APARELHO PSÍQUICO
APARELHO PSÍQUICO
[...] Sentado em frente ao espelho, observa o reflexo de sua face jocosa e ao contrário do que fazem todas as pessoas quando o vêem assim, ele não sorri. Vida dura a de ajudante de palhaço. Esta noite foram, ao todo, vinte tortas na cara. Vinte tortas na cara para um público de vinte pessoas. Mais lugares vazios que cheios. Não é de se estranhar. O espaço onde se erguera o circo era totalmente desprovido de atrativos. Uma lona erguida sobre um terreno baldio concedido pela prefeitura do município junto à promessa de um “incentivo partidário à administração local”.
Canalhas, tomem lá seus mais vinte votos, pensava!
Acompanhava sua verve a dor pungente. Mas, ali, sentado, sentia-se confortável. O único lugar do mundo em que se sentia assim. E isso importava. Sozinho, como de costume, retira a maquiagem e contempla o silêncio. Silencio? Nesse momento o ajudante de palhaço pensa em como a platéia realmente anda ausente. Ou talvez nunca houvesse em seu número um grande público.
Um corpo humano vivo está realmente sozinho quando ao lado de um corpo humano morto?Um sorriso doentio, nesse momento, lhe atravessa o rosto. Permitia-se um último gracejo antes do fim. O ajudante de palhaço não consegue mais alegrar-se, sente uma sensação de desconexão com o mundo a sua volta e demonstra um comportamento agressivo sempre que lhe tomam por louco. Julgava-se vítima. Sim, vítima, e não cabia censurar-se pela última insanidade que causara. Sente a dor da inutilidade, como uma sombra em um beco escuro, solitário, vazio. O rosto refletido no espelho expressa uma fisionomia desgostosa como de alguém que se cansara de se sentir humilhado. O gosto amargo de creme de chantilly lhe derrete a garganta como ácido sulfúrico. Via em tudo aquilo algo pior do que a morte. Sua alma está árida como um deserto sem fim. Engolir carvão em brasa, cortar os pulsos e assistir a coagulação de seu sangue o deixando, um lado da corda a enlaçar o galho da arvore e a outra envolta a seu pescoço. Morte que ocorre pela quebra das vértebras da coluna cervical e da secção da medula espinhal provocando a tão desejada parada respiratória. Idéias, idéias, idéias. Na verdade, se formava em sua mente opções estratégicas para uma fuga rápida. Poderia escapar, enfim, do olhar inquisitivo e de acusação de seu reflexo no espelho. Naquela noite já experimentara o sabor da morte, poderia experimentar outra vez...
Está sentado em frente a um espelho plano quebrado e com máculas em toda sua superfície. A luz fraca que entra por um talho feito na lona é tão somente a da lua. Ao seu lado, vê-se uma boneca de pano jogada em um canto qualquer. Por sobre a mesa há uma cartola e um baralho. De baixo da mesa há um baú com o cadáver de uma garotinha de nove anos. Parece ter sido atirada desajeitadamente ali, deixando seus pequenos braços e pernas expostos a pingar seu sangue no improvisado assoalho, estando envolta, agora, a uma poça vermelha hedionda.
Ele se sentia frustrado. Ele se enlambuzava de tortas. Ele a vira na platéia, sorrira para ela e depois lhe convidara a conhecer a vida circense. Ele lhe cortou os pulsos, lhe tapou os gritos e ficou aguardando o fluxo da consciência lhe consumir...
Se achava vivendo em meio aos mortos e tudo para ele se desfalecia. Aquele espelho. Honesto espelho. Naquele momento expunha toda sua alma...
Watson Cortez