O impacto do meu carro com o caminhão que atravessou o cruzamento sem pensar em pisar no freio gerou um estampido tão forte que se assemelhou a explosão de uma bomba. Depois, não ouvi mais nada, partes do meu corpo voaram pelo para-brisa e foram espalhados pelo vento forte que soprava naquela manhã de sábado. Da unidade que eu era, me multipliquei em fragmentos que se espalharam pelas sarjetas molhadas, pelos canteiros das calçadas e pelo asfalto árido. Seria o fim de tudo, caso aquela mão caridosa não houvesse surgido e começado a recolher meu corpo mutilado.

Era uma mulher jovem, de aparência mórbida, rosto triste e seco, olhos protegidos por óculos de lentes fotocromáticas, pernas finas e ágeis, a pele de uma tez alvíssima. Pacientemente e sem demonstrar repulsa, catou meus pedaços pela rua e os guardou numa bolsa de feira. No cenário do acidente, havia outro corpo, ensaguentado, desfigurado, numa rigidez cadavérica, estava estendido no chão, ao lado de uma vela acesa. Ao cadáver humano, a jovem desprezou, apressava-se apenas em me recolher do piche morno do asfalto, talvez pressentindo as faíscas de vida que ainda resistiam em mim. Nunca pude agradecê-la, jamais tive oportunidade de lhe dedicar nada, mas sou grato...

Após se certificar que tinha todos os meus membros em sua sacola, entrou afoita num táxi que passava. Esbaforida, ligou para os Bombeiros e relatou o acidente, provavelmente alguém já tinha feito o mesmo. Indicou ao motorista o nome de uma rua no subúrbio, a referência era o Largo do Bicão, fomos para Vila da Penha.

Chegando ao destino, ela saltou às carreiras do carro, todos os seus gestos eram bruscos. Atravessamos uma porta que nos levou a um galpão espaçoso e de muitos corredores formados por estantes altas de metal. Ela se embrenhou pelo labirinto e dispôs os cacos do meu corpo sobre uma comprida mesa de madeira. Feito isso, esquivou-se para logo depois reaparecer com uma caixa vermelha nas mãos. Sentou-se e suas mãos rudes, dadas a gestos largos e brutos, iniciaram o delicado trabalho de me reunir, cada parte do meu tronco foi sendo remontada como um quebra-cabeça. Quando o corpo esfacelado voltou a fazer sentido, ela limpou meus membros e começou a me costurar com desvelo e precisão. Remendar uma vida com cola, linha e agulha, sobre uma mesa de madeira, poderia parecer uma barbárie para um vivente comum, mas ela realizava o ofício com o amor sacerdotal de uma exímia cirurgiã.

Terminado o trabalho, se afastou e permitiu meu repouso.

Muitas horas depois ela retornou, a madrugada começava a parir raios tímidos. Jogou um jornal sobre a mesa e sentou-se diante de mim. Limpou-me novamente com um pano úmido, examinou cada parte do meu ser com olhos atentos e comovidos e a cada toque suave que me dava parecia estar descortinando minha alma em seus recantos mais profundos. De repente, retomando os gestos bruscos, deu um pulo da cadeira, sacou uma etiqueta, escreveu algo, ergueu-me no ar e me depositou num dos espaços vazios da enorme estante que havia atrás dela. Retirou-se desinteressada e apagou a luz.

Na penumbra amena do amanhecer, eu podia observar a manchete do jornal abandonado sobre a comprida mesa. Havia a foto do cadáver ensaguentado que vi sobre o asfalto no dia anterior, quando ocorreu o trágico acidente. Sob a foto, uma legenda indicava o nome do morto, o mesmo nome que constava na lombada que agora sustentava minhas páginas.

No jornal, eu era somente a massa dilacerada e sem vida, estendida numa rua qualquer, vítima da fatalidade. Porém, naquela estante imensa eu era mais um livro salvo pelas mãos da dona de um Sebo e pronto para atravessar a eternidade.
Alexandre Coslei
Enviado por Alexandre Coslei em 06/06/2010
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