Sábado: Rock - Domingo: Morte
Ela estava finalmente pronta, o processo de se arrumar consumiu duas horas da noite de Carolina. Mas isso não a afetava em absolutamente nada. Ela ia sair e isso era tudo que importava. Convencer o pai a deixá-la ir levou uma semana de trabalho árduo de persuasão milimetricamente calculado até que ele se cansou e permitiu que a filha saísse de casa às 22h num sábado.
Carolina havia dito ao pai que os amigos a buscariam em casa para ir ao aniversário de uma amiga num clube, o que era pura mentira, eles iam a um show de rock e o plano era sair de lá direto para a praia e lá ficar até amanhecer, a volta para casa era um problema em potencial que ela preferia não pensar agora.
A buzina da pickup de Frederico gritou três vezes na frente da casa. Em um minuto Carolina estava descendo as escadas e dando um tchau rápido para o pai. Ela sorriu quando viu os amigos na pickup, fechou o casaco de couro preto e jogou os cabelos negros para trás.
Frederico deu partida no carro depois que Carolina entrou e eles seguiram cortando os ventos frios da cidade violentamente numa noite de outono.
No carro estavam Júlio, Paula, Carolina, Marcos e o motorista, Frederico. Carolina cumprimentou a todos enquanto via pelo canto do olho uma caixa de uísque embaixo do banco do carona, ela nunca tinha bebido muito mais que uns copos de vinho em todos seus 16 anos de vida. Marcos ligou o som do carro no volume máximo enquanto Frederico começava a fazer manobras imprudentes a medida que se distanciava do centro da cidade.
- Como você fez seu pai deixar você vir? – perguntou Paula, falando alto.
- Eu disse que era seu aniversário. – Todos riram. – Pra ele, estou num clube perto da sua casa.
Paula sorriu e disse:
- E o que vai dizer quando chegar amanhã?
Frederico fez uma curva sinuosa e repentina fazendo todos deslizarem de seus lugares.
- Apertem os cintos, senhores! – bradou ele, cômico.
- Vai com calma, Fred, eu quero chegar vivo. – Disse Júlio com a voz grave, séria.
Poucos minutos depois a pickup entrou num beco escuro onde já se podia ouvir a música com sua batida forte e guitarras estridentes. Carolina desceu depois que o carro já estava na vaga, ela estava entusiasmada, sentia que fazia algo errado e gostava da sensação.
Na entrada da casa de shows, Frederico pagou os ingressos dele e de Carolina, entregando para ela com uma piscadela nada sutil, ela recebeu com um sorriso amigável enquanto o resto do grupo entrava.
O lugar não era muito amplo, mas continuava fazendo frio. Paula puxou Carolina pela mão para o meio da aglomeração e elas começaram a dançar. A vocalista da banda – com seu reluzente cabelo turquesa – cantava e gritava com uma voz muito boa. O lugar era como a maioria das casas de show, escuro, cheio de luzes coloridas e frenéticas, algumas dançarinas, e pessoas, muitas pessoas fora do controle.
Os garotos apareceram com vários copos nas mãos. Passados alguns minutos, algumas músicas e alguns copos de alguma coisa, Carolina já via as luzes e o cabelo da vocalista de forma diferente, até Frederico estava diferente quando ela o beijou.
Mais música. Mais dança. Mais pessoas esbarrando e a garota se sentia diferente, estava usando um óculos de sol que ela não sabia como foi parar no seu rosto. Ela se sentia quente e sedutora quando entregou o casaco a Marcos. Estava radiante.
- Não pensei que você dançasse assim, Carol. – Comentou Paula quando as duas se afastaram um pouco da multidão.
- Isso é bom? – Carolina quis saber rindo alto.
- Claro! Você está ótima. – Paula olhou direito para a expressão da amiga e aproximou o nariz da boca dela por um segundo. – Você bebeu demais... Merda!
- Bobagem!
Paula levou a amiga para o banheiro demonstrando preocupação, ela ajudou Carolina a lavar o rosto e refez a maquiagem. Sem saber o que fazer Paula trouxe Carolina de volta e quando se deu conta as duas estavam na frente do palco onde parecia ter o dobro de gente. Carolina estava um pouco tonta, quase não percebeu quando o corpo grande de Frederico se aproximava por trás dela dando um abraço caliente, ela o empurrou e se distanciou, dançou com um garoto desconhecido pouco depois e se viu no bar encostada na bancada sem saber como.
- O que vai querer, garota? – perguntou o barman.
- Hmmmm, não sei - disse Carol, a voz arrastada.
- Que tal um beijo? – ofereceu ele sussurrando perto dela.
- Não! Ela não quer, seu idiota! – vociferou Paula que tinha acabado de chegar, olhando severamente para o homem. – Hora de ir, Carol.
- Mas já?!
- É uma da manhã, já chega por hoje, Fred está procurando você a quase meia hora. Os outros já estão no carro, vamos!
Carolina levantou vendo as luzes turvas e as pessoas se transformando em vultos que se misturavam o tempo todo.
Saindo da casa de shows o frio assolou o corpo da garota quase congelando-a. O beco estava ainda mais escuro e agora havia algumas pessoas sentadas no chão.
- Você tava bem louca, Carol – disse Júlio quando todos estavam no carro.
- Calado, Jú! – disse ela com uma gargalhada sem motivo.
- Ihhhh, ela ficou estressadinha - caçoou Marcos.
Frederico ligou o carro e o som do carro fazendo Carolina pular num susto cômico. Ela estava com sono, muito sono, mas a música alta não a deixou dormir mais. Paula e Marcos se beijavam enquanto Carolina via as ruas, casas e pessoas se misturando em vultos difusos diante de seus olhos por minutos e mais minutos.
De repente o carro parou. Eles já estavam na praia. Eram 2h da madrugada. Fazia um frio absurdo e o cheiro inebriante da maresia inundava as narinas de todos, embriagante. Carolina se sentia aliviada. Frederico travou o alarme do carro e o grupo desceu o calçadão rumo à praia.
As ondas quebravam fortemente na praia completamente vazia, Carolina olhou a sua volta e não viu ninguém, fazendo uma pontada de medo aparecer no coração nervoso da garota.
- E então, o que vamos fazer agora? – perguntou Júlio com um tom de voz entusiasmado demais.
- Arrumar um lugar para dormir seria bom – disse Paula desatenta.
- Dormir? Dormir é para os fracos! – disse Marcos quando o grupo já pisava na areia.
Paula suspirou. Frederico sorriu com a beleza do mar, ele trazia consigo uma sacola com a garrafa de uísque dentro.
As árvores balançavam seus galhos violentamente empurradas pelo vento frio e incessante. As duas garotas tiraram os sapatos e começaram a caminhar segurando-os. Carolina adorou a sensação dos pés tocando a areia.
Os jovens andaram mais alguns metros até chegar numa espécie de “nicho” num aglomerado de árvores que formavam quase um esconderijo numa parte afastada. De tempos em tempos algum carro passava pela avenida perto da praia, era o único som diferente da natureza que se podia ouvir.
Marcos saiu para buscar lenha, coisa difícil pra uma madrugada, ele voltou 10 minutos depois quando todos já estavam acomodados na areia, confortavelmente. Júlio tirou álcool e um isqueiro da sacola de Marcos e fez uma fogueira quase perfeita.
- A gente podia acampar semana que vem – sugeriu Frederico olhando fixamente para Carolina, calada.
Ela não disse nada.
- Talvez depois das provas... – disse Paula quebrando o silêncio incômodo.
Mas o silêncio voltou. Mais incômodo que antes. Frederico estava achando Carolina estranha demais, quieta demais. Ele tirou a garrafa de uísque da sacola e abriu-a, pegou uns copos e serviu as primeiras doses.
Parecia que ela estava acordando de anos de um sono profundo. A garota levantou num salto e abafou um grito. Todos riram, até ela.
Carolina aceitou o copo e bebeu, depois disso o clima entre os 5 amigos ficou mais descontraído e qualquer pessoa que passasse por perto ouviria gargalhadas do meio das árvores.
Copos, gargalhadas, copos, faíscas, fogo, copos e beijos, em suma, foi isso que aconteceu nas duas horas que a garrafa de uísque durou.
O fogo acabara. As brasas ardiam enquanto Paula, Júlio e Frederico dormiam esparramados. Carolina não estava bem, ela saiu do “nicho” das árvores. O sol já ensaiava sua libertação matinal e para ela, as cores se misturavam junto com a tontura desconcertante. Ela definitivamente não estava bem, ao longe Carol via Marcos cambaleando perto do mar. Ela gritou por ele, mas ele não viu, ela tentou outra vez e desistiu.
A garota começou a vagar sem saber o que fazer nem para onde ir, a bebida martelava a cabeça dela como um relógio cuco. A areia não estava mais tão fria e isso a incomodava profundamente. Carolina continuava a andar se aproximando cada vez mais do mar.
Algo a atraia no mar, era algum tipo de luz que ela tinha certeza que traria uma sensação celeste, mesmo que a certeza de alguém nas condições dela não valessem muito. A água morna começava a tocar os pés dela delicadamente. Carol se arrepiou.
Ela não tinha mais total controle de seu corpo, era algo quase surreal. Aos poucos tudo a sua volta foi ficando mais e mais escuro até só haver luz na coisa (talvez uma silhueta) brilhante em alto mar. Música, ela ouvia uma sinfonia convidativa vinda da luz, enquanto a água já molhava sua cintura.
Algo a puxou pela perna, algo forte, todavia ela era mais forte e se manteve em pé. A luz brilhava com esplendor ao alto e ficava cada vez mais atrativa à cabeça flamejante de Carolina. Ela foi puxada novamente, agora pelos braços e pernas. Uma onda veio em sua direção, com a força do impacto ela se desequilibrou tonta e a água já lhe alcançava o queixo.
Na praia, Marcos gritava desesperadamente, Carolina o viu mas não pôde voltar, a luz estava tão perto e tudo longe dela era tão escuro e tenebroso...
Outra onda, desta vez ainda mais intensa, ela foi puxada de novo, agora para baixo e o último fio de cabelo seco se encharcou com água salgada. A luz estava lá, no mar, mais perto e encantadora que nunca. Carolina tentou alcançá-la mas não conseguiu, tentou, tentou, tentou... E nada.
Tudo que ainda tinha um pouco de luz foi se esvaindo num breu salgado e denso enquanto o corpo de Carolina flutuava embaixo d’água lenta e estaticamente. Carolina nunca alcançou a luz.