Poço dos Desejos
e até hoje não se sabe o que acontecera comigo na noite daquele dia, só sei que beirava a meia noite, ainda não se ouvia galos ladrando, somente o sólido turvo noturno me consumia. Sólido turvo, como interpreto a energia que a escuridão traz, são como paredes de barro a me isolar de todas as dimensões, onde somente há medo e dúvida. Repentinamente o céu ficara marrom, pinceladas douradas lhe encobrem horizontes, ascende uma luz marrom, e tudo começa a se movimentar, gritos, grasnos, Tum Tum Tum graspes, graspes sufocam a mente, só me resta o desmaio e a agonia de pesadelos.
(***)
As horas se retraem à vida campônia.
Merodeando, mãos dadas, e de repente me encontro ao seu lado em passeios ladeando velhas chácaras. Seu vestido comprido, chegando aos pés, lilás perpassado pela luz crepuscular, seu rabo de cavalo balangava ao vento daquela montanha, víamos o mundo ao redor ficar cada vez mais invisível à luz que esmaecia lentamente.
Na calada da tarde os rostos adquirem um tom de palidez espectral, um tom sombrio, a única hora do dia em que o nosso lado fantasmagórico é visível, é curioso notar que todas as pessoas parecem sombrias às tardes, todas as mulheres, monalisas àquela hora.
Com custo, percebi que aquela poder-se-ia dizer minha.
Como houvera de havê-la conhecido?
Todas as respostas me vinham à mente como em intuição. Éramos amigos de infância, líamos os mesmos livros, freqüentávamos as mesmas festas... Até que decidimos nos casar; não namoramos, não nos preparamos com encontros casuais, serestas, flores e coraçõezinhos pintados em árvores.
Nossos amigos nos aconselhavam: “casamento é prisão, melhor vocês curtirem a vida como estão, pode ser o prenúncio do fim de uma grande amizade”.
Casamos.
Pelo que intuía, já não havia muito tempo, ainda pairava no ar as minhas peripécias para manter nossa vida a dois sem rotina maçante. Ainda lembro do nosso quarto decorado à uma moda diferente a cada noite. Na última noite, dormimos dentro dum ovo gigantesco acolchoado, nos fechamos por dentro enquanto começamos jogos sexuais, só que nessa última noite apenas dormimos abraçados tal ovo na colher; acima de nós, quarto sem teto, paredes decoradas à era dos homens das cavernas.
Tochas, archotes, mais acima, raios a iluminar nossos vinhos em cálices.
Antes do cair da noite, passeávamos sempre. Era comum longas caminhadas, passávamos por cumes montanhosos, sentir o vento de cima nos excitava.
Havíamos nos mudado para aquela região recentemente, chácara emprestada em terras de amigos próximos. Era em uma planície belíssima circundando o sopé de montanhas, o desejo das alturas nos levara onde agora estamos.
Enlaço lhe o cabelo enquanto, basbaque, sem demonstrar-lhe, vislumbro aquele casebre.
Aparecera às nossas vistas como num passe de ilusionismo, portas de saloon à moda de filmes de bang bang, janelas arquejantes crepitavam em espasmos, a velha árvore la fora como mobília, era a última pintura indicando que estávamos diante de algo assombrado.
Instintivamente enleei-lhe a cintura, trêmulo, não me importando com sua gargalhada:
— O que vamos fazer agora? Ora, entraremos ao casebre! Porta aberta, convite silencioso.
E assim entramos, olho pela última vez, abaixo na planície, todas as coisas envoltas pela escuridão, e tudo era como se fosse cinzas, borrões negros do que fora o mundo real. Fios invisíveis erguiam a lua cheia manchada por asas de morcegos loucos em sua direção a querer devorar-lhe.
Fito pela última vez minha amante, através ainda do seu vestido, miro seu corpo palpitando, tudo convulsivava, todas as suas células pareciam gargalhar em êxtase. A árvore nos bisbilhotava pelas costas agora, era claro seus braços fartos, secos nos acenando. Adeus.
(***)
Não estranhei nada do que via na sala: mobília límpida, tapetes, estantes, livros, novíssimos. Tudo bem iluminado. Deslumbrado com tudo, deixei de notar minha amada, ainda sem largar-lhe a cintura.
Uma porta circundada por pedras esmeraldas nos conduzia a um corredor, todo em tapetes finíssimos, rubis e pérolas decoravam o corredor, dando lhe mais brilho. E nesse momento não percebi que estava sendo conduzido a uma escada que nos levava ao porão.
Toda a casa esfuziava músicas, ar puro e fresco, notadamente o vento impulsionava até nós novas melodias, enfim, todo o vale cantava.
Descendo, descendo, viagem agradável sem fim, por novecentos metros, escada de ouro refletia a luz das deslumbrantes tochas cuidadosamente colocadas a não nos faltar luz. À medida que descíamos, prismas nos impressionava a visão.
Chegamos no ponto quente da terra, soa a música de corpos queimando e eras infernais despedaçadas. Foi aí que vimos o esqueleto totalmente branco neve e seus dentes perfeitos. Parecia vivo. Nos sorria amistosamente. Lá em cima, ainda consegui distinguir a voz da árvore seca despedaçando vales com sua voz de mercúrio estrepitante entalado na glote:
— Está consumado, finalmente atraímos pra cá o nosso libertador!
E ouvi passos de dança como se estivessem nos soterrando. Vozes de um ritual às divindades das profundezas ficam cada vez mais fortes enquanto todo o corredor escurece, enquanto o esqueleto reluz, levanta-se e sobe levando a escada consigo.
Finalmente olho o rosto de minha amante, reluzente, e enfim ouço sua voz no tom de mil icebergs:
— Nós o atraímos pra cá finalmente. Passei mil anos esperando, até você vir a existir, nos casarmos e deixá-lo pronto pra esse momento. La em cima, meus ancestrais louvam o meu sacrifício pela liberdade de meu povo. Aqui, para todo o sempre, nós ficaremos.
Agora você é meu!
* Esse conto não pretende ter classificação, tampouco ser Literatura.
Vem de uma provocação no orkut, acabei digitando ao acaso, de última hora.
** Acho que consegui corrir o texto, apresentei-o assim pra turma do Terceiro Ano da escola.
Indiferenças, mas todos leram, muitas perguntas... Enfim, inicialmente, não se pode esperar entusiasmo dos jovens, creio que gostaram, senão não teriam perguntado tanto.
Assim que tá, assim que vai ficar, já posso receber as críticas, enfim.