A IMPONÊNCIA DO KRAKEN

A IMPONÊNCIA DO KRAKEN

Imensos trocos de pinheiro e abeto, engolidos pela corrente,

reapareceram quebrados e despedaçados, a ponto de se dizer

que neles cresceram pelos.

EDGAR ALLAN POE

1951. Fazia sete anos que a Islândia tinha adquirido sua independência e fazia sete meses que o Padre Emílio Verilhas agonizava tanto em seus sonhos quanto na vida real. Apesar da tranqüilidade que a aldeia de Vik proporcionava, tal calmaria não atingira o espírito do clérigo. As fortes e pungentes lembranças daquele alienígena ainda devastavam sua percepção. Se formos calcular as sobras da sua alma, notaremos que o saldo será deveras negativo, um derradeiro déficit.

As dificuldades com o idioma escandinavo foram logo solucionadas quando Emílio chegara à Islândia. Desde a sua tenra idade que ele vinha estudando a língua deste continente. Os moradores da aldeia de Vik (que tinha cerca de irrisórios 300 mil habitantes) acolheram o Padre mais pela sua posição social do que a sua origem. Sua morada se resumia a uma pequena casa de madeira com um quarto, um banheiro, uma minúscula cozinha e uma ante-sala onde Emílio estudava e guardava seus avultantes livros.

A aldeia de Vik se localiza no sul da Islândia (“Um país para um povo, um povo para um país”), cerca de 180km da capital Reykjavík. Mesmo com o seu mar tempestuoso e selvagem, a sua praia arenosa de azeviche é copiosamente bela, uma das mais bonitas do planeta. É um vilarejo onde é constante a presença da chuva, com isso, a sua umidade é bastante elevada. Por último, as verduras das montanhas escarpadas e as espécies de colunas de basalto negro esculpidas pelo mar oferecem uma bela paisagem para aqueles que necessitam escapar do escaldante sol dos trópicos.

Todos os domingos havia um longo e enfadonho debate com o clérigo do vilarejo; este possuía grande admiração pela erudição do sacerdote brasileiro, chegando a solicitá-lo para que ele fizesse uma liturgia na igreja da vila, estrategicamente localizada no alto duma colina, evitando dessa forma, os constantes dilúvios. O pedido sempre foi humildemente recusado, em razão da desordem que reinava nos pensamentos de Emílio, e o pároco do vilarejo percebera isso, mas a todo o tempo instava no assunto.

Outra pessoa com quem Emílio logo travou uma frutífera amizade foi um velho marceneiro chamado Saemundurson, cuja aparência se assemelhava um pouco a de Emílio. Na verdade, ele foi um dos primeiros contatos que o Padre teve no tempestuoso vilarejo de Vik. Sua visita era quase que diária. O velho pescador apresentou-lhe a cidade e contou muitas estórias do vilarejo. Estórias de feitos heróicos dos bravos guerreiros vikings, dos intrépidos pescadores e da lenda popular dos famosos Trolls das montanhas. Contudo, ao passearem naquela suntuosa praia do vilarejo, o velho Saemundurson ateve-se em detalhes numa estória curiosa sobre um certo monstro marinho, uma famosa lenda - não se sabe se é oriunda da mitologia da Escandinávia ou da Grécia -, o famigerado Kraken.

“Acabara a primeira grande guerra. Meu pai, o homem que se auto-intitulava Karlsfni (norueguês que explorou com mais profundidade as terras antes conquistadas por Liefr Ericson, mais especificamente o atual Canadá), retornara à Islândia. Lutara e perdera ao lado dos alemães. Um acontecimento funesto foi o seu retorno. O velho Karlsfni estava mudado, abalado ao presenciar tanta carnificina desnecessária. ‘Tudo se resumiu à política e a uma cobiça exacerbada’. Seus sonhos, outrora tranqüilos, tornaram-se uma eterna vigília noturna. ‘Meu destino se encontra nas profundezas do mar’. Pensamos ser estes devaneios uma mera seqüela da guerra, mas ao invés da tradicional paranóia, uma irritante idéia fixa. Certo dia, teve um inusitado anseio em construir uma Drakkar; ele deixou-me como legado a sua grande aptidão em marcenaria. Tencionava explorar o mar, daí ele ter se apoderado do famoso nome.

“O barco superou todas as expectativas. Não se igualou às construções dos antigos, mas o espírito estava ali presente; qualquer islandês podia pressenti isso. O velho Karlsfni vogava dias e mais dias em alto mar. Não se sabia como ele se alimentava, mas, ao voltar da sua insólita viagem, ele parecia renovado e dava para notar que o barco não sofrera nenhuma avaria. Isso me deixava impressionado.

“A viagem ao desconhecido se tornara uma rotina para meu pai. Entretanto, numa de suas conhecidas excursões, fiquei dois meses sem noticias suas. Alertei o ocorrido à marinha islandesa. Em vão. Nenhuma notícia tive sobre o seu paradeiro. Aquela informação me deixou muito abatido. Tinha perdido toda a esperança, até que certo dia, achei um diário do velho Karlsfni. Foi muito árduo para mim entender aqueles hieróglifos que resumia-se as pequenas ilhas inóspitas as quais ele dizia ter conquistado. No entanto, a última página me chamou a atenção.

“Nesta página, ele afirmou ter se deparado consigo mesmo num abismo marítimo, fronteando uma insula onde havia uma decrépita bandeira da Noruega fincada no cimo da ilha; onde as águas são como espelhos a refletir todas as estações do ano. De súbito, estas águas se tornaram negras e de dentro de um recém formado redemoinho, saiu uma criatura com vários tentáculos. Era o próprio Kraken. Ele dera sorte em escapar da primeira vez, todavia, aquelas imagens do seu próprio corpo jazido no fundo do mar e do monstro marinho, atormentavam suas agonizantes vigílias noturnas. No auge da sua amargura, aquele corpo clamava por sua presença.

“Tive de me resignar. O velho Karlsfni encontrou seu fado naquelas águas cristalinas. Tu deves estar a me perguntar se eu não fui a sua procura. A resposta é não. Não fui. Tenho medo do que hei de encontrar ali.

“Tenho que admitir, de todas as estórias contadas, esta é uma das únicas verídicas. Aqui está o diário do velho Karlsfni”.

- Por que tu estás a me dar o diário pessoal do teu próprio pai? Esse item é tão confidencial que nem tu mesmo deverias ter o direito de invadir a privacidade do velho Karlsfni.

- Olhe para mim, Vossa Reverendíssima. Achas que tenho o espírito dos antigos? Pensas que eu haveria de construir uma Drakkar – apesar das minhas grandes habilidades em marcenaria - e velejar a esmo por ai a fim de descobrir onde está o meu bem mais valioso? Tu tens concepções errôneas sobre mim, V. Rev.ma; não quero seguir os caminhos trilhados pelo velho, o qual perdeu a plena razão após a guerra.

- O que é uma pena e que eu lamento muito. É lamentável um ser que não vive de acordo com os seus ideais. Se teu pai realmente pereceu, ele honrou aquilo em que acreditava, mesmo tu acreditando na perda da sua razão ou talvez a plena lucidez. Tu deverias ter orgulho por teu pai ter sido um verdadeiro nórdico, não podes deixar que o medo o ofusque com o seu manto escuro.

- Eis a razão de eu ter-lhe dado o diário do velho Karlsfni.

- Por quê?

- Confio em ti. Sei que tu farás algo que eu jamais tive a coragem de fazer. Tenha uma boa noite, Padre.

Fazia muito tempo que as noites de Emílio não eram boas, eram constantes noites iluminadas apenas pelo lampião, constantes pesadelos oníricos e reais, e imutáveis orações para que tudo isto acabe, para que a paz do seu espírito seja mais estável do que aquela tenebrosa agonia. Nesta mesma noite, o padre deixou o tempo seguir seu curso natural e pôs-se a ler aqueles garranchos; realmente Saemundurson tinha razão em afirmar que seu pai escrevia se utilizando de hieróglifos.

Aquele diário era o motivo que Emílio Verilhas necessitava para selar duma vez o seu pesado fado. O conteúdo ali presente fora escrito, como se o seu pensamento fosse direcionado para o espírito despedaçado do Padre. Uma estranha forma de redenção ocupou a sua dúbia mente. O clérigo acreditava que o velho Karlsfni clamava por sua ajuda, visto que o seu filho não era possuidor da bravura dos antigos e intrépidos guerreiros escandinavos, mas um covarde dos tempos modernos.

No outro dia, uma linda garota de tez branca e olhos azuis bateu na porta do recito de Emilio, afirmando que o Padre do vilarejo almejaria vê-lo imediatamente.

Chegando à pequena morada do pároco desta vila, uma terrível borrasca anunciava que o dia seria o mesmo de sempre.

- Sente-se meu caríssimo amigo.

- Obrigado.

- Vejo que estás um pouco mudado. Teu olhar não mais está cravado no fundo do abismo, mas direcionado para o longínquo horizonte.

- Admiro a tua percepção acurada, Vossa Reverendíssima.

- Então, encontraste as respostas às tuas angústias existenciais?

- Ainda não sei ao certo se são respostas ou se são mais encruzilhadas a incrementarem ainda mais as minhas dúvidas. Contudo, hei de descobrir a resposta para isso.

- Isso me preocupa. Notei que Saemundurson anda visitando-o amiúde. Seu pai era um desvairado que perdeu o juízo após a primeira guerra. Vivia alegando ser Karlsfni, o personagem da nossa história islandesa. Fazia tempos que ele não se confessava, acreditando que Odin era o seu grande Deus e não o nosso salvador Jesus Cristo. Eu não tenho e nem deveria ter nenhuma ressalva contra a religião pagã do nosso glorioso passado islandês. Como tu deves ter estudado, o cristianismo na Islândia foi deveras flexível para com os Deuses Nórdicos, diferente do que foi na Noruega, Dinamarca e Suécia.

- Malgrado, um dia ele veio ter comigo. Confessou-me que tinha certas reservas se haveria de deixar seu diário pessoal para o seu filho. Disse-me também que tencionava muito que seu filho continuasse a sua jornada. Foi um desejo tolo e graças ao Senhor que é notório o medo que o velho Saemundurson tem do mar.

- Então, tu apareces e o velho Saemundurson o visita com freqüência. A princípio, e acredito que seja bem provável, ele lhe contou estórias dos feitos dos nossos gloriosos antepassados e das nossas lendas. Fio que depois ele deve ter relatado a louca e longa trajetória do seu pai. Por último, ele o entrega o diário do seu pai. Agora, tu deves estar se perguntando como eu sei de tudo isso. Simples, o velho Saemundurson confessou-me a mesma coisa e entregou-me o tal diário. Depois de ler aqueles garranchos e aqueles fatos sem nenhum sentido, devolvi-o e lhe disse que aquilo era fruto das loucuras do seu velho. Notei que ele andava um pouco deprimido com o seu medo do mar. Aconselhei-o a fazer algumas orações. Debalde.

- Então apareces tu. O jubilo do velho Saemundurson era evidente ontem a noite, assim como agora é evidente o seu jubilo matinal, meu caríssimo Emílio Verilhas. Vês agora quão preocupado estou para que tu não faças nenhum ato heróico?

O clérigo brasileiro se levanta e vai contemplar, pela janela, a procela que caia lá fora e no seu próprio espírito ainda apinhado de dúvidas. Não obstante, seu semblante estava mais resignado e podia-se notar uma vontade extrema de sorrir, ou, ao menos, tentar ser altaneiro ou frígido como de praxe. Ele volta a se sentar no assento e crava seus argutos olhos castanhos e redondos nos olhos azuis do seu colega de profissão.

- Vossa Reverendíssima, tu não sabes como eu sinto falta do romantismo e das pessoas as quais seguiam a sua doutrina. Eles faziam com que o impossível fosse um insignificante obstáculo; não temiam, mas veneravam e até brincavam com a morte; eles enxergavam o existencialismo numa pétala duma flor. Saiba que quando furtivamente descobri Goethe, não senti nenhuma catarse suicida. Diga-me, tu já leste alguma obra do grande escritor romântico brasileiro Bernardo Joaquim da Silva Guimarães?

- Desculpe se a minha erudição não alcança a tua, Padre.

- Deveras! Tenho ciência de toda a literatura nórdica. Mas, mudando o foco do escárnio, eu também já fui um louco apaixonado, já foi um zumbi que andava. O auge do meu devaneio aconteceu quando eu lera “O Seminarista”, obra do escritor citado anteriormente. Ao final do livro, tive vontade de negar a minha própria existência. Imagine, depois de presenciar, enfrentar e transcender a esfera do sobrenatural, depois duma malograda tentativa de evitar o suicídio duma linda loira, um mísero livro quase pôs o meu espírito a pique. Entenda uma coisa, Vossa Reverendíssima, o que agora eu estou para enfrentar é algo que, pela primeira vez, eu não tenho medo.

- Vai ser uma lástima perdê-lo, meu caríssimo Emílio Verilhas. O mundo cristão há de sofrer um derradeiro impacto. Cada um com o seu fado.

- Obrigado pela compreensão, tu não foste a primeira pessoa a proferir tal elogio. Tenha um bom dia, Vossa Reverendíssima.

Fazia duas semanas que o clérigo brasileiro protelava a sua decisão de enfrentar o medo naquelas misteriosas e límpidas águas. A cada dia sua resolução aumentava, até que um dia, seu projeto caminhou para o nível da execução. Ele alugou uma brigue e quando estava para zarpar, o velho Saemundurson veio ter com Emílio.

- Irei contigo. Afinal, não era apenas a coragem que fazia os antigos explorarem lugares ermos, mas a sua grande habilidade marítima. Em fim das contas, tu não irias conseguir nem sair da enseada.

- Na verdade, eu iria contratar um marinheiro. Acresce também, pelo que eu andei me informando, tu tens medo das águas marítimas.

- Assim como ti, esta é a primeira vez que não sinto medo. Vamos.

Incrivelmente, era um dia em que o sol abrira com muita dificuldade seus escaldantes olhos, tentando dardejar seus raios para o vilarejo de Vik. As cores das paisagens locais ficaram mais vivas. É uma experiência renovadora quando a chuva cede espaço de pelo menos um dia, para que o sol mostre ao mundo as belezas recônditas daquela aldeia. Todavia, o que não mudara foi o frio, o qual ainda açoitava aquelas pessoas deveras.

A pequena embarcação deixou a enseada quando o sol estava no seu esplendor. As insignificantes vagas nem pensavam em servir de estorvo para que aquela minúscula embarcação não explorasse os segredos obscuros do mar.

Quando o pequeno barco embarcou, era ainda possível contemplar as belíssimas colunas esculpidas com esmero pelo mar. Bem distante, lá estava a igreja no alto da colina, tendo como pano de fundo as verduras das montanhas escarpadas. Lá se encontravam também as casinhas do vilarejo de Vik, local onde Padre foi obrigado desfrutar seus dias tranqüilidade, fora ali em que a atmosfera local o fizera perder o medo e as dúvidas que atormentavam a sua mente aparentemente lúcida.

- No horizonte longínquo aparecem algumas nuvens negras. Como o vento ainda está fraco, elas ainda custarão a nos atingir.

- Não me importo. Que caia a mais violenta procela, meu espírito está preparado para tudo. Pode mandar que eu agüento.

As “agradáveis” virações do mar faziam os corpos daqueles desbravadores sentirem na alma o frio que nasce dos abismos das profundezas marítimas.

Sem se atentar para o clima que os açoitavam, o Padre Emílio Verilhas tira a sua luva de lã grossa, põe sua despida mão direita nas álgidas águas e a deixa servir de obstáculo ao rumo em que o barco estava a tomar. O vilarejo de Vik agora é um ínfimo ponto negro, ou talvez nem chegue a isso.

Alguns barcos pesqueiros são avistados a alguns quilômetros de distância. Cada um com os seus propósitos.

Enquanto o Padre tinha os olhos fitos naquelas aleivosas águas, o velho Saemundurson colocava em prova todos os seus conhecimentos de marinhagem e navegação, ensinada sob pressão pelo velho Karlsfni.

Os traquetes aproveitavam ao máximo os ventos, os quais começavam a se intensificar. Isso fazia o seu casco deslizar pelas águas, como se não houvesse nenhuma fricção, como se a brigue andasse numa superfície lisa de gelo. Infelizmente, a proa não era ornada com a escultura de algum dragão ou algum Deus Nórdico.

O companheiro do clérigo brasileiro tira uma bússola da bitácula e diz:

- Estamos perto, Vossa Reverendíssima. Mas é estranho, cada vez que nos aproximamos do local indicado por meu pai, a escuridão aumenta e as águas ficam mais agitadas.

- Tu também percebeste isto?

Ao cabo de algum tempo, aqueles dois desbravadores se aproximam da insula, marcada no mapa feito pelo velho Karlsfni. À medida que eles se achegam, as águas iam ficando mais agitadas, ora içando a brigue ora levando-o para o abismo das suas ondulações. Mesmo pulsando violentamente através de sinistros e intumescidos vagalhões, as águas não deixavam de refletir o céu (agora um tanto carrancudo).

- Temos que ter cuidado para não chocarmos contra as pontas da encosta. Aconselhou o velho Saemundurson.

A recomendação fazia sentido. Havia muitas pedras pontudas expostas nas orlas da ilhota, sem contar as pontas submersas as quais poderiam fazer, com extrema facilidade, grandes estragos no pequeno barco.

Com muita dificuldade, eles conseguem contornar a insula, no entanto, não encontram nenhum local seguro para atracar a brigue. De quando em quando, as vagas empurravam deliberadamente a pequena embarcação para aquelas afiadíssimas pedras. Acresce também que as enormes ondas cuspiam amiúde e bruscamente suas salobras águas naqueles dois estranhos, como se estivessem a sentir nojo e desprezo por eles.

- Que diabos meu pai veio fazer neste fúnebre inferno marítimo?

- Tenha um pouco de fé. Se alguém conseguiu fincar aquela decrépita bandeira da Noruega, tenho certeza de que podemos realizar feitos ainda mais grandiosos.

- Diabos! A correnteza agora está centrifugamente nos atraindo para aquele extremo ponto à esquerda.

A alguns metros da ilhota, um pequeno, mas crescente, redemoinho ia tomando forma. A brigue não mais era atraída para as perigosas encostas da insula, mas, aos poucos e de forma circular, para aquele pequeno declive recém-formado.

Do negro céu, além das grandes bátegas, vê-se um agonizante clarão e ouve-se um enorme estrondo. Um imponente raio, golfado pelas negras nuvens, atingem, de modo deveras preciso, o meio daquele crescente abismo. De súbito, o mar, em toda a sua extensão, cintila intensamente.

- Meu pai! Eu o vejo. Olhe!

Aquela era de todo uma soberba cena. Lá no fundo do mar estava o corpo do velho Karlsfni, completamente atado por um enorme tentáculo. Não se sabe como foi possível o seu pronto reconhecimento pelo velho Saemundurson.

Bem ao lado do corpo inerte, encontrava-se ele, aquele que era responsável direto pelo crescente redemoinho, o famoso Kraken. Uma criatura marinha temida mesmo pelos mais intrépidos marinheiros.

Já fora abordado que há dúvidas se tal ser é adivinho da mitologia Nórdica, pois o famoso poema Eddas não faz nenhuma referência sobre ele. Nem na própria mitologia grega há registros sobre este monstro marinho.

Dúvidas infrutíferas a parte, o fato é que o “airoso” Kraken ali estava. Era um gigantesco polvo – cerca de 60 metros de comprimentos e 50 toneladas de peso – com incontáveis, longos e imponentes tentáculos. Por esta descrição, percebe-se que se trata duma fêmea. Seus negros olhos (com aproximadamente dois metros de diâmetros) apenas observavam os dois apavorados desbravadores. Suas ventosas de 30 centímetros, com um bico afiadíssimo de dois metros de comprimento, sugavam as águas salobras com uma insaciável cede.

Aos poucos, o Kraken começa a emergir. Um dos seus numerosos braços iça a brigue. Dava para perceber que eles eram dentados, escorregadios e viscosos. Lentamente, o monstro mitológico mostra-se ao ar livre. Ele emitia um cheiro insuportável, como se vários corpos apodrecidos fizessem parte do seu hálito natural.

Dizem que o Kraken somente ataca embarcações que poluem o seu habitat e aquele insignificante brigue estava isenta de toda a culpa. Ainda assim, a expressão do ser marinho não em nada amistosa.

- Não hei de morrer em vão. Tenho minha honra a zelar. Olhe, há alguns braços faltando. Isso significa que além de podermos feri-lo, ele não tem a capacidade de regeneração. Este martelo há de obliterar aqueles malignos e grandes olhos. Em nome de Thor, eu...

- Pare! Tu morrerias antes mesmo de erguer este martelo. Tu ainda não percebeste? O Kraken está tentando se comunicar.

- O quê? Isso é impossível. Um monstro! Aquilo é um ser bestial. De que forma ele tentaria uma comunicação?

- Através dos seus órgãos bioluminescentes. Veja! Logo ali.

- Sim. Estou a ver. Mas, como tu hás de se comunicar com ele?

- Passe-me a lanterna.

Não se assemelhava em nada com os códigos luminosos usados pela marinha e pela aeronáutica. Era algo bem mais nefasto: os intervalos entre cada código eram muito mais longos, parecia-se com órgãos cardíacos que pulsavam vagarosamente, assim como pulsam o coração dum monge zen-budista.

- Tu tens muitas surpresas guardadas nesta tua lúcida mente. Isso eu tenho de admitir, Vossa Reverendíssima.

Subitamente, um dos enormes tentáculos emerge daquelas pérfidas águas trazendo o corpo do velho Karlsfni. Lentamente, o braço maligno põe o cadáver no brigue.

- Meu pai! Que os deuses sejam louvados! Tinha perdido toda a esperança... mas... por que o tentáculo está a ir na tua direção Vossa Reverendíssima? Então quer dizer que...

- Isto não é nenhuma peça trágica de Shakespeare. Não estou querendo imitar o Rei Hamlet. No meu país, são pouquíssimas as pessoas valorosas que são prestadas as devidas homenagens. Mas, aqui é diferente. Teus antepassados são venerados intensa e sinceramente por que eles foram bravos e honrados. Enquanto... desejo apenas uma única coisa...

À medida que o braço do Kraken ia cingindo o corpo do clérigo, suas ventosas dentadas iam adentrando naquela carne ainda imaculada. A dor era insuportável, no entanto, Emílio Verilhas ainda teve fôlego para dizer uma única frase da peça do divino Shakespeare:

- “...Lembra-te de mim”.

Então, a escuridão ofuscou toda a visão e o olfato do velho Saemundurson. Algumas toneladas de tinta negra foram jorradas pelo Kraken. Aquela ação fez o velho perder todos os seus sentidos.

Ao cabo de poucas horas, o brigue fora encontrado por um baleeiro e levado para a aldeia de Vik.

Dois dias depois.

- E então, já decidiste?

- Sim, Vossa Reverendíssima. Daremos um enterro dos nossos antepassados. Era o desejo do velho Karlsfni.

- Que seja! Além disso, tenho uma boa notícia. Encontraram a Drakkar feita por teu pai.

- Isso é uma boa notícia. Há mais uma coisa...

- Eu sei. As lembranças do Padre brasileiro Emílio Verilhas jamais serão esquecidas aqui em Vik e pode ser que elas ecoem para lugares ermos. O que já seria extraordinário.

O corpo daquele que se autodenominava Karlsfni foi deitado na Drakkar, junto se encontravam os seus pertencentes: alguns farrapos de roupas e o tal diário. Acresce também que os pertencentes do Padre Emílio Verilhas estavam ali.

Assim, a Drakkar foi lançada ao mar. Havia um número considerável de pessoas ali na praia presenciavam aquele gesto simbólico dos guerreiros dum passado longínquo.

Quando a embarcação viking tomara uma certa distância, a garota loira dos olhos azuis ergueu a flecha chamejante e disparou um tiro certeiro.

Conforme a chama consumia a Drakkar e o que havia ali dentro, o imaginário daquelas pessoas começou tomar forma: veio uma Valkyrja a fim de levar a alma de uma daquelas pessoas para o Valhala.

O estranho é que a alma escolhida fora a do clérigo brasileiro, pois tanto o seu espectro quanto o seu corpo deveriam estar se putrefazendo no estômago universal do Kraken. Em adição a isso, temos a origem do próprio eclesiástico.

Dessa forma, só existe um possível remate: a bravura, a grandeza, a erudição e a lucidez não estavam apenas no sangue do Padre Emílio Verilhas, mas no seu espírito. As atitudes do velho Karlsfni eram deveras precipitadas, egoístas e sem nenhum desígnio; eis a causa da sua perdição nos tentáculos do Kraken.

É bem provável que o monstro marinho não tivera a audácia de manter presa aquela alma que se assemelhava com a dos antigos guerreiros, os quais morreram tosquiando os inúmeros braços do grande polvo; uma luz que segava até mesmo a visão privilegiada do Kraken, o espírito que tinha a presença de fazer aquela imponente criatura bestial se parecer absolutamente insignificante.

Emílio Verilhas: o homem que soube como morrer com passos firmes. O homem que não esqueceu o passado, não negligenciou o presente e jamais temeu o futuro. O homem que jamais impediu o fluxo do universo. O homem que construiu uma sólida, estável e verdadeira base ético-moral que jamais há de se desmoronar. O homem cujos feitos serão cantados em cada canto da aldeia de Vik, e quem sabe tais canções serão retinidas para os quatro cantos do mundo.

“Lembra-te de mim”, eis a sua última frase. Ele tinha consciência da sua verdadeira grandeza, mas achou por bem deixar que as próprias pessoas a descobrissem. Por isso, a sua grandeza se realizou de forma plena.

Ramon de Freitas Ribeiro
Enviado por Ramon de Freitas Ribeiro em 18/05/2010
Código do texto: T2264957
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