A MALDIÇÃO DA ROSA RUBRA

Nota: O texto também se encontra publicado no blog FC vs Realidade: http://realidadefc.wordpress.com/2010/06/14/a-maldicao-da-rosa-rubra/

Por: Larissa Caruso

Uma garoa fina caía dos céus, compartilhando a dor do luto em um choro silencioso. O brilho da lua cheia, ofuscado pelas densas nuvens, tornava a noite ainda mais triste. As luzes da cidade transformavam as poucas silhuetas que ainda circulavam as ruas, em coadjuvantes de um mundo escuro e vazio.

12 de Junho. Aquele era um dia de alegria para todos os que compartilhavam as mais intensas emoções dos seres humanos. Casais do Brasil inteiro comemoravam o Dia dos Namorados com seus amados e amadas, demonstrando a importância que possuíam em suas vidas. Entretanto, nem todos celebravam esse dia com felicidade em seus corações.

O homem de cabelos loiros espetados caminhava na calçada da Avenida Doutor Arnaldo, com a cabeça baixa. Seus olhos caramelados focavam no chão, sem o brilho costumeiro que conquistava aqueles a quem fitava. Os lábios avermelhados e finos mantinham-se colados um ao outro, em uma pequena linha de apatia e tristeza. Sua aura, normalmente repleta de carisma e confiança, exalava miséria e arrependimento.

Com as mãos sujas de lama, ele continuava seu caminho, indiferente ao mundo que o rodeava. A rosa rubra, já havia sido deixada para trás, e desta vez, seria a última que lhe daria.

Todos os anos, no Dia dos Namorados, ele alcançava o portão da casa de sua amada e sorrateiramente, deixava uma rosa no peitoril da janela. Não escrevia nenhum bilhete, nem assinava seu nome. Não era preciso. Imediatamente após dar-lhe este presente, ele, escondido dentre as sombras, a via pegando-a e tocando suas delicadas pétalas enquanto fitava a noite com um sorriso. Existia uma conexão forte entre eles, que, apesar do tempo, não havia enfraquecido.

Sempre que podia, ele a observava, procurando não interferir em sua vida. Adorava ver seu olhar meigo enquanto cuidava dos pequeninos, o jeito paciente de tratar aqueles a quem amava. Possuía uma infinita aura de bondade e ternura, capaz de encantar até mesmo o mais frígido dos homens. Era prova disso. Ela o conquistara, fora capaz de reviver seu coração morto.

Apesar da vontade de estar ao seu lado, sabia que nunca poderia ter lhe proporcionado toda aquela alegria. Com ele, seria forçada a uma vida miserável e sombria. Sofreriam com as imposições do mundo e de sua condição. Não veria o brilho em seu semblante ao receber o carinho daqueles que compartilhavam seu sangue, a linhagem de sua família.

Em um pensamento egoísta, condenou-se por deixá-la ir. Não estaria nessa situação se tivesse insistido para que permanecessem juntos. Ainda seria capaz de senti-la em seus braços, saborear a doçura dos beijos roubados, ouvir aquela voz melódica chamando por seu nome... Antes de a vida tomar aquela para quem dera seu coração, sentia-se contente por poder vê-la trilhando seu próprio caminho. Agora, nem mesmo poderia fitá-la às escondidas, aproveitando-se de uma felicidade que não lhe pertencia. Com sua morte, não possuía mais nenhuma razão para vagar no mundo.

Um grito gutural escapou sua garganta e, apoiando-se contra a parede branca do cemitério, olhou para o céu em um pedido silencioso de misericórdia. O terno negro, coberto de barro, parecia refletir a culpa que sentia. Apesar de não querer mais reviver os momentos que havia passado há pouco, as memórias continuavam a reprisar em sua mente, atormentando-o.

Sua própria figura ajoelhada no chão, espalhando a terra molhada para os lados. Em frenesi, cavava aquele buraco imundo, a procura de uma saída, uma solução.

Levou as mãos ao rosto, deixando que lama escorresse sob sua pele alva e macia. A chuva imitava as lágrimas incapazes de brotar de seus olhos secos, complementando os dolorosos soluços que saíam de seus lábios.

Com facilidade, retirou a caixa de madeira envernizada de dentro do buraco que abriu. Jogou a tampa para longe, espatifando-a contra o tronco de uma árvore.

O odor de morte ainda impregnava suas narinas. A expressão vazia no rosto de sua amada causava-lhe dor. A palidez mórbida lembrava-lhe que aquele coração já não pulsava mais com a sede da vida. Lembrava-lhe de si mesmo.

Vendo seu corpo inerte, levantou-a em seus braços e levou-a próximo de seu tórax. Suplicando a quem quer que o ouvisse para que lhe concedesse aquele pedido, ele beijou seus lábios frios e sem sabor.

Todos os anos, ele aguardava aquele dia, o momento em que lhe entregava a rosa rubra. Sentia-se bem humorado, com o coração preenchido pelo afeto que possuía pela mulher. As cores retornavam ao mundo, tudo se tornava mais belo. Desde que decidira deixá-la, quando completou 21 anos, continuara a demonstrar seu carinho através daquela singela flor anual.

Rasgando seu próprio punho, alimentou-a com o sangue negro que corria em suas veias. Imóvel, observou-a, esperando por algum tipo de reação.

A pele de sua amada, já corroída pela ação do tempo, contrastava com a beleza daquele ser, que nunca deixaria de possuir a aparência angelical de seus vinte anos. Sabia que, devido à sua escolha, algum dia teria de encarar sua morte, mas sempre deixava aqueles pensamentos de lado, convencendo-se que se prepararia no ano seguinte.

Continuou inerte após a segunda ou a terceira tentativa em revivê-la com seu sangue. Gritou em dor e angústia ao perceber que nada poderia fazer.

Seu poder e imortalidade de nada foram capazes. Eram uma maldição, só isso. Eles o fariam lembrar até o fim dos tempos que havia encontrado sua alma gêmea e a deixado ir.

Com rapidez, devolveu-a ao seu descanso mortal, restaurando o imaculado espaço que destruíra em seu descontrole. Suspirando, plantou um leve beijo na flor que fora o símbolo de seu amor e despedaçando-a, jogou suas pétalas sobre a terra molhada. Levantando-se, deu às costas a lápide simples de concreto que adornava o túmulo, sem ler a doce inscrição deixada por sua família. ‘Aqui jaz Maria Helena Soares. Amada esposa, mãe e avó - 1933-2010’

Mesmo agora, quando estava disposto a trazê-la para seu lado, concedendo-lhe imortalidade apesar de sua aparência decadente, esse pedido lhe fora negado. A morte a levara para longe, ignorando o sofrimento causado naquele ser da noite. Só lhe restava perdurar tal punição, deixando que o coração que um dia voltara a bater por causa do amor de uma humana, apodrecesse novamente.

Nunca mais cometeria o mesmo erro. Jamais permitiria que olhares de cumplicidade e romance cruzassem os seus. O dia 12 de Junho, a partir de então, tornar-se-ia amaldiçoado. Transformaria todo o amor em miséria. Deixaria pétalas rubras em todo o mal que causasse. Ninguém escaparia. Compartilharia seu sofrimento com o mundo, da forma mais íntima possível: ele os faria sentir a perda na pele.

Larissa Caruso
Enviado por Larissa Caruso em 14/06/2010
Código do texto: T2319612
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