espada: havia matado o agressor.
As leis mais sagradas da Cidade de Prata era conhecida pelos mortais como os 10 Mandamentos da Lei de Deus, e um deles era não matar. Havia matado, e a punição para tal violação era a queda.
Sentiu como se as chamas do Inferno queimassem seu corpo, a agonia do sofrimento, a ira de Demiurgo. Estava condenado ao Inferno, expulso da Cidade de Prata. Sentiu a luz sagrada que o envolvia desaparecer, suas asas serem manchadas com o sangue do homem que matara. Estava expulso dos céus, mas ainda havia Amanda.
Olhou para sua amada, e viu que ela estava atônita diante de tudo o que acntecera. Havia sido salva por um anjo, um anjo da guarda. Deixou que o anjo a pegasse no colo, e a levasse dali, voando com suas asas para um lugar onde pudesse estar segura. Desde esse momento, havia se apaixonado, como nunca antes em sua vida. Havia se apaixonado por um anjo."
_Bom, acontece que aquele humano era, na verdade, servo desse demônio, que dedicou anos planejando uma vingança contra você.
_Mas... então quer dizer que...
_Sim, ele apenas fez o que você está louco para fazer agora. Ele apenas buscou por vingança.
Nesse momento, Erakel perdeu o controle sobre si mesmo, sobre suas emoções, seus sentimentos. Não sabia para onde olhar, o que fazer, onde se esconder. Era por isso que o amigo estava tentando faze-lo desistir da vingança, porque já conhecia a verdade. Como poderia, agora, pensar em vingança, sendo ele o responsável por toda aquela tragédia?
_Erakel, você está bem? _perguntou Magnus, preocupado com o amigo.
_Estou, estou...
_O que você vai fazer agora? Ainda quer vingança?
_Como eu poderia me vingar, sendo que eu fui o responsável por toda essa tragédia?
_Não Erakel, não foi culpa sua. Aquele homem tentou matar sua amada, tentou estupra-la, você apenas a protegeu.
_É verdade, não foi minha culpa, ele tentou matar um inocente, era um pecador, merecia ser punido. Mas matei um homem, não fui capaz de conter a minha raiva, minhas emoções, o que é errado. Fui banido do céu por isso...
_Mas, Erakel, aquele demônio não matou apenas Amanda, como também várias outras garotas, e vai continuar matando até alcançar seus objetivos.
_Mas se era apenas vingança que ele buscava, ele alcançou.
_Mas a vingança dele não se resume apenas a você Erakel, mas a proporções muito maiores. Talvez você nem mesmo seja o alvo principal da vingança desse demônio.
_Então você está me propondo que cumpra a minha vingança e mate o desgraçado?
_Não Erakel, muito pelo contrário, quero que você desista de sua vingança, que o cace apenas para cumprir a promessa que fez a Amanda e em nome de Demiurgo.
Erakel estava confuso, mais confuso do que jamais se sentira antes. Um demônio havia matado o amor da sua vida porque queria se vingar. Mas se essa vingança não era apenas contra ele, contra quem era? E por que o envolvia?
Não havia escolha, estava mais uma vez envolvido em uma batalha divina. Voltaria a matar em nome de Demiurgo, mas desta vez seria diferente. Se aceitasse não seria apenas em nome de Demiurgo, mas também seria pessoal.
_Vou pensar Magnus, vou pensar. Ainda não sei se me envolverei na batalha ou não, mas prometo que vou pensar.
_Tem mais uma coisa que ainda não lhe contei Erakel...
_Diga logo então, pois quero ir para casa e pensar no que farei.
_O demônio está com a alma imortal de Amanda em seu poder.
_O que? Você tem certeza do que acaba de me dizer? _ Erakel já podia começar a sentir a raiva crescendo dentro de si.
_Absoluta. Sinto muito Erakel...
_Aquele desgraçado vai pagar caro por isso, e nem mesmo os céus vão me impedir de achar o desgraçado e puni-lo por isso! _ Erakel esbravejava. Magnus podia sentir o tamanho do ódio que crescia dentro do amigo, e se assustou com isso. Não desejava estar na pele de seu inimigo.
_Não precisa procurar muito então Erakel, pois ele está na cidade.
_Muito obrigado pelas informações Magnus, e espero poder contar com sua ajuda na batalha.
_Claro que poderá Erakel, mas pense muito bem antes de entrar em conflito com esse demônio. Se você for por motivos pessoais e pecar mais do que as marcas que já tem, mesmo que a salve, jamais poderá ficar junto dela novamente.
_Eu sei disso, vou pensar no que fazer. Até lá, tente descobrir que demônio é este, pois já nos poupará o esforço de procurar por todos os demônios residentes na cidade.
Neste momento, uma brisa suave e triste passou por entre Erakel e Magnus, e ambos tiveram a impressão de estarem prestes a tomar as mais difíceis decisões de suas vidas muito em breve. Uma guerra sagrada estava prestes a começar, e a cidade de São João Del rei seria o seu campo de batalha. Poderia não ser uma guerra que envolvesse todo o Céu e todo o Inferno, mas envolvia sentimentos, e essas batalhas são sempre as piores e mais cruéis.
Erakel despediu-se de Magnus sem mais formalidades, verificou se não havia mais ninguém nas proximidades. Saiu, caminhando lentamente, e dirigiu-se para casa. Estava cansado, confuso, indeciso. Fingiu que não havia percebido, mas ouviu claramente as palavras de Magnus quando estava indo embora.
_Vá em paz meu amigo, e que Demiurgo esteja sempre com você.
Por um breve momento, Erakel desejou, sinceramente, que Magnus estivesse com a razão, e que Demiurgo estivesse mais uma vez olhando para ele, pois estava prestes a decidir entre vingar-se ou redmir-se. Rezou silenciosamente, pois sabia que demiurgo poderia ouvi-lo, pedindo auxílio na decisão que precisaria tomar, pois essa escolha poderia custar a alma de Amanda.